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Solução ao problema dos três corpos (ainda) não existe. Exceto talvez na ficção da Netflix

O problema foi apresentado há um século e meio, e matemáticos continuam tentando chegar a uma resposta


Afonso Jesús Población Sáez
professor catedrático do Departamento de Matemática Aplicada da Universidade de Valladolid, Espanha

The Conversationl
plataforma de informação produzida por acadêmicos e jornalistas

O problema dos n-corpos foi levantado pela primeira vez no concurso de aniversário patrocinado pelo Rei Óscar II da Suécia para comemorar o sexagésimo aniversário do seu nascimento, que teve lugar em 1889. E é um problema que um século e meio depois ninguém conseguiu resolvê-lo. E obviamente não se espera  a série Netflix que o integra na ficção apresente a solução.


Em 2004, um romance policial intitulado A incógnita Newton foi publicado na Espanha. Seu título original era "O problema dos três corpos" e seu enredo gira em torno da misteriosa morte de três matemáticos que trabalhavam para encontrar a solução para o famoso problema dos n-corpos. Esse romance, assinado por Catherine Shaw, é muito interessante do ponto de vista da divulgação matemática.

Dois anos depois deste primeiro romance, foi publicada a primeira parte de uma trilogia de ficção científica do escritor chinês Liu Cixin com o mesmo título, "O Problema dos Três Corpos". E foi seu trabalho que deu origem à série Netflix que promete se tornar um dos fenômenos midiáticos mais relevantes da temporada. Atrás deles estão os produtores do também famoso Game of Thrones, David Benioff e Daniel Brett Weiss.

Ficção sim, ciência nem tanto

O título da série e do romance refere-se ao comportamento de Trissolaris, um planeta enigmático que orbita num sistema de três estrelas, criando um caos gravitacional que dá origem a ciclos de extremos climáticos imprevisíveis. 

O planeta Trissolaris (com três sóis) sofre alternadamente de fases estáveis, com vida semelhante à da Terra, e estações caóticas e infernais, em que em poucos segundos a temperatura pode alterar-se em centenas de graus, transformando-a num inferno.

Na ficção, existe um jogo de realidade virtual chamado Três Corpos que simula o comportamento de três corpos com campos gravitacionais erráticos, o que está acontecendo no universo Trissolariano.

Explicar como se comporta esse sistema poderia resolver os seus problemas climáticos universais. Mas os matemáticos, na vida real, não encontram solução para o problema, e a proposta um tanto ingênua da série é que um geek de videogame tenha mais sorte.

Não é a primeira obra de ficção que se cobre de ciência como atração, sem falar de ciência. Se alguém espera encontrar uma resposta para o problema dos n-corpos, é melhor ficar longe.

Agora, vamos à questão matemática.


O problema dos três corpos
consiste em determinar o
movimento de três corpos
sujeitos à gravidade mútua.
Esta ilustração mostra os
seis planetas do sistema
HD110067, que juntos criam
um padrão geométrico
fascinante.

Thibaut Roger/NCCR PlanetS, CC BY-SA

Universo trisolário

O problema é determinar o movimento de três corpos sujeitos à gravidade mútua. 

O movimento dos três pode ser caótico ou regular e pode terminar na desintegração do sistema. Buscar soluções possíveis motivou a análise e o estudo de uma parte importante da matemática, os sistemas dinâmicos (a teoria do caos é um exemplo, nos casos de dinâmica não linear), que na atualidade planta uma infinidade de perguntas abertas no processo de investigação.

O primeiro a estudá-los foi Newton. Graças às suas leis, dados dois corpos de qualquer massa, sujeitos à atração gravitacional mútua e a partir de determinadas posições e velocidades, podemos determinar, em qualquer instante, suas posições e velocidades. 

Assim, se o sistema solar fosse composto pelo Sol e por um único planeta, seguiria uma órbita elíptica e conseguiríamos determinar exatamente onde estaria a qualquer momento. Mas quando o sistema consiste em mais de dois corpos, resolver as equações de movimento torna-se complicado.

Asteroides troianos

Para três corpos, os matemáticos encontraram um pequeno número de casos especiais nos quais as órbitas das três massas são periódicas.

Em 1765, Leonhard Euler conseguiu descrever com matemática um modelo no qual três massas começam alinhadas e giram para permanecerem alinhadas. No entanto, tal conjunto de órbitas é instável e não é encontrado em nenhum lugar do sistema solar.

Em 1772, Joseph-Louis Lagrange identificou uma órbita periódica na qual três massas se encontram nos vértices de um triângulo equilátero. Nesse caso, cada massa se move em uma elipse de tal forma que o triângulo formado pelas três permanece sempre equilátero. Os chamados asteroides troianos de Júpiter movem-se de acordo com esse esquema. Eles formam um triângulo com Júpiter e o Sol. Até 2021, foram descobertos 9.800 asteroides troianos de Júpiter diferentes.

Mais tarde, Henri Poincaré e outros mostraram que geralmente é impossível obter uma solução geral, expressa como uma fórmula explícita, para o problema dos três corpos. Ou seja, dados três corpos numa configuração aleatória, não se pode prever com precisão qual trajetória eles seguiriam.

A órbita em forma de oito

Em 1993, Christopher Moore descobriu, por meio de cálculos de computador, que três massas iguais podem se perseguir em torno da mesma curva em forma de oito no plano. 

Em 2000, os matemáticos Richard Montgomery (Universidade da Califórnia em Santa Cruz) e Alain Chenciner (Université Paris VII-Denis Diderot) redescobriram a órbita em oito descrita por Moore e encontraram uma solução exata para as equações de movimento de três corpos que interagir gravitacionalmente.

Carlès Simò (Universidade de Barcelona) mostrou por meio de simulações de computador que a órbita em forma de oito é estável, que persiste mesmo quando as três massas não são exatamente iguais e que pode sobreviver a uma pequena perturbação sem alterações graves.

Sistemas planetários extrasolares

A possibilidade de tal sistema de três corpos existir em algum lugar do universo é muito pequena. No entanto, a descoberta de sistemas planetários extrasolares incomuns abre novos cenários espaço-temporais nos quais tais movimentos poderiam ocorrer.

A existência da órbita em forma de oito de três corpos levou os matemáticos a procurar órbitas semelhantes envolvendo mais massas.

Simò encontrou centenas de soluções exatas para o caso de n massas iguais que percorrem uma curva plana fixa, embora não sejam estáveis. Órbitas tridimensionais também foram modeladas. Essas estruturas e suas trajetórias periódicas são chamadas de coreografias.

Assim, admitindo a ficção, o universo trissolariano poderia ser composto por planetas que descrevem uma órbita de oito, mas isso é algo que a série Netflix não contará.

> Este artigo foi escrito originalmente em espanhol.

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