Pular para o conteúdo principal

Preconceito contra ateus é parte da longa história da intolerância religiosa

Textos de Platão já
estimulavam perseguição
 àqueles que não
acreditam em deuses

por Ricardo Oliveira da Silva

O que é o ateísmo? O filósofo inglês John Locke (1632-1704), considerado o “pai do liberalismo político” por ter defendido em sua obra que o governo civil seria fruto de um contrato realizado pelos indivíduos para proteger suas vidas, propriedades e liberdade, publicou em 1689 Carta acerca da Tolerância, uma defesa do princípio da tolerância religiosa entre os cristãos e uma crítica ao desejo dos governantes em tentarem impor um credo religioso para os súditos.

Para John Locke, era preciso respeitar a escolha religiosa dos indivíduos, uma decisão de foro íntimo. Contudo, doutrinas contrárias aos bons costumes necessários para a preservação da sociedade civil não deveriam ser toleradas. E esse seria o caso do ateísmo.

Nas palavras do filósofo inglês: “As promessas, os pactos e os juramentos, que são os vínculos da sociedade humana, para um ateu não podem ter segurança ou santidade, pois a supressão de Deus, ainda que apenas em pensamento, dissolve tudo.”

Como se pode notar por essa obra do final do século XVII, é antiga a noção de que ateísmo está associado com imoralidade e ameaça ao ordenamento da vida social.

O termo ateísmo possui origem etimológica na palavra grega atheos, onde o "a" quer dizer “sem” ou “não”, e theos significa “deus” ou “deuses”.

Portanto, nessa perspectiva ateísmo significa “a ausência de crença em Deus”ou “a crença na inexistência em Deus”, sem nenhuma conotação valorativa de viés moral ou ético.

Entretanto, ao longo da história do Ocidente o termo foi revestido por formas de compreensão de caráter depreciativo.

Na Grécia Antiga, período em que surgiu a palavra ateísmo, o filósofo Platão (428/27 a.c — 348/47 a.c) elaborou um sentido que associava o fato de ser ateu com imoralidade e perigo para a vida social e para a vida política.

Platão concebeu a realidade formada por um mundo material (efêmero e imperfeito) e um mundo imutável das ideias (essência de toda bondade e moralidade).

De acordo com o historiador francês George Minois, no livro História do Ateísmo: “Separando os dois [mundos] e colocando os valores imutáveis do lado dos deuses, Platão transforma os ateus em seres imorais, sem normas absolutas de conduta, incapazes de obedecer a outra coisa senão a suas próprias paixões.”

Nota-se pelo exposto que é muito antiga a ideia de que ateísmo é sinônimo de imoralidade e perigo social, um dissolvente dos laços éticos que unem uma sociedade. Porém, da mesma forma que esse significado é uma construção histórica, muitos indivíduos tentaram no passado, e ainda hoje se esforçam, em criar definições alternativas para o ateísmo.

É possível que um dos pioneiros nessa tarefa tenha sido o filósofo iluminista Barão de Holbach (1723-1789), quem em 1770 publicou Sistema da natureza, uma obra declaradamente ateísta. Atitude corajosa por parte do pensador em um cenário onde assumir publicamente uma identidade ateísta poderia resultar em represálias sociais e políticas.

Em Sistema da natureza há um capítulo onde Barão de Holbach discute se o ateísmo seria compatível com a moral. E a resposta para ele era que sim.

O ateu seria um indivíduo que conheceria a dinâmica da natureza e teria experiência de vida. E essa experiência lhe mostraria que os vícios causam danos ao indivíduo e ao coletivo, e que a justiça é necessária para a manutenção de toda a associação humana.

De acordo com Barão de Holbach, “o ateu é sempre forçado a chamar de vício e de loucura aquilo que prejudica a ele próprio, a chamar de crime aquilo que prejudica os outros [...].”

Nesse livro, ser ateu representa o cultivo de valores e princípios que possuem como meta uma vida ética.

Essa reflexão em torno da acepção de ateísmo, e sua relação com questões morais e éticas, esteve presente nas discussões feitas nas aulas de História do Ateísmo, disciplina ministrada por mim no primeiro semestre de 2019 no Curso de História da UFMS/CPNA.

Ainda que ser ateu possa ser visto como uma escolha individual, e para alguns algo que implica a inocuidade de elucubrações mais aprofundadas, o material produzido sobre o assunto torna possível uma pesquisa em torno da historicidade dos sentidos atribuídos ao ateísmo.

Ricardo Oliveira da Silva é docente do Curso de História da UFMS/CPNA. Esse texto foi publicado originalmente no site Nova News com o título "Reflexão sobre o Ateísmo".





Livro explica a origem da conotação pessimista que se atribui ao ateísmo

Crianças 'sem Deus' têm forte senso de moralidade, diz estudo

Ateísmo significa libertação do medo do sobrenatural

Moral avançou sem precisar da religião, afirma Dawkins

Crescimento do ateísmo no Brasil preocupa Igreja Católica



Receba por e-mail aviso de novo post

Comentários

Post mais lidos nos últimos 7 dias

90 trechos da Bíblia que são exemplos de ódio e atrocidade

Veja 14 proibições das Testemunhas de Jeová a seus seguidores

'Respeito na escola não pode ser amparado em divindade'

Título original: Escola laica, liberdade e igualdade por Roseli Fischmann  (foto) para Folha Roseli é professora na Universidade Metodista O lugar do ensino religioso não é na escola pública, mas na família e nas comunidades religiosas, para quem assim o quiser. Por ser ligado ao direito à liberdade de consciência, de crença e de culto, o ensino religioso depende de ser buscado, não de ser oferecido sob a égide do Estado, por ser matéria íntima, de escolha, segundo a consciência de cada pessoa. Daí o caráter facultativo para o aluno que a Constituição estabelece para o ensino religioso nas escolas públicas, buscando preservar tanto o direito à liberdade de crença quanto a laicidade inerente à escola pública. Razões de ordem ética, jurídica, histórica e pedagógica amparam essa posição. Crianças pequenas, de seis anos, iniciando o ensino fundamental, têm suas consciências tenras plasmadas pela escola. Quais as repercussões de conteúdos religiosos conflitantes ao que recebe no

Responda cristão: Deus criou as estrelas antes ou depois da Terra?

Igreja Mundial vende por R$ 91 fronha milagrosa dos sonhos

O pastor Valdemiro Santiago está vendendo por R$ 91 em programas de emissoras de TV e nos templos de sua igreja, a Mundial, fronha milagrosa dos sonhos, para o fiel colocar no travesseiro de drogado, desempregado ou de enfermos. O pagamento é por meio de depósito na conta da Igreja. A entrega é feita pelos Correios. O valor é uma referência ao Salmo 91, que, entre outras coisas, diz: “Não terás medo do terror de noite nem da seta que voa de dia”. O preço do Valdemiro está bem acima do cobrado pelo mercado. Para se ter ideia, o site do Magazine Luiza está oferecendo uma fronha avulsa branca 100% algodão de 70 cm por 50 por R$ 5,73. Pastor recomenda a fronha para drogado e desempregado A arrecadação da fronha milagrosa  — segundo o chefe da Mundial — se destina à “obra de Deus”, que é a construção no Rio da Cidade Mundial, ancorada em 91 colunas. Valdemiro tem aconselhado a quem “não tem conseguido dormir por causa de problemas e dificuldades” a comprar mais de uma fronha. Um pr

Bíblia diz que pastor tem de ganhar bem, afirma Malafaia

Malafaia disse  a Gabi  que ama os  gays como  ama os bandidos   Silas Malafaia (foto), da Assembleia de Deus Vitória em Cristo, afirmou que a “Bíblia diz que pastor deve ganhar muito bem”. Ainda assim, afirmou ao ser entrevistado por Marília Gabriela , faz 25 anos que ele abriu mão do salário da igreja. Falou que seus rendimentos vêm de palestras e da venda de livros e CDS de sua editora, a Central Gospel. O pastor levou a sua declaração do Imposto de Renda ao  programa "De Frente com Gabi", apresentado ontem pelo SBT, para mostrar que seus bens dão o total de R$ 4,5 milhões, em valores atualizados. Afirmou que, por isso, vai processar a revista americana Forbes por ter lhe atribuído uma fortuna de R$ 300 milhões, quantia que o colocaria na terceira posição na lista de pastores mais ricos do Brasil, abaixo apenas de Edir Macedo e Valdemiro Santiago. Malafaia chamou o jornalista que escreveu a reportagem de “safado, sem vergonha, caluniador”, porque, disse, que

Se as mulheres soubessem o que o cristianismo fez com elas, jamais entrariam em uma igreja

MISÓGINO, CRISTIANISMO SEM FOI IMPLACÁVEL COM AS MULHERES por Luís Carlos Balreira As mulheres brasileiras, geralmente, são as mais carolas e obedientes ao cristianismo, do que os homens. Elas fortalezas mantenedoras de crenças, crendices, superstições que tanto atrasaram a Ciências e suas tecnologias, bem como os direitos individuais, civis, e sociais de toda a humanidade. O cristianismo foi a religião mais feroz, assassina, prepotente, pretensiosa, arrogante, falsa, dissimulada, de todas. O cristianismo — ao contrário dos povos pré-colombianos, como Maias, Astecas, Incas e centenas de milhares de outras civilizações antigas — não tinha direito de ser tão feroz e genocida quanto os povos das florestas, porque mal ou bem tinha acesso a conhecimentos científicos, embora a maioria deles negado pelo próprio cristianismo que impunham a todos suas verdades mentirosas goela abaixo. A brutalidade dos sacrifícios humanos, religiosos, dos astecas, por exemplo, é uma desculpa es

Biólogo contesta afirmações de Malafaia sobre orientação sexual

Pastor chamou Vieira de "rapaz  metido a doutor em genética" O biólogo Eli Vieira (foto) gravou um vídeo de 15 minutos [ver abaixo] contestando as afirmações do pastor Silas Malafaia segundo as quais “ninguém nasce gay, homossexualismo é um comportamento”. Vieira disse que existe "uma farta literatura" que atribui ao gene uma contribuição na manifestação sexual durante o desenvolvimento de uma pessoa, além das influências do contexto em que vive. Tanto que, disse, quando um gêmeo é homossexual outro tende a ser também. Ele citou um estudo para explicar que a chance de o outro ser homossexual cresce na proporção em que aumenta o parentesco genético entre os dois. Vieira é doutorando em genética em Cambridge, no Reino Unido. Ele é também membro do LiHS (Liga Humanista Secular do Brasil). Recentemente, no Facebook, se assumiu como homossexual. No Twitter, sem entrar no mérito da argumentação de Vieira, a quem chamou de “pseudodoutor”, Malafaia disse q

Conar cede a religiosos e veta Jesus de anúncio da Red Bull

Mostrar Jesus andando no rio é uma 'ofensa ' O Conar (Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária) se curvou diante da censura religiosa e suspendeu o anúncio da Red Bull que apresenta uma versão bem humorada de um dos milagres de Jesus. Ao analisar cerca de 200 reclamações, o órgão concluiu que o anúncio “desrespeita um objeto da fé religiosa”. O “desrespeito” foi Jesus ter dito que, na verdade, ele não andou sobre as águas, mas sobre as pedras que estavam no rio. Religiosos creem em milagres, mas impor essa crença a um anúncio é atentar contra a liberdade de expressão de uma sociedade constituída pela diversidade cultural e religiosa. O pior é que, pela decisão do Conar, a censura se estende aos futuros anúncios da Red Bull, os quais não poderão “seguir a mesma linha criativa”. Ou seja, a censura religiosa adotada pelo Conar “matou”, nesse caso, a criatividade antes mesmo de sua concepção — medida típica de regimes teocráticos. "Jesus

Morre filósofo que combateu preconceito contra ateus

Kurtz escreveu livros sobre ética sem religião Paul Kurtz (foto), filósofo americano e ex-professor universitário de Buffalo (EUA), morreu aos 82 anos de idade em Amherst, no Estado de Nova York, neste fim de semana, de acordo com as agências internacionais. Ele se notabilizou por combater o preconceito contra ateus e agnósticos. Em 1991, fundou o CFI (Centro para a Investigação), entidade laica e humanista. Ele estava afastada da entidade desde 2010 por causa de disputa sucessória. Como militar, ajudou a libertar em 1945 o campo de concentração de Dachau. No obituário divulgado hoje (22), o CFI afirma que Kurtz foi uma das figuras mais influentes nos movimentos humanista e cético a partir do fim da década de 1960 e na primeira década do século 21. Kurt nasceu em uma família judia de Nova York. Escreveu ou editou cerca de 50 livros sobre ética sem religião, críticas da religião e dos fenômenos paranormais, e sobre o ceticismo. Ele se considerava um contestador de "sabe