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Estado brasileiro ainda não é totalmente laico

por Ranilson Alves da Silva 

Estado  brasileiro não tinha
 nada de laico em sua formação
Tido como um país exemplo para o mundo em termos de tolerância, convivência pacífica entre os povos do mundo todo — que para cá vieram e encontraram campo fértil para viverem culturalmente de acordo com suas origens e crenças religiosas — o Brasil, de algumas semanas para cá vem sendo sacudido por uma grande discussão sobre direitos de liberdade religiosa, vida sexual, manifestações, minorias, etc., depois que o deputado Marcos Feliciano (PSC-SP), assumiu a presidência da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara Federal.

Como é evangélico de uma corrente radical, fundamentalista e, diante de inúmeros vídeos mostrados com suas desastradas declarações sobre negros, gays, mulheres e católicos, agitou-se intensamente a discussão em torno do Brasil como Estado laico, ou seja, sem ligações (pelo menos oficiais) entre o Estado, representado pelo governo e a religião em si.

A laicidade não existia no Império, já foi maior no início do período republicano, pelo menos na educação pública, e é hoje maior do que naquela época na legislação sobre a família. É como a democracia. O Estado brasileiro é hoje mais democrático do que foi, mas há muito a fazer para ampliá-la. Já houve recuos, mas os avanços prevalecem.

Em suma: o Estado brasileiro não é totalmente laico, mas passa por um processo de laicização. Na sua formação, o Estado brasileiro nada tinha de laico. A Constituição do Império (1824) foi promulgada por d. Pedro I “em nome da Santíssima Trindade”. O catolicismo era religião oficial e dominante. As outras religiões, quando toleradas, eram proibidas de promover cultos públicos. As práticas religiosas de origem africana eram proibidas, consideradas caso de polícia, como até há pouco tempo. O clero católico recebia salários do governo, como se fosse formado de funcionários públicos.

O Código Penal proibia a divulgação de doutrinas contrárias às “verdades fundamentais da existência de Deus e da imortalidade da alma”. Os professores das instituições públicas eram obrigados a jurar fidelidade à religião oficial. Só os filhos de casamentos realizados na Igreja Católica eram legítimos. Todos os outros eram “filhos naturais”. Nos cemitérios públicos, só os católicos podiam ser enterrados.

A situação de hoje é bem diferente. As sociedades religiosas não pagam impostos e recebem subsídios financeiros para suas instituições de ensino e assistência social. Certas sociedades religiosas exercem pressão sobre o Congresso, dificultando a promulgação de leis no que diz respeito à pesquisa científica, aos direitos sexuais e reprodutivos. A união homoafetiva, etc. A chantagem religiosa não é incomum nessa área, como a ameaça de excomunhão. Há símbolos religiosos nas repartições públicas, inclusive nos tribunais.

A expressão Estado laico não consta da Constituição de 1988, mas parte de seu conteúdo pode ser encontrado nela: entre as vedações à União, aos estados, ao Distrito Federal e aos municípios, está a de: “Estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-las, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público”. (art. 19 da Constituição Federal).

O Estado brasileiro tem tratados com o Vaticano, ente estatal católico, em matérias como a capelania militar, além de concordatas implícitas, como a que mantém o laudêmio. Além da família imperial, dioceses católicas e irmandades religiosas beneficiam-se do laudêmio nas áreas centrais das cidades mais antigas do país. Se as igrejas evangélicas não recebem recursos do laudêmio, beneficiam-se de outros privilégios, como as concessões de emissoras de rádio e televisão. O art. 150 da Constituição proíbe a criação de impostos federais, estaduais e municipais sobre “templos de qualquer culto”.

Durante a preparação da visita do papa Bento 16, em maio de 2007, o Vaticano pressionou o governo brasileiro a assinar um pacto para consolidar os privilégios da Igreja Católica. Os entendimentos continuaram, secretamente, e culminaram na assinatura da Concordata, em Roma, em novembro de 2008.

Nesse processo de construção do Estado laico, há avanços e recuos. Aqui vão dois exemplos. Primeiro, um exemplo de avanço seguido de recuo. A Constituição Republicana de 1891 determinava que fosse laico o ensino ministrado nas escolas públicas, mas a aliança do governo Vargas com a Igreja Católica fez com que o ensino religioso voltasse às escolas públicas.

Agora, um exemplo de avanço da laicidade do Estado, este bem consolidado: apesar da longa e sistemática oposição do clero da Igreja Católica contra a possibilidade legal de dissolução da sociedade conjugal, o divórcio foi instituído, por lei do Congresso Nacional, em 1977.

Hoje, graças ao crescimento do movimento evangélico no Brasil, construiu-se até uma bancada que segue a orientação político-religiosa das lideranças pentecostais.

Esse fenômeno iniciado por Feliciano põe em risco a paz pública na medida em que compromete as boas relações de convivência entre os mais diversos segmentos religiosos do Brasil. Agressões e ataques deste ou daquele grupo podem desencadear uma onda de intolerância, algo incompatível com o espírito do povo brasileiro, na medida em que a Constituição garante a todos o direito à vida, de ir e vir, à manifestação do pensamento, à liberdade de credo e de crença.





Ranilson Alves da Silva é jornalista e acadêmico de direito. Esse artigo foi publicado originalmente na Folha da Região.

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Religião no Estado laico


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