Pular para o conteúdo principal

Palavra 'ateu' foi criada na Grécia Antiga como insulto a quem não acreditasse em deuses

RICARDO OLIVEIRA DA SILVA


A palavra ateísmo possui origem grega. Data do século V AEC (antes da era comum) o registro da palavra atheos em fontes escritas. No caso, theos indicaria deuses e o a teria o sentido de ausência ou negação. Nos primeiros registros atheos era usado como um adjetivo para se referir a pessoas que eram abandonadas ou viviam sem os Deuses.

Já a partir do final do século V para o século IV AEC a palavra atheos passou a ser enfatizada como substantivo para indicar pessoas que não acreditavam nos Deuses.

Um dos primeiros registros que enfatiza esse sentido é Defesa de Sócrates, um relato de Platão (428/427-348/347 A.E.C) sobre o julgamento do seu mestre Sócrates (469-399 AEC) na cidade de Atenas no ano de 399 AEC. Conforme consta no texto, Sócrates repeliu a acusação de que ele não acreditava nos Deuses protetores da cidade dizendo que não era ateu.

O que se deve destacar é que a palavra “ateu”, assim como ateísmo, foi criada na Grécia Antiga como uma forma de insulto e acusação: não acreditar nos Deuses era sinônimo de desrespeito moral, social e político, uma vez que a religião dava um sentido positivo para diversas esferas da vida grega. Por isso, as pessoas procuravam não se identificar como ateias, pois isso era visto como indicativo de imoralidade e ameaça política.

Um segundo ponto que deve ser salientado é que a palavra ateísmo apareceu sem relação com razão, racionalidade ou ciência. Ser ateu no contexto da Antiguidade, grega e romana, não era, via de regra, ter uma visão racional e científica sobre o mundo e o ser humano.

Com o advento do cristianismo no Império Romano e sua consolidação na Europa medieval, o estigma em torno de pessoas que não acreditavam em Deus se acentuou.

É apenas no cenário do Iluminismo europeu no século XVIII, possuindo como base a Revolução Científica (XVII) e o desenvolvimento da racionalidade com propensões mais empíricas, que surgiram pensadores que procuraram reformular o sentido de ateísmo como uma visão de mundo amparado na racionalidade. Barão D’Holbach (1723-1789), naquele que é considerado o primeiro livro declaradamente ateísta da história da filosofia ocidental, Sistema da Natureza (1770), escreveu: “O que é, com efeito, um ateu?: É um homem que destrói algumas quimeras nocivas ao gênero humano para reconduzir os homens à natureza, à experiência, à razão.” (Holbach, 2010, p. 772).

Do século XVIII aos dias atuais, muitos intelectuais contribuíram na construção de uma visão de mundo ateísta, entre os quais destaco: Ludwig Feuerbach (1804-1872), Karl Marx (1818-1883), Charles Darwin (1809-1882), Friedrich Nietzsche (1844-1900), Bertrand Russell (1872-1970), Jean-Paul Sartre (1905-1980), Richard Dawkins (1941).

Contudo, ainda persiste a noção de que ateísmo é apenas criticar ideias e instituições religiosas. Talvez um dos desafios do século XXI, que testemunha muitos países terem um acréscimo na população ateísta, seja realçar o significado propositivo que o ateísmo pode ter na construção de um mundo mais tolerante e solidário na luta contra os fundamentalismos religiosos e os movimentos de negação da ciência e do pensamento racional.


> Ricardo Oliveira da Silva é professor de história na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul.


Livro 'Ateísmo no Brasil' recupera um país que poucos brasileiros conhecem




Comentários

Unknown disse…
Visão de mundo fundamentada na racionalidade.

O texto ficou ótimo e ainda aponta um dos principais desafios do ateísmo atual. (SécXXI)
Elisandro disse…
Interessantes informações muito pertinente. Parabéns. Ao Paulo e ao professor Ricardo!
Luciano disse…
Texto Sensacional, algumas informações que eu não tinha conhecimento e passeei a ter aqui, parabéns professor.

Post mais lidos nos últimos 7 dias

90 trechos da Bíblia que são exemplos de ódio e atrocidade

Cápsulas de papelão com sementes podem auxiliar na restauração ecológica do Cerrado

Veja 14 proibições das Testemunhas de Jeová a seus seguidores

'Conhecimento é a única arma contra a ignorância. Deixem a fé para os avós'

por Otávio Barcellos a propósito de Conhecimento científico é incompatível com fé e religião Quando eu era jovem, acreditar em Deus já era démodé. Coisa exclusiva de famílias ortodoxas, que geralmente davam gordas contribuições à Igreja em troca de bençãos particulares. Nós estudávamos em colégios católicos porque eram os melhores na época. Contudo, entre meus colegas poucos eram tão alienados a ponto de crer na incoerência absoluta das estórias bíblicas. E quase todos sabíamos que isso não não poderia vingar para sempre, tamanha a discrepância entre Ciência (que só avançava) e religião (que só retrocedia). Hoje, aos 71 anos de idade, vejo com surpresa que há jovens aqui mais alienados do que na minha época. No meu tempo nós tínhamos que ler grossos e complexos livros para compreender o mundo, hoje vocês só precisam dar alguns cliques. O conhecimento é a única arma contra a ignorância. Deixem a fé para seus avós. Ciência vai ganhar da religião, afirma Stephen Hawking. j

Pastor Silas Malafaia chama jornalista de 'vagabunda'

O jornal colocou a palavra "tramp" (vagabunda) entre aspas  para deixar claro que foi dita pelo pastor Eliane escreveu sobre intolerância religiosa O pastor Silas Malafaia, da Assembleia de Deus Vitória em Cristo, chamou a jornalista e escritora Eliane Brum (foto) de “vagabunda” ao comentar o que artigo que ela escreveu para Época contando não ser fácil a vida de ateus em um Brasil cada vez mais marcado pela intolerância evangélica.  A afirmação foi feita em uma entrevista relatada pelo New York Times em uma reportagem sobre a liderança que Malafaia passou a exercer no Brasil, apesar dos destemperos verbais dele. Na entrevista, o pastor disse que “os ateus comunistas” da antiga União Soviética, do Camboja e Vietnã foram responsáveis por mais mortes do que todas as que ocorreram em consequência de “questões religiosas”. No Twitter, Eliane disse ter ficado “chocada” com a afirmação de Malafaia. O site de Malafaia comemorou a publicação da reportagem

Na última entrevista, Hitchens falou da relação Igreja-nazismo

Hitchens (direita) concedeu  a última entrevista de  sua vida a Dawkins da  New Statesman Em sua edição deste mês [dezembro de 2011], a revista britânica "New Statesman" traz a última entrevista do jornalista, escritor e crítico literário inglês Christopher Hitchens, morto no dia 15 [de dezembro de 2011] em decorrência de um câncer no esôfago.

Música gravada pelo papa Francisco tem acordes de rock progressivo. Ouça

Lenda do Caboclo D’Água deixa região de Mariana em pânico

Retrato falado do monstro Quando estava nadando nu em uma represa, o rapaz foi puxado para baixo por uma força misteriosa. Ao voltar à superfície, segundos depois, estava sem os testículos. Como ninguém  soube dizer que bicho tinha comido o escroto dele, a conclusão foi de que se tratou de mais um ataque do Caboclo D’Água. Histórias como essa têm deixado em pânico a população da região de Mariana, em Minas Gerais. Milton Brigolini Neme, 50, professor universitário, disse que o Caboclo D’Água é um velho conhecido de Mariana, mas nas histórias contadas pelos avós. Agora, o monstro faminto ronda os arredores da cidade, e pelo  menos 30 pessoas juram tê-lo visto. Ele seria o cruzamento de macaco, galinha e lagartixa. Dele, já foi feito um retrato falado, que corre de uma mão temerosa para outra. Até o professor universitário crê na possibilidade de que um bicho sobrenatural esteja  atacando pessoas e animais. Ele criou a Associação dos Caçadores de Assombração com o propós

Tecnofeudalismo: nos tornamos servos das grandes e tirânicas empresas de tecnologia

Textos bíblicos têm contradições, mas as teorias científicas também

por Demetrius dos Santos Silva , biblista, a propósito de Quem Deus criou primeiro, o homem ou os animais? A Bíblia se contradiz Por diversas vezes vejo pessoas afirmarem ideias sobre a Bíblia baseadas em seus preconceitos religiosos ou seculares. Todo preconceito é baseado em uma postura fanática onde o relativo é assumido como absoluto. Nesse sentido, qualquer ideia ou teoria deve-se enquadrar dentro da visão obtusa do fanático. É como uma pessoa que corta a paisagem para caber dentro de sua moldura. O quadro é assumido como se fosse a paisagem verdadeira e tudo o que está fora de seu quadro é desconsiderado. Quando o assunto é a Bíblia, muitas pessoas abandonam os critérios literários e assumem uma postura pseudocientífica que revela seus profundos preconceitos sobre as religiões e seus livros sagrados. A palavra Bíblia vem da língua grega “Biblos” e significa: livros. A Bíblia é uma biblioteca. Nela encontramos diversos gêneros literários: poesia, prosa, leis, oráculos pro