Pular para o conteúdo principal

Jornalismo se diz plural, mas em religião o viés de sua cobertura é cristão

Cristãos são maioria, mas maioria não é sinônimo de democracia

JULIANA ROSAS
Observatório da Ética Jornalística

“A palavra é problemática. Existem dois tipos de ‘deus’ no mundo e as pessoas tendem a misturá-los. Há um tipo de deus, o deus misterioso, sobre o qual nada sabemos. A principal característica desse deus é justamente que ele é misterioso e nós humanos não conseguimos compreendê-lo. Como começou o Big Bang ou como a vida começou, todas as coisas que a ciência não sabe. Estou perfeitamente satisfeito com este deus misterioso. Mas há um tipo completamente oposto de deus, que se concretiza como deus legislador e sobre este deus se conhece muito. Sabe-se exatamente o que este deus pensa sobre a moda feminina, sobre a sexualidade, em quem você deve votar. De alguma forma, as pessoas trocam de deus e por causa disso as mulheres deveriam se cobrir, dois homens não deveriam fazer sexo um com o outro e você deveria votar neste ou naquele partido. Se há uma força responsável pelo grande mistério da vida no universo, pelos buracos negros e galáxias, não acho realmente que ele se preocupa com o código de vestimenta das mulheres.”


Este é um trecho de uma fala do historiador Yuval Noah Harari, autor do best seller “Sapiens – Uma Breve História da Humanidade”, entre outros livros. O “terrivelmente evangélico” indicado a ocupar a vaga de ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) usa este segundo tipo de deus em várias de suas declarações.

“Os verdadeiros cristãos não estão dispostos jamais a matar por sua fé, mas estão sempre dispostos a morrer para garantir a liberdade de religião e de culto”, disse André Mendonça em abril 2021. A ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves, também teve sua cota extrapolada de decisões baseadas exclusivamente em sua religião e quando questionada sobre a laicidade do Estado, proferiu uma das suas mais famosas frases: “O Estado é laico, mas a ministra é terrivelmente cristã”.

Se as pessoas tendem a considerar sua fé como algo bom, usar o advérbio “terrivelmente” seguido de qualquer adjetivo deveria ser questionável. Mas como sempre foi comum no jornalismo, declarações são repetidas sem questionamento. Coloca-se aspas, cita-se o autor e tudo bem. A imprensa acredita que está sendo objetiva e imparcial. Frente à extrema polarização política que tomou o país há alguns anos, resvalando para outras áreas, como religião e comportamento, muitos se esquecem da história.

Numa época não tão longínqua assim, não havia Estado ou este era a Igreja. Não havia leis e pessoas inocentes foram queimadas vivas. A fogueira foi apenas uma das consequências de ter poderes religiosos governando a vida da população. Indivíduos mataram e morreram em nome de seu deus, fé ou religião. Esta nem sempre foi boa e pura. Foi corrompida pela humanidade por questões pessoais e mesquinhas. O jornalismo estaria sendo informativo, e também — por que não? — objetivo ao contextualizar declarações e notícias. De cunho religioso ou não.

Mas não é só do atual governo que o jornalismo extrai suas citações religiosas. Cristãs, para ser mais exata. Com a morte de mais de 600 mil brasileiros por Covid-19 desde o início da pandemia, boa parte da população recorreu à fé para explicar a tragédia. Quando ela chegou a famosos, o jornalismo reverberou. Há quem tenha dito que a morte de Paulo Gustavo foi castigo ou “porque deus quis”. Outras prontamente esclareceram que o que o matou foi a doença, agravada pela falta de vacina e pelas inações governamentais.

Não ouvimos dos céus se alguém desceu para buscar o ator e comediante ou algum dos mais de 600 mil mortos, mas as ações desumanas do governo puderam ser vistas no dia a dia e compuseram o relatório da CPI da Covid. 

Os mais sensíveis certamente estarão esbravejando sobre a liberdade religiosa ou de expressão, citando até um dos mais ridículos conceitos que se ousou usar no país: cristofobia. Entretanto, em nome da democracia e dos valores jornalísticos, é um debate que necessita ser travado seriamente.

O jornalismo tradicional afirma ser plural, objetivo, apartidário. Sempre ouvindo todos os lados da história, não assumindo ideologias ou partidos.

Se é uma terrível ofensa ao jornalismo dizer que ele estaria defendendo esta ou aquela ideologia, partido x ou y, por que não podemos dizer que sua tendência de comportamento e cobertura é cristã e que nesse campo deveria também ser objetivo e plural? Somente porque o cristianismo é a religião majoritária no país?

Cristãos são maioria no Brasil mas maioria, ao contrário do que muitos pensam, não é sinônimo de democracia. É, entre outras definições, respeito às minorias. Mais do que antes, atualmente procura-se mais aceitação por diversos movimentos, minoritários ou não, como o negro, feminino, indígena, LGBTQIA+, etc. E tem se buscado também mais consideração pelas religiões de matriz africana.

Para quem também não sabe, o Brasil é um Estado laico, independentemente da religião da população. A Constituição assegura a liberdade de crença, mas também que alguém não pode justificar um crime pela religião e há leis e ações que coíbem a intolerância religiosa. A justiça é “cega” não para deixar de ver malfeitos, mas para que todos sejam iguais perante ela.

A laicidade da justiça existe para que as leis estejam acima de fés individuais e garantir a equidade de todos perante a legislação. Religiões têm suas crenças e ações, individuais ou coletivas e o Estado não pode se guiar por algo que pode beneficiar uns e prejudicar outros.

Para o jornalismo 'plural',
só há uma religião

Em uma tragédia e caso tornado midiático mais recente, a morte de Marília Mendonça, a religião no jornalismo esteve presente especialmente nas falas de amigos e familiares. Sobre discursos políticos, estudos e críticas jornalísticas afirmam que somente reproduzir tais falas, sem contexto e acriticamente, pode propagar notícias falsas e espalhar desinformação.

Inúmeros casos aconteceram com atual presidente do Brasil e o ex-presidente americano. O presidente brasileiro se diz aliado da comunidade judaica, mas tem ações e aliados que exaltam a supremacia branca. Comporta-se em visitas a países árabes e muçulmanos, mas faz declarações islamofóbicas.

A fé acima de outros valores acaba fazendo com que pessoas tratem mal seu semelhante e justifiquem doenças ou desastres, algo que, por princípio moral, não deveriam fazê-lo. 

Por preconceito e comentários maldosos, muitos evitam declarar sua religião ou falta desta no ambiente de trabalho. O objETHOS observa a ética jornalística e nada mais antiético do que a intolerância religiosa. Quando esta resvala no fanatismo, já se torna criminosa. 

O jornalismo pode, em vez de normalizar comportamentos antiéticos em nome da religião, expô-los, criticá-los e contextualizá-los à luz da democracia. Quando não o faz, deixa de cumprir seu dever ético, democrático e de serviço público.

Por séculos, religião e política andaram juntas e não foi fácil a separação. Nem na prática nem nas mentes. “O cristianismo na política deixou de ser sinônimo de justiça social e igualdade, nos anos 1970 e 1980, para ser agora sinônimo de aversão a direitos e liberdades. E a Bíblia deixou de ser sinônimo de libertação, para ser um chicote que se estala no lombo de minorias e meio de opressão”, afirmou o professor e pesquisador Wilson Gomes.

Muitas vezes, a cruz vira espada e políticos apelam “à radicalização religiosa para dividir o país e corroer ainda mais a democracia”. Muitos brasileiros são terrivelmente cristãos e não conseguem perceber que o Estado é melhor laico e certos tipos de fé fazem mal e não bem. Mas a sociedade brasileira não está preparada para esta discussão. E o jornalismo do país é receoso em iniciá-la.

> Juliana é doutorando do Programa de Pós-Graduação em Jornalismo da UFSC. Esse texto foi publicado originalmente no site objEETHOS (Observatório da Ética Jornalista) sob o título "O Jornalismo e o Terrivelmente Cristão".

Jornalista da Folha acha que Estado laico é coisa só de ateus


Jornalista Camarotti se comporta como se fosse coroinha do papa


Comentários

O tal "deus misterioso" é raro das pessoas acreditarem. São as excessões de "acreditar em Deus sem religião".
O mais comum dessa crença em Deus é ter regrinhas, quase sempre esquisitas, sem sentido e até preconceituosas. Mesmo que de ordem meramente pessoal. Ou seja, Deus É também uma religião quase sempre, ainda que não oficial. Como pelo exposto do artigo, o mais comum ainda são os esquemas organizados e institucionalizados. Ah, aí sim, é *A* desgraça! Isso ocorre mesmo com religiões (ou outras crenças de fé) sem Deus, quando estas assumem protagonismo organizacional e até institucional.

Do artigo:
"“O cristianismo na política deixou de ser sinônimo de justiça social e igualdade, nos anos 1970 e 1980, para ser agora sinônimo de aversão a direitos e liberdades. E a Bíblia deixou de ser sinônimo de libertação, para ser um chicote que se estala no lombo de minorias e meio de opressão”, afirmou o professor e pesquisador Wilson Gomes."

Pelo jeito ele nunca leu a Bíblia, ou nem a entendeu... No MÍNIMO é promover erros de raciocínio lógico pelas inconsistências, hipocrisias. Promover a dissonância cognitiva etc.
Agora do "Cristianismo com'justiça social'" ONDE? Só se for com pessoas cis-hétero e as mulheres inferiores. O restante das pessoas no mínimo inferiores para até "doença", "aberrações". Fora considerar outras vertentes cristãs, crenças e particularmente descrenças como "algo ruim". Há ALGUMAS pessoas de bem real no meio cristão, são as excessões.
Por isso no artigo o fator laico no Estado é melhor para todos. E vou além, o fator laico deve ser em TUDO. Nas concessões PÚBLICAS, na Educação, exceto quando a mesma é específica religiosa aos ADULTOS etc. Também impedir que grupos religiosos promovam valores que estejam FORA de seus âmbitos.
Realmente, quase todo jornalismo é muito tendencioso e enaltecedor das crenças, seja por pura ideologia, como "nem aí", valem os patrocínios. No caso do citado "Cristianismo", NEM ao menos há espaço adequado aos das excessões. É como o Cristianismo só se resumissem nas vertentes intolerantes e antilaicas.

Post mais lidos nos últimos 7 dias

90 trechos da Bíblia que são exemplos de ódio e atrocidade

Santuário Nossa Senhora Aparecida fatura R$ 100 milhões por ano

Origem da religião: ensinamentos dos nossos ancestrais monstruosos

Título original: Origem da religião na pré-história  por Luiz Felipe Pondé para Folha Muitos leitores me perguntaram o que aquela peça kafkiana cujo título era "Páscoa" queria dizer na coluna do dia 2/4/2012. O texto era simplesmente isto: a descrição de um ritual religioso muito próximo dos centenas de milhares que devem ter acontecido em nossa Pré-História. Horror puro, mas é assim que deve ter começado toda a gama de comportamentos que hoje assumimos como cheios de significados espirituais. Entender a origem de algo "darwinianamente", nada tem a ver com a "cara" que esse algo possui hoje. Vejamos o que nos diz um especialista. O evolucionista Stephen Jay Gould (1941-2002), num artigo de 1989 cujo título é The Creation Myths of Cooperstown , compara a origem mítica do beisebol (supostamente nascido em território americano e já "pronto") com a explicação evolucionaria do beisebol. Gould está fazendo no texto uma metáfora do...

Vicente e Soraya falam do peso que é ter o nome Abdelmassih

Neymar paga por mês R$ 40 mil de dízimo à Igreja Batista

Limpem a boca para falar do Drauzio Varella, cristãos hipócritas!

Varella presta serviço que nenhum médico cristão quer fazer LUÍS CARLOS BALREIRA / opinião Eu meto o pau na Rede Globo desde o começo da década de 1990, quando tinha uma página dominical inteira no "Diário do Amazonas", em Manaus/AM. Sempre me declarei radicalmente a favor da pena de morte para estupradores, assassinos, pedófilos, etc. A maioria dos formadores de opinião covardes da grande mídia não toca na pena de morte, não discutem, nada. Os entrevistados de Sikera Júnior e Augusto Nunes, o povo cristão da rua, também não perdoam o transexual que Drauzio, um ateu, abraçou . Então que tipo de país de maioria cristã, tão propalada por Bolsonaro, é este. Bolsonaro é paradoxal porque fala que Jesus perdoa qualquer crime, base haver arrependimento Drauzio Varella é um médico e é ateu e parece ser muito mais cristão do que aqueles dois hipócritas.  Drauzio passou a vida toda cuidando de monstros. Eu jamais faria isso, porque sou ateu e a favor da pena de mor...

É impossível livrar poder público da eligião, afirma jornalista

Título original: O nome de Deus por Hélio Schwartsman para Folha "'Deus seja louvado' no real não causa aborrecimento grave" Num ponto eu e a CNBB estamos de acordo: há coisas mais essenciais com as quais se preocupar do que o dito "Deus seja louvado" nas cédulas de real. Ainda assim, vejo com simpatia o pedido do Ministério Público para que a expressão seja retirada das notas. Sou ateu, mas convivo bem com diferenças. Se a religião torna um sujeito feliz, minha recomendação para ele é que se entregue de corpo e alma. O mesmo vale para quem curte esportes, meditação e literatura. Cada qual deve procurar aquilo que o satisfaz, seja no plano físico ou espiritual. Desde que a busca não cause mal a terceiros, tudo é permitido. Isso dito, esclareço que não acompanho inteiramente a tese do procurador Jefferson Aparecido Dias de que o "Deus seja louvado" constrange os que cultuam outras divindades ou não creem. Em teoria, isso pode ocorrer...

MP estuda pedir demolição de templo da Mundial que roubou rua

O Ministério Público do Estado de São Paulo poderá enviar à Justiça um pedido para a demolição do templo que a Igreja Mundial está construindo em São Paulo, no bairro Santo Amaro, zona sul. Com a conivência de autoridades municipais, a construção roubou 137 metros de um terreno previsto em lei para ser o prolongamento da rua Bruges, até a Benedito Fernandes, conforme mostra o mapa acima.   Hussain Aref Saab, que foi diretor do Aprov (Departamento de Aprovação de Edificação), da Prefeitura, teria participado de manobras ilegais para permitir que a igreja de Valdemiro Santiago assumisse um pedaço da rua. A informação é de Diego Zanchetta e Rodrigo Burgarelli, do Estado de S.Paulo. Saab se afastou do Aprov após denúncias de que ele se tornou proprietário de 125 apartamentos em 7 anos, levantando a suspeita de enriquecimento ilícito. As obras começaram em março de 2011 sem alvará, apenas com documento provisório chamado “direito de protocolo”. Os vizinhos alertaram as autoridade...

Universidade planeja criar curso de pós-graduação em psicologia cristã

com atualização O UDF (Centro Universitário do Distrito Federal) planeja criar um curso de três meses de pós-gradução em psicologia cristã, que será destinado aos graduados em psicologia.  O CFP (Conselho Federal de Psicologia) já se manifestou contra o novo curso porque entende que a psicologia, por ser uma ciência, não tem nada a ver com o cristianismo ou com qualquer outra crença religiosa. Informou que, caso se confirme a criação do curso, vai recorrer às instâncias competentes contra o que considera ser uma afronta da universidade à ética profissional. Criado em 1967, o UDF é privado e não tem vínculo com igreja ou entidade religiosa. Na graduação, oferece, entre outros cursos, ciências biológicas, enfermagem, engenharia mecânica e direito. Na pós-graduação, tem mais de 30 cursos em diversas áreas. As aulas de alguns deles são pela internet. O UDF faz parte do Grupo Cruzeiro do Sul Educacional, que também congrega o Colégio Cruzeiro do Sul, Universidade Cruzeiro...

Versão legendada em português mostra trailer de filme anti-islã

Tipologia escolhida  para a legenda dificulta a leitura Começou a se difundir hoje (23) na internet uma versão de 13 minutos com legendas em português do trailer do polêmico filme anti-islã Innocence of Muslims ("A Inocência dos Muçulmanos"). O blog anti-Nova Ordem Mundial informa ter traduzido o vídeo não porque concorde com a mensagem do filme, mas para que os brasileiros “tirem suas próprias conclusões”. O dono do blog se assina como Emerson. Dezenas de pessoas já morreram em países de cultura islâmica durante protesto contra o filme. Um ministro do Paquistão está oferecendo US$ 100 mil (R$ 200 mil) pela morte do diretor do filme, que seria o egípcio cristão copta Nakoula Basseley Nakouda, radicado nos Estados Unidos. No Brasil, a comunidade muçulmana fez uma manifestação discreta. O Google tem resistido às pressões, inclusive do governo americano, para tirar o trailer do Innocence of Muslims do Youtube. Apenas o bloqueou na Líbia e Egito, onde a indignação te...