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Padre afirmava que primeiros fósseis do Brasil eram de monstros bíblicos, diz livro de 1817



Somente a partir do final
século XVIII, análises
científicas começaram
a se sobrepor à visão
religiosa dos animais
de milhões de anos


Enrico Di Gregorio
jornalista

Agência Fapesp
Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo

Ao encontrar uma gigantesca ossada de um animal pré-histórico no Nordeste, o padre português Manuel Aires de Casal (1754-1821) ficou abismado. Não entendia qual animal poderia ter sido o dono daquelas costelas com “um palmo e meio de largura” e presas com quase uma braça, medida equivalente a 1,8 metro (m). 

No livro Corografia brasílica, de 1817, uma das primeiras publicações com registros de fósseis no Brasil, ele comentou que “foram precisas todas as forças de quatro homens” para coletar a mandíbula inferior do intrigante animal.

Casal relata que se lembrou dos fósseis de mamutes pré-históricos da América do Norte, mas sua conclusão seguiu outro caminho: “Talvez fosse este quadrúpede [o] Behemoth, de que fala Jó no cap. XL, v. 10”. Behemoth era o equivalente terrestre à criatura marinha mitológica conhecida como Leviatã, descrita como tendo a dieta de um boi, “ossos como tubo de bronze” e “ossada como barras de ferro”. 

A descrição fazia sentido porque ele supôs que também estava descrevendo um animal herbívoro, de grande porte, pesado e forte.

Na Europa, naturalistas e filósofos discutiam desde a Grécia Antiga as possíveis origens de fósseis de animais como tubarões e amonites, um grupo extinto de moluscos.

 As descobertas alimentaram as discussões sobre a diversidade de formas de vida na Terra, que levaram a duas hipóteses: grandes catástrofes teriam extinguido espécies antigas ou os animais foram lentamente substituídos por seus representantes vivos. 

O naturalista inglês Charles Darwin (1809-1882) apoiou sua teoria sobre a evolução dos seres vivos em fósseis encontrados na América do Sul; no Uruguai, ele comprou um crânio quase completo de um grande mamífero fóssil, depois descrito como Toxodon platensis.

No século XVIII, quando a importância dos fósseis para o entendimento da história da vida na Terra estava consolidada na Europa, o naturalista francês Georges Cuvier (1769-1832) diferenciou os restos de mastodontes dos elefantes, mas Casal passou ao largo desses debates. 

Segundo o paleontólogo Antonio Carlos Sequeira Fernandes, do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), as conclusões se devem à visão religiosa de Casal, que foi sacerdote na Santa Casa de Misericórdia no Rio de Janeiro e no Crato, no Ceará. 

“Os ossos que ele descreveu eram do esqueleto de um mastodonte”, diz Fernandes, que pesquisa a história da paleontologia no Brasil desde o final da década de 1990.

Próximos aos mamutes, os mastodontes viveram entre 23 milhões e 11,7 mil anos atrás. Tinham até 3 m de altura, com fêmures de 1 m de comprimento e presas com uma média de 1,4 m. As mandíbulas que Casal descreveu podiam ter até 30 dentes com 18 cm cada. 

“Não sabendo o que de fato eram, os primeiros naturalistas ficavam muito surpresos com os ossos monstruosos que encontravam”, reconhece Fernandes.

No século XVIII, Casal não foi o único a confundir mastodontes com monstros. Um dos primeiros registros no Brasil de animais de milhões de anos atrás foi de João Batista de Azevedo Coutinho de Montaury (?-1810), governador da capitania do Ceará.

Em outubro de 1784, ele enviou por navio para o ministro português Martinho de Melo e Castro (1716-1795) várias caixas com material de interesse científico. 

Uma delas continha “seis pedaços de ossos monstruosos”, como detalhou na carta que acompanhou a encomenda. 

Antes de embarcar a carga, Montaury havia se espantado com a similaridade dos ossos com esqueletos de elefantes da África, uma vez que não havia nessa parte do Nordeste “animal algum tão monstruoso, nem tradição de que jamais o houvesse nesta capitania, a que se possam atribuir aqueles ossos”, como também escreveu ao patrício.



Representação artística
de um tigre-dentes-de-sabre,
que viveu no Brasil há
cerca de 10 mil anos

Fernandes propõe que as ossadas de Montaury também eram de mastodontes, mas nunca pôde confirmar: “Procurei nos museus da Ajuda e de História Natural em Portugal, mas ninguém sabia de nada. Provavelmente se perderam”.

Ao menos ele encontrou o local onde os ossos provavelmente foram coletados, a partir de informações que constavam na carta para Melo e Castro: uma cavidade em uma rocha em uma fazenda no atual município cearense de Sobral, como relatado em um artigo de 2013 na revista Filosofia e História da Biologia.

As primeiras coleções

Ainda no século XIX, no município de Prados, em Minas Gerais, negros escravizados encontraram em uma mina um osso petrificado, no qual a enxada com que trabalhavam havia batido. Pensaram que poderiam ser os restos de uma árvore. Até que acharam um dente. A notícia chegou aos ouvidos de Luís da Cunha Meneses (1743-1819), governador das capitanias de Minas Gerais e Goiás. 

Em um ofício enviado a Melo e Castro, ele observou: “Não me parecendo desprezível uma semelhante extraordinária notícia […], mandei logo o sargento-mor Pires Sardinha examinar o estado do dito esqueleto e sua qualidade”.

O naturalista Simão Pires Sardinha (1751-1808) descreveu o que chamou de “monstruosa ossatura”; como já estava deteriorada, não conseguiu identificar a que animal teria pertencido, mas também a enviou a Lisboa. 

Em Portugal, o material foi estudado pelo médico e naturalista italiano Domingos Vandelli (1735-1816) e resultou no primeiro artigo científico sobre fósseis brasileiros, publicado em 1797 nas Memórias da Academia Real das Sciencias de Lisboa.

Com o tempo, emergiram explicações mais precisas. No final do século XVIII, o médico e botânico Manuel Arruda da Câmara (1752-1810) esclareceu parte do mistério dos primeiros fósseis ao montar a primeira ossada de um mastodonte do atual estado de Goiás. Os ossos foram coletados em viagens ao interior do Nordeste, mas depois foram enviados a Portugal e perdidos.

Restos de outros animais também foram descobertos. Ainda no século XVIII, o naturalista e militar português João da Silva Feijó (1760-1824) ficou maravilhado com os peixes fossilizados que encontrou em meio às camadas de rochas amareladas do fundo de um antigo lago no Cariri, interior do Ceará, hoje reconhecida como uma das regiões fossilíferas mais ricas do mundo. Em setembro de 1800, ele escreveu a Montaury: “Uma coleção de petrificações de anfíbios e peixes, as mais curiosas e raras, que jamais, a meu ver, se têm encontrado”.

Feijó encantou-se com as condições excepcionais das partes moles (órgãos, vasos sanguíneos e músculos) dos “imensos peixes inteiramente convertidos em cristal”. Os fósseis dessa região do Ceará continuam a ser encontrados com tecidos, penas e pelos preservados. “Ainda hoje, 200 anos depois, estudamos como os fósseis conservam as partes moles”, diz o paleontólogo Ismar de Souza Carvalho, da UFRJ.

Feijó foi um dos primeiros a montar uma coleção científica de fósseis na Real Academia de Engenharia, no Rio. Naturalistas como o piauiense Frederico Leopoldo Cezar Burlamaqui (1803-1866) também fizeram seus acervos. 

Para o então recém-fundado Museu Real (a partir de 1890, Museu Nacional), do qual foi diretor de 1847 a 1866, ele reuniu fósseis de vertebrados e invertebrados, incluindo ovos de pássaros de ilhas do Peru, peixes do Crato e ossadas.

O próprio Burlamaqui coletou alguns fósseis. Outros adquiriu por meio de doações, como o fêmur de um megatério, grupo de preguiças com cerca de 4 m de altura, mandíbulas fortes e garras compridas, que viveram entre 35 milhões de anos e 12 mil anos atrás em toda a América do Sul.

Com a coleção em mãos, Burlamaqui se dedicou às análises e publicou em 1855 o primeiro artigo sobre paleontologia em uma revista científica brasileira, a Trabalhos da Sociedade Vellosiana. 

Muitas etiquetas e descrições dos fósseis de sua coleção, porém, perderam-se, por causa da infraestrutura precária nos primeiros anos do museu e das trocas de sede. “Uma quantidade enorme de fósseis, principalmente da megafauna, não tem nenhuma informação sobre a origem”, explica Fernandes.

Os registros da coleção do norte-americano Edward Drinker Cope (1840-1897) foram mais bem preservados. Formado na Universidade da Pensilvânia em 1861, Cope trabalhou com fósseis de répteis da América do Norte e da América Central. 

Um de seus colegas, o geólogo norte-americano naturalizado brasileiro Orville Adalbert Derby (1851-1915), fez coletas em Pernambuco, Sergipe, Bahia e São Paulo e mandava o que encontrava para Cope analisar nos Estados Unidos, para onde seguiam também os materiais coletados no Brasil pelo geólogo britânico Samuel Allport (1816-1887). 

“Em somente um artigo, de 1886, Cope descreveu cinco peixes, dois répteis e um mamífero a partir de fósseis da Bahia, Pernambuco, Sergipe e São Paulo”, diz a paleontóloga Valéria Gallo, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), que estudou a chamada Coleção Cope, no Museu Nacional.

Um dos animais descritos pelo norte-americano foi o mesossauro Stereosternum tumidum, réptil marinho que viveu entre 286 milhões e 258 milhões de anos atrás. Encontrados nas costas do sul da África e da América do Sul, os fósseis desse grupo reforçaram a teoria da deriva continental, proposta em 1912 pelo alemão Alfred Wegener (1880–1930).

Com cerca de 80 centímetros (cm) de comprimento, dentes finos em formato de cone e uma longa cauda com até 64 vértebras, S. tumidum foi encontrado em bacias sedimentares do Paraná e na África do Sul, indicando que os dois continentes já estiveram unidos.

Cope descreveu também o crocodilo Hyposaurus derbianus. Encontrados no Nordeste, os fósseis dessa espécie têm uma mandíbula comprida e triangular e dentes de quase 3 cm de comprimento. Devem ter vivido entre 65 milhões e 55 milhões de anos atrás.

Os fósseis do Museu Nacional que Cope estudou foram vendidos ao geólogo norte-americano Henry Fairfield Osborn (1857-1935), que os depositou no Museu Americano de História Natural, em Washington. Depois, foram enviados ao paleontólogo britânico Arthur Woodward (1864-1944). 

Décadas mais tarde, por iniciativa do brasileiro Llewellyn Ivor Price (1905-1980), parte desse material voltou ao país e ficou no Museu Nacional até ser destruído pelo incêndio de 2018.

Um nome importante para a paleontologia e arqueologia brasileira no século XIX foi o dinamarquês Peter Wilhelm Lund (1801-1880). Ele trabalhou e morreu na região de Lagoa Santa, Minas Gerais.

“Em suas expedições, Lund coletou mais de 10 mil fósseis, principalmente da megafauna do atual período, o Quaternário [iniciado há 2,58 milhões de anos], como tigres-dentes-de-sabre, preguiças-gigantes e cavalos”, comenta Carvalho.

Os tigres de Lund eram da espécie Smilodon populator, com estimados 3 m de comprimento, 400 kg de peso e dentes caninos arqueados com bordas afiadas e serrilhadas de até 30 cm de comprimento.

Era um tigre que viveu em toda a América entre 700 mil e 11 mil anos atrás – no Brasil, nos atuais estados do Ceará, Sergipe, Mato Grosso do Sul, Bahia e Minas Gerais. 

Lund descreveu um crânio inteiro do felino, com os dois caninos e incisivos (outros dentes frontais) preservados. A maior parte do que ele coletou no Brasil está no Museu Zoológico de Copenhagen, na Dinamarca.

“As primeiras coleções, como as de Lund, servem até hoje como referência para quem precisa conhecer em detalhe as espécies que viveram há milhares ou milhões de anos no Brasil”, diz o paleontólogo da Uerj Hermínio Ismael de Araújo Júnior, presidente da Sociedade Brasileira de Paleontologia (SBP). As descobertas iniciais também indicam a localização de sítios paleontológicos, além de terem valor turístico.

Desde Montaury, os naturalistas e paleontólogos identificaram centenas de espécies de fósseis brasileiros – somente de dinossauros, são pelo menos 55. A cada ano, mais animais são descobertos e publicados, como o titanossauro Tiamat valdecii (ver Pesquisa FAPESP n° 341) e o crocodilo Caipirasuchus catanduvensis, ambos descritos em 2024.

Boa parte do acervo de fósseis se perdeu com o incêndio do Museu Nacional, mas há outras coleções relevantes em instituições como as universidades de São Paulo (USP), federais do Rio de Janeiro (UFRJ), do Rio Grande do Norte (UFRN), de Pernambuco (UFPE) e do Rio Grande do Sul (UFRGS), Pontifícia Universidade Católica (PUC) de Minas Gerais e Museu de Ciências da Terra, no Rio de Janeiro.

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