Pular para o conteúdo principal

Os deuses deixaram de fazer sentido no século 21

Com o avanço da ciência e do conhecimento, não há ignorância para justificar as divindades

JOÃO CAETANO DIAS | Jornal Observador
político de Portugal

As principais religiões monoteístas nasceram, todas elas, há séculos, quando os homens buscavam explicação para tudo o que ainda não conseguiam compreender. O mundo era uma coleção de mistérios: o clima, as boas e más colheitas, os desastres naturais, os eclipses, o nascimento e a morte, as doenças e as pragas. A necessidade de justificar tantos fenómenos cujas origens estavam para lá do saber disponível levou, desde sempre, à invenção de muitas divindades.

As religiões copiaram-se umas às outras e são produto das épocas em que foram criadas. O judaísmo herdou do zoroastrismo o conceito de Deus e do Diabo, da ressurreição e da vida eterna, e o cristianismo reinventou-os e o Islã recriou as mesmas ideias uns séculos mais tarde.

Quase todos os ritos das diversas crenças baseavam-se em cultos de divindades de anteriores civilizações. Tudo foi arquitetado pelo homem, pela sua criatividade ou falta dela, baseando-se em mitos e lendas que existiam pelo mundo e que construíam explicações possíveis para acontecimentos inexplicáveis à luz do conhecimento do passado.

Com o avanço da ciência e do conhecimento, foram-se sucedendo aclarações tortuosas e reinterpretações das tradições religiosas, para que os absurdos escritos em épocas pré-científicas pudessem continuar a fazer sentido. Em muitos casos, o que está escrito nos vários livros sagrados de diversas religiões passou a ser entendido como narrativa simbólica e não literal, porque já não era possível acreditar no que contavam as escrituras.

No século 21, nenhuma explicação que passe por um ser superior, onipresente e onipotente, criador do céu e da terra, faz qualquer sentido. Darwin publicou a origem das espécies há 160 anos, Watson e Crick decifraram a estrutura em dupla hélice do ADN há 70 anos. Conhecemos o átomo, as moléculas, as células. Estimamos que o universo tenha nascido há 14 biliões de anos e temos a certeza que não foi criado em 6 dias. Sabemos prever o tempo para os próximos dias e compreendemos a causa de relâmpagos e trovões, terramotos e vulcões, marés e tempestades. Sabemos o que são vírus e bactérias e a origem de muitas doenças e avançamos profundamente na forma de tratar enfermidades. A medicina substituiu as rezas, com enorme vantagem para a humanidade.

As explicações que as várias religiões atribuíam aos fenómenos naturais, sejam elas castigos divinos ou graças concedidas, não deveriam ter lugar no século 21. Nem tão pouco a cultura pré-medieval espelhada na Bíblia, na Torá ou no Corão.

Os livros sagrados não condenam a escravatura — bem pelo contrário — porque na época em que foram escritos a escravatura era aceite com normalidade. Custa a acreditar que divindades tão perfeitas não tenham reparado na crueldade subjacente à servidão, mas os livros sagrados limitam-se a regulamentar o tratamento dos escravos. 

Deuses,
como Jesus,
nasceram
de mitos
e lendas

A homossexualidade é condenada de forma simples na Bíblia: “Se um homem se deitar com outro homem como quem se deita com uma mulher, ambos praticaram um ato repugnante. Terão que ser executados, pois merecem a morte”. Provavelmente por ser escrita por homens, não há castigo na Bíblia para uma mulher que deite com outra mulher.

Na maior parte das religiões, as mulheres são menosprezadas e todas ensinam uma moral sexual artificial e restritiva, aparentemente em defesa dos homens que se viam a si próprios como donos das suas esposas.

Ao longo dos séculos, houve alguma evolução na forma como se olha para as crenças religiosas. O laicismo entrou nas constituições de muitos países, já não sofremos às mãos da criminosa Santa Inquisição, mas ainda temos países em que se pratica a execrável Sharia. Perseguem-se heréticos e blasfemos, como antes se perseguiam pretensas bruxas.

No mundo católico, durante muito tempo, dizia-se que as crianças sem batismo não tinham lugar no céu. Esta era uma história desumana para meter na cabeça de uma criança, que ficava a acreditar que ele ou outros meninos estariam condenados a passar a eternidade num limbo — isto se não tivessem cometido nenhum pecado, porque nesse caso iriam diretos para a tortura perpétua no Inferno. 

Há crianças mutiladas à nascença, por tradição religiosa. Pessoas em sofrimento não são convenientemente tratadas porque, segundo uma interpretação grosseira de alguns parágrafos da Bíblia, há quem acredite que as transfusões de sangue são proibidas por Deus. 

Há quem julgue pertencer a um povo escolhido e por isso ser superior ao resto da humanidade.

Continuamos a viver num mundo onde milhões de jovens são instruídos em madraças a odiar quem não segue o mesmo culto. O terrorismo religioso é uma realidade bem atual, bem como as guerras santas. Em nome da religião, meninas são proibidas de ir à escola, mulheres são açoitadas em público e decapitam-se descrentes. Um enorme menu de horrores a que não escapa quase nenhuma religião.

As catástrofes são momentos em que se pode observar a total dissonância cognitiva que grassa entre os crentes mais fervorosos. Agradece-se a uma divindade onipotente por ter sido salvo de um terramoto, nunca questionando por que razão essa mesma divindade provocou a devastação que matou tantos milhares de pessoas. 

Afinal, é um Deus bom ou Deus mau? É um Deus misericordioso ou vingativo? A resposta é que depende. Pode ser tudo o que quisermos porque é apenas uma questão de fé num ser imaginário. A lógica não é para aqui chamada.

Em 2021, a fé em divindades faz tanto sentido como o reiki, o tarot, a homeopatia ou a astrologia. São crenças sem fundamento científico, infalsificáveis no sentido de Popper, e representam um contrassenso e um desafio à ciência e ao conhecimento. Mas é, obviamente, uma opção livre de cada pessoa acreditar nas tradições recebidas das famílias e das comunidades onde nasceram. O direito ao culto deve ser protegido, tal como o direito à livre opinião, à liberdade de expressão ou de associação, devendo o poder político ficar de fora, não limitando, beneficiando ou prejudicando qualquer instituição religiosa.

Uma das maiores mistificações à volta das religiões é que, sem estas, não há moral. Um site católico explica que um ateu “não tem nenhuma razão final para agir eticamente porque não existe uma autoridade moral final sobre cada esfera de sua vida”. Como se o respeito pelos outros, pela liberdade individual, pela cidadania só pudesse ser transmitido por uma qualquer das crenças milenares e o bom-comportamento de cada pessoa vivendo em sociedade se devesse, exclusivamente, ao temor do castigo divino. Como se fosse impossível, para qualquer pessoa que não observe a mesma crença, distinguir bem do mal.

Entre os 10 países com maior percentagem de agnósticos e ateus no mundo estão o Japão, a Suécia, a Noruega, a Austrália ou a Dinamarca. (Gallup 2017) Dificilmente se podem ver estas nações como antros de criminalidade ou de baixos padrões éticos e morais.

Dizia um humorista, possivelmente parafraseando Richard Dawkins, que há 3000 religiões no mundo e os crentes não acreditam em 2999. Um ateu é apenas alguém que não acredita apenas numa mais.

O autor do texto é do partido Iniciativa Liberal.

• Contar o número de deuses é difícil porque são muitos, dezenas de milhares, milhões

• Cinco deuses filhos de virgem e que morreram e ressuscitaram. E nenhum é Jesus

• Livro mostra semelhanças entre Jesus e Harry Potter


Comentários

betoquintas disse…
Toda nossa cultura, inclusive a ciência, veio dos povos antigos, todos pagãos politeístas. Vão jogar fora também a literatura, a poesia, o teatro e a música?
CBTF disse…
Queria que tivesse políticos como o autor desse texto aqui no Brasil.

Post mais lidos nos últimos 7 dias

90 trechos da Bíblia que são exemplos de ódio e atrocidade

Caso Roger Abdelmassih

Violência contra a mulher Liminar concede transferência a Abelmassih para hospital penitenciário 23 de novembro de 2021  Justiça determina que o ex-médico Roger Abdelmassih retorne ao presídio 29 de julho de 2021 Justiça concede prisão domiciliar ao ex-médico condenado por 49 estupros   5 de maio de 2021 Lewandowski nega pedido de prisão domiciliar ao ex-médico Abdelmassih 26 de fevereiro de 2021 Corte de Direitos Humanos vai julgar Brasil por omissão no caso de Abdelmassih 6 de janeiro de 2021 Detento ataca ex-médico Roger Abdelmassih em hospital penitenciário 21 de outubro de 2020 Tribunal determina que Abdelmassih volte a cumprir pena em prisão fechada 29 de agosto de 2020 Abdelmassih obtém prisão domicililar por causa do coronavírus 14 de abril de 2020 Vicente Abdelmassih entra na Justiça para penhorar bens de seu pai 20 de dezembro de 2019 Lewandowski nega pedido de prisão domiciliar ao ex-médico estuprador 19 de novembro de 2019 Justiça cancela prisão domi...

Professor obtém imunidade para criticar criacionismo nas aulas

A Corte de Apelação da Califórnia (EUA) decidiu que um professor de uma escola pública de Mission Viejo tem imunidade para depreciar o criacionismo, não podendo, portanto, ser punido por isso. A cidade fica no Condado de Orange e tem cerca de 94 mil habitantes. Durante uma aula, o professor de história James Corbett, da Capistrano Valley High School, afirmou que o criacionismo não pode ser provado cientificamente porque se trata de uma “bobagem supersticiosa”. Um aluno foi à Justiça alegando que Corbett ofendeu a sua religião, desrespeitando, assim, a liberdade de crença garantida pela Primeira Emenda da Constituição. Ele perdeu a causa em primeira instância e recorreu a um tribunal superior. Por unanimidade, os três juízes da Corte de Apelação sentenciaram que a Primeira Emenda não pode ser utilizada para cercear as atividades de um professor dentro da sala de aula, mesmo quando ele hostiliza crenças religiosas. Além disso, eles também argumentaram que o professor não ...

Reação de aluno ateu a bullying acaba com pai-nosso na escola

O estudante já vinha sendo intimidado O estudante Ciel Vieira (foto), 17, de Miraí (MG), não se conformava com a atitude da professora de geografia Lila Jane de Paula de iniciar a aula com um pai-nosso. Um dia, ele se manteve em silêncio, o que levou a professora a dizer: “Jovem que não tem Deus no coração nunca vai ser nada na vida”. Era um recado para ele. Na classe, todos sabem que ele é ateu. A escola se chama Santo  Antônio e é do ensino estadual de Minas. Miraí é uma cidade pequena. Tem cerca de 14 mil habitantes e fica a 300 km de Belo Horizonte. Quando houve outra aula, Ciel disse para a professora que ela estava desrespeitando a Constituição que determina a laicidade do Estado. Lila afirmou não existir nenhuma lei que a impeça de rezar, o que ela faz havia 25 anos e que não ia parar, mesmo se ele levasse um juiz à sala de aula. Na aula seguinte, Ciel chegou atrasado, quando a oração estava começando, e percebeu ele tinha sido incluído no pai-nosso. Aparentemen...

Aluno com guarda-chuva se joga de prédio e vira piada na UERJ

"O campus é depressivo, sombrio, cinza, pesado" Por volta das 10h de ontem (31 de março de 2001), um jovem pulou do 11º andar do prédio de Letra da UERJ (Universidade do Estado do Rio de Janeiro) e virou motivo de piadinhas de estudantes, no campus Maracanã e na internet, por ter cometido o suicídio com um guarda-chuva. Do Orkut, um exemplo: "Eu vi o presunto, e o mais engraçado é que ele está segurando um guarda-chuva! O que esse imbecil tentou fazer? Usar o guarda-chuva de paraquedas?" Uma estudante de primeiro ano na universidade relatou em seu blog que um colega lhe dissera na sala de aula ter ouvido o som do impacto da queda de alguma coisa. Contou que depois, de uma janela do 3º andar, viu o corpo. E escreveu o que ouviu de um estudante veterano: “Parabéns, você acaba de ver o seu primeiro suicídio na UERJ.” De fato, a morte do jovem é mais uma que ocorre naquele campus. Em um site que deu a notícia do suicido, uma estudante escreveu: “O campus é depressivo, s...

Seleção feminina de vôlei não sabe que Brasil é laico desde 1891

Título original: O Brasil é ouro em intolerância Jogadoras  se excederam com oração diante das câmeras por André Barcinski para Folha Já virou hábito: toda vez que um time ou uma seleção do Brasil ganha um título, os atletas interrompem a comemoração para abrir um círculo e rezar. Sempre diante das câmeras, claro. O mesmo aconteceu sábado passado, quando a seleção feminina de vôlei conquistou espetacularmente o bicampeonato olímpico em cima da seleção norte-americana, que era favorita. O Brasil é oficialmente laico desde 1891 e a Constituição prevê a liberdade de religião. Será mesmo? O que aconteceria se alguma jogadora da seleção de vôlei fosse budista? Ou mórmon? Ou umbandista? Ou agnóstica? Ou islâmica? Alguém perguntou a todas as atletas e aos membros da comissão técnica se gostariam de rezar o “Pai Nosso”? Ou será que alguns se sentiram compelidos a participar para não destoar da festa? Será que essas manifestações públicas e encenadas, em vez de prop...

Cinco deuses filhos de virgens morreram e ressuscitam. E nenhum deles é Jesus

No noticiário, casos de pastores pedófilos superam os de padres

Ateus são o grupo que menos apoia a pena de morte, apura Datafolha