Pular para o conteúdo principal

Linchamento da cientista Hipátia faz 1.600 anos. E a Igreja ainda não pediu perdão

Mulher brilhante, defendia a convivência entre todos os credos; foi assassinada por ordem de um bispo


Silvia Ronchev
filóloga e bizantinista

La Repubblica
jornal italiano

Na primavera do quinto século de nossa era, quando o cristianismo acabava de ser proclamado a religião oficial, uma mulher foi brutalmente assassinada em Alexandria do Egito por ordem de um dos bispos mais poderosos da então jovem Igreja. Ela foi agredida na rua, despida, arrastada para a catedral e aí dilacerada com estilhaços afiados.

Enquanto ela ainda respirava, seus olhos foram arrancados e os restos de seu corpo desmembrado foram lançados numa fogueira. Foi massacrada por clérigos cristãos a serviço de Cirilo de Alexandria, que na época era o belicoso e poderoso patriarca da megalópole do Egito. É também por isso que o assassinato ficou impune. A investigação imperial foi abafada, o magistrado responsável foi corrompido e Cirilo ainda hoje é um santo do calendário cristão.

A mulher chamava-se Hipátia e é considerada por muitos, também em âmbito eclesiástico, uma santa leiga. Era uma filósofa e cientista de imenso renome, que ensinava em cátedra pública não só as disciplinas em que era especialista, mas também a tolerância intelectual e religiosa, a resistência a todas as formas de fundamentalismo, a proteção das minorias, a separação do poder espiritual daquele secular. 

                                    Hipátia foi
                                    vítima do
                                    fundamentalismo
                                    religioso

Sua posição rigorosa e a ascendência que exercia sobre os governantes contrastavam, para o bispo e seus seguidores, com o fato de ser mulher. Foi isso que lhe valeu o martírio. Há quem considere a fogueira de Hipátia o primeiro exemplo de caça às bruxas da inquisição cristã. Definição necessária, mas não suficiente. O dela foi um assassinato político e um verdadeiro feminicídio, tingido de sadismo e ódio de gênero.

Ao lado das disciplinas específicas das escolas platônicas, Hipátia transmitia um ensinamento delicado particularmente útil para a transição religiosa do paganismo para o cristianismo. Não era necessário trair a própria fé ou boa-fé para se converter. 

O Uno de Plotino e o Deus dos cristãos podiam se identificar. O círculo de seus discípulos, que incluía a classe dirigente alexandrina, pagã, cristã e judaica, incluía também o augusto prefeito Orestes, o mais alto representante do governo central do império, que por quase um século tinha sede em Constantinopla e não mais em Roma.

Mas Hipátia não era apenas mestra e diretora de consciência dos quadros políticos seculares, seguidos de perto pela hierarquia eclesiástica encabeçada pelo bispo. 

Ela mesma era uma política. Defendeu os diferentes grupos das tentativas das frentes fundamentalistas de cada um subjugar os outros. Em particular, pouco antes de ser assassinada, ela havia defendido a antiga comunidade judaica de Alexandria do terrível pogrom ordenado por Cirilo. 

O fato de ser a única mulher admitida em discussões políticas reservadas aos homens não a embaraçava nem a tornava menos impassível e lúcida em sua dialética.

“Ela não tinha escrúpulos em aparecer nas reuniões masculinas. Pelo contrário”, recordam as fontes eclesiásticas cristãs moderadas, “por causa da sua extraordinária sabedoria todos os homens lhe eram deferentes e olhavam para ela, no máximo, com espanto e temor reverencial”.

A versão da facção fundamentalista é diferente, segundo a qual Hipátia era uma bruxa “que dedicava todo o seu tempo à magia, aos astrolábios e aos instrumentos musicais, e enfeitiçava muita gente com os seus enganos satânicos. E o governador da cidade”, o augusto prefeito Orestes, “honrou-a exageradamente, porque ela também o seduzira com os seus feitiços”. 

Por isso “uma multidão de crentes em Deus se colocou em marcha para castigá-la e, depois de a arrancar de sua cátedra, arrastou-a para dentro da igreja grande. Aqui rasgaram suas roupas, a massacraram e levaram os restos de seu corpo para queimar na fogueira. E todo o povo cristão cercou o patriarca Cirilo e o aclamou porque ele havia libertado a cidade”.

Foi "uma não pequena infâmia esta cometida por Cirilo e pela Igreja de Alexandria", afirmam, ao contrário, as fontes cristãs de parte moderada. "Porque assassinatos e guerrilhas e coisas assim são algo totalmente estranho ao espírito de Cristo". Será o juízo da igreja bizantina por cerca de um milênio. 

De fato, o proselitismo armado de Cirilo contradizia completamente a ideia, embora abstrata, de tolerância defendida cem anos antes pelo edito de Constantino de 313. 

O fato é que Cirilo pretendia "corroer e condicionar o poder do estado além de qualquer limite jamais concedido à esfera sacerdotal": aspirava a um verdadeiro poder temporal, mais próximo do modelo do papado romano do que da rigorosa separação de poderes sancionada pelo Estado bizantino.

Talvez também por isso, a posição oficial da Igreja de Roma sobre Hipátia, apesar da gravidade e do caráter quase terrorista do antigo assassinato, sempre tenha permanecido ambígua. 

Apenas a ala modernista do catolicismo celebrou sua figura, reabrindo os atos daquele processo nunca concluído; como aconteceu na vertente leiga, onde a sua memória foi cultivada e renovada ao longo dos séculos e Hipátia tornou-se um ícone da liberdade de pensamento e de cada martírio sofrido em seu nome.

Mas há pelo menos duas décadas o ícone de Hipátia adquiriu uma nova fortuna na mídia. Não se trata mais da transferência dos intelectuais iluministas, que viam nela a efígie da tolerância e da liberdade de pensamento; ou dos letrados românticos, que nela aclamavam a pureza heroica; ou dos partidários do secularismo anticlerical, ou do racionalismo científico em oposição aos dogmas da religião e da fé; ou dos amantes do esoterismo neopagão. 

Tudo isso faz parte da história de Hipátia ao longo dos séculos que vão do iluminismo ao século XX, uma sobrevida que pertence a um passado em que, substancialmente, as elites intelectuais reconheciam-se em sua personagem, na sua tolerância, independência, não pertença, no seu martírio leigo.

Linchada, hoje
Hipátia é símbolo
da luta das mulheres

Hoje, de ícone que era, Hipátia tornou-se um símbolo, porque muitas categorias diferentes de indivíduos se identificaram com ela. Hoje, o símbolo de Hipátia não é mais de elite, mas de massa. Porque Hipátia, para citar a epigrama de Páladas a ela dedicado na Antologia Palatina, é uma estrela que os séculos não só não apagaram, mas ao contrário tornaram mais viva, mais visível, mais compartilhável, mais universal, à medida que a educação, a leitura, a cultura e o conhecimento do passado estenderam-se das elites às massas.

A história de Hipátia fala a estas últimas porque é desenhada por uma constelação de símbolos impressos na experiência da maioria. A derrota, a discriminação, a violência, a injustiça aparentemente sem apelação, sem redenção no mundo em que vivemos, mas que recebe sua retribuição de uma assembleia de posteridade cada vez maior, constroem um dos mitos mais universais da condição humana.

Nessa mulher assassinada por um poder tão fanático e brutal como impune ao longo dos séculos, parecem reconhecer-se todos os injustiçados: quem foi perseguido por fidelidade a um ideal; ou foi vítima do fanatismo e da intolerância que ressurgiram no terceiro milênio, das discriminações religiosas, ideológicas, raciais, ou simplesmente se sente perturbada por ela.

Acima de tudo, em todos os lugares e para uma massa crescente de pessoas, o nome de Hipátia tornou-se o símbolo mais popular de uma injustiça milenar: aquela que a Igreja cristã infligiu ao gênero feminino, maltratada, subjugada, perseguida, quando não queimada na fogueira sob a acusação de bruxaria.

Muitas desculpas foram pedidas nas últimas décadas pela Igreja pelas culpas perpetradas ao longo de sua história, mas ainda não por aquelas cometidas contra as mulheres. 

Em tempos em que os feminicídios se multiplicam, em que o gênero feminino ainda é hoje vítima de injustiças, discriminações, violências físicas, um pedido de perdão para Hipátia, ou ao menos um pronunciamento respeitoso e consciente sobre seu caso, teria o sentido histórico e atual, preciso e universal, de um pedido de desculpas dirigido, através desta figura exemplar, a todo o gênero feminino, e de uma clara condenação da violência contra as mulheres.

> O título original do texto é Hipátia, a mulher a quem ninguém pediu desculpas, e a tradução é de Luisa Rabolini para IHU Online.

Comentários

Post mais lidos nos últimos 7 dias

90 trechos da Bíblia que são exemplos de ódio e atrocidade

Evangélicos lançam camiseta para ex-gay, ex-fornicador, etc.

Cada camiseta custa US$ 10 Quem disse que não existe ex-gay? O Passion for Christ Movement (Movimento da Paixão por Cristo), grupo evangélico com sede em Los Angeles, Califórnia (EUA), está vendendo pela internet camiseta não só para ex-homossexual como também para ex-fornicador, ex-masturbador, ex-prostituta, ex-ateu, ex-hipócrita etc. No site do movimento, há fotos de jovens que dão depoimento sobre como conseguiram escapar do mau caminho com a ajuda de Jesus. Não há informação sobre qual tem sido a camiseta a mais procurada. Há camiseta para todos tamanhos, desde a pequena  à extra-grande. Portanto, nenhum arrependido ficará sem o que vestir. Cada uma custa US$ 10 (um pouco mais de R$ 22, sem frete). O  endereço é http://p4cmtshirts.bigcartel.com/

Feliciano tenta se explicar, mas repete que África é amaldiçoada

Evangélicos adotam noivado sem sexo e beijo na boca

Rafael e Heloísa adotaram a castidade para conhecer o "verdadeiro amor" Rafael Almeida (foto), 22, estudante de engenharia civil, e Heloísa Lugato (foto), 24, formada em direito, estão apaixonados, namoram há mais de um ano e já marcaram a data do casamento, março de 2013. Até lá, eles não farão sexo e sequer darão beijo na boca, só vão se abraçar e pegar na mão. Eles adotaram noivado casto para conhecer o “verdadeiro amor”. São evangélicos da Cuiabá (MT), frequentam a Igreja Videira, do pastor Heitor Henrique Laranjo, 27, e fazem parte do movimento “Eu Escolhi Esperar”, que defende namoro sem relacionamento sexual. “Abdicamos do contato físico, do toque, para focar nosso relacionamento na amizade e em conhecer um ao outro”, disse Rafael. “Preferi me preservar.” Na expectativa dos jovens, a “pureza sexual” vai lhes garantir uma vida “emocionalmente saudável” e equilibrada. Heloísa afirmou que o seu noivado segue os princípios de santidade descritos na Bíbl...

1º Encontro Nacional de Ateus obtém adesão de 25 cidades

Lakatos: "Queremos mostrar a nossa cara " O 1º Encontro Nacional de Ateus será realizado no dia 12 de fevereiro com participantes de 25 cidades em 23 Estados (incluindo o Distrito Federal). A expectativa é de que ele reúna cerca de 5.000 pessoas. A mobilização para realizar o encontro – independentemente do resultado que possa ter – mostra que os ateus brasileiros, principalmente os mais jovens, começam a se articular em todo o país a partir da internet. A ideia da reunião surgiu no Facebook. Pelo IBGE, os ateus e agnósticos são 2% da população. O que representa 3,8 milhões de pessoas, se o censo de 2010, que apurou uma população de 190,7 milhões, mantiver esse índice. “Queremos mostrar a nossa cara”, disse Diego Lakatos (foto), 23, que é o vice-presidente da entidade organizadora do evento, a SR (Sociedade Racionalista). “Queremos mostrar que defendemos um Brasil laico, com direitos igualitários a todas as minorias, independentemente de crença ou da inexis...

Suposto ativista do Anonymous declara guerra a Malafaia

Grupo Anonymous critica o enriquecimento de pastores O braço brasileiro dos ativistas digitais Anonymous (ou alguém que está se passando por eles) declarou guerra ao Silas Malafaia, da Assembleia de Deus Vitória em Cristo, e aos demais pastores que pregam "mentiras" e “a prosperidade usando a Bíblia” para enriquecimento próprio. “Vamos buscar a fé verdadeira e a religião”, promete uma voz feminina gerada por um soft, de acordo com um vídeo de 14,5 minutos. As imagens reproduzem cenas de programas antigos do pastor pedindo aos fiéis, por exemplo, contribuição no valor de um aluguel, inclusive dos desempregados. Em contraposição, o vídeo apresenta o depoimento de alguns pastores que criticam a “teologia da prosperidade”. Resgata uma gravação onde Malafaia chama de “palhaço” um pastor cearense que critica a exploração dos fiéis. Como quase sempre, é difícil confirmar a autenticidade de mensagem dos Anonymous. Neste vídeo, o curioso é que os ativistas estão preocup...

Professora usa Folha Universal para ‘formar senso crítico’

Suplemento do jornal só sobre a igreja A professora de redação Mara Regina Aparecida Trindade dos Santos, da Escola Estadual Gonçalves Dias, da zona norte de São Paulo, usa o semanário “Folha Universal”, da Igreja Universal, como material de leitura dos seus alunos da quinta série. “[O semanário] serve para formar senso críticos dos alunos”, disse a professora. De acordo com orientação do MEC, os professores têm liberdade para escolher publicações como material de apoio. Mas, nesse caso, a Folha Universal é a única publicação que os alunos leem em classe. A coordenadora pedagógica Márcia Coltre Cordeiro afirmou que "o foco é na leitura dos textos, e não no seu conteúdo", como se fosse possível separar uma coisa da outra. A Folha Universal tem um suplemento, a Folha IURD, só com informações sobre a igreja. Na edição da semana passada, por exemplo, o suplemento informou que o blog do bispo Edir Macedo tem impressionado os acadêmicos por ter 100 mil ace...

Icar queixa-se de que é tratada apenas como mais uma crença

Bispos do Sínodo para as Américas elaboraram um relatório onde acusam autoridades governamentais de países do continente americano de darem à Igreja Católica um tratamento como se ela fosse apenas mais uma crença entre tantas outras, desconsiderando o seu “papel histórico inegável”. Jesuíta convertendo índios do Brasil Os bispos das Américas discutiram essa questão ao final de outubro em Roma, onde elaboraram o relatório que agora foi divulgado pela imprensa. No relatório, eles apontam a “interferência estatal” como a responsável por minimizar a importância que teve a evangelização católica na formação da identidade das nações do continente. Eles afirmaram que há uma “estratégia” para considerar a Igreja Católica apenas pela sua “natureza espiritual”,  deixando de lado o aspecto histórico. O relatório, onde não há a nomeação de nenhum país, tratou também dos grupos de evangélicos pentecostais, que são um “desafio” por estarem se espalhando “através de um proselitism...

Caso Roger Abdelmassih

Violência contra a mulher Liminar concede transferência a Abelmassih para hospital penitenciário 23 de novembro de 2021  Justiça determina que o ex-médico Roger Abdelmassih retorne ao presídio 29 de julho de 2021 Justiça concede prisão domiciliar ao ex-médico condenado por 49 estupros   5 de maio de 2021 Lewandowski nega pedido de prisão domiciliar ao ex-médico Abdelmassih 26 de fevereiro de 2021 Corte de Direitos Humanos vai julgar Brasil por omissão no caso de Abdelmassih 6 de janeiro de 2021 Detento ataca ex-médico Roger Abdelmassih em hospital penitenciário 21 de outubro de 2020 Tribunal determina que Abdelmassih volte a cumprir pena em prisão fechada 29 de agosto de 2020 Abdelmassih obtém prisão domicililar por causa do coronavírus 14 de abril de 2020 Vicente Abdelmassih entra na Justiça para penhorar bens de seu pai 20 de dezembro de 2019 Lewandowski nega pedido de prisão domiciliar ao ex-médico estuprador 19 de novembro de 2019 Justiça cancela prisão domi...

Cinco deuses filhos de virgens morreram e ressuscitam. E nenhum deles é Jesus