Pular para o conteúdo principal

Existência de sistema de conduta moral independe dos deuses

Filósofos mostram ser
 possível haver sistemas
éticos seculares



por Ricardo Oliveira da Silva

Algumas semanas atrás escrevi um artigo para o jornal Nova News com uma reflexão sobre o ateísmo. Um artigo que teve como base temas das aulas da disciplina História do Ateísmo, ministrada no primeiro semestre de 2019 no Curso de História da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Campus de Nova Andradina (UFMS/CPNA).

Ao escrever sobre a forma negativa como o ateísmo foi retratado na história da filosofia, defendi a possibilidade de um sistema ético secular, base para uma conduta moral na vida de ateus e ateias. Quero agora aprofundar a reflexão sobre ateísmo e ética.

Uma breve exposição etimológica posiciona de forma mais precisa o tema desse artigo: a palavra moral possui origem no latim mos, moris, que significa “costume”, “maneira de se comportar” e de moralis, morale, adjetivo referente ao que é “relativo aos costumes”.

A palavra ética, por sua vez, é oriunda do termo grego ethos, que significa “costume”. Enquanto conceito o termo moral é definido como o conjunto de regras de conduta admitidos em épocas específicas ou por sociedades.

Já ética é a parte da filosofia que se ocupa com a reflexão sobre as noções e princípios que fundamentam uma vida moral.

Nas religiões monoteístas, para se ficar nos casos mais conhecidos, os chamados livros sagrados apresentam os códigos e os princípios que devem regular a vida moral das pessoas. É assim com o caso do livro da Torá, para os judeus; da Bíblia, para os cristãos; e do Alcorão, para os muçulmanos. 

Contudo, como fundamentar uma vida moral para o caso dos indivíduos que não comungam de crenças religiosas, como no caso dos ateus? 

Nesse quesito, um ponto desfavorável ao ateísmo é expresso pela sentença “se Deus não existe, tudo é permitido”, parafraseada de um diálogo que ocorre no livro "Os irmãos Karamazov", do escritor russo Fiódor Dostoiévski (1821-1881). O que subjaz nessa sentença é a ideia da impossibilidade de uma vida moral se a pessoa não possui crença religiosa.

Mas a crença em um Deus seria um pressuposto obrigatório para uma vida moral?

O filósofo grego Platão (428/427 – 348/347 a.c) discutiu essa questão em um diálogo chamado Eutífron, que deu nome ao dilema que segue: Sócrates, o protagonista de Platão nesse diálogo, perguntou se os Deuses escolhem o bem porque ele é bom ou se o bem é bom porque os Deuses o escolhem. 

Se a primeira alternativa estiver correta, fica demonstrado que o bem é independente dos Deuses, ou independente de Deus, no caso de uma fé monoteísta. O bem simplesmente é bom, e é por isso que um Deus bom sempre há de escolhê-lo. 

Mas se a segunda alternativa estiver correta, a própria ideia do bem passa a ser arbitrária. Uma vez que existem muitos Deuses, como ter certeza no bem escolhido?

A história da filosofia fornece exemplos que permitem embasar uma ética sem vínculo com a crença na existência de Deus como guia para uma conduta moral. O primeiro caso que trago está na obra do filósofo e deísta (deísmo: crença em um Deus que criou o mundo, mas que não interfere no que acontece nele) alemão Immanuel Kant (1724-1804), na reflexão que ele fez sobre o que chamou de imperativo categórico e hipotético.

Em Fundamentação da metafísica dos costumes, livro de 1785, Kant afirmou que o imperativo é um comando do tipo “você precisa fazer X”. 

O imperativo hipotético determina a apresentação de um fundamento para um comando. Por exemplo: qual o motivo para estudar? Resposta: passar na prova. 

Já o imperativo categórico é uma obrigação independente da vontade particular. Sendo assim, sempre que reconhecemos o dever de fazer ou o dever de não fazer alguma coisa endossamos um princípio independente de interesses, desejos ou objetivos próprios, que assume um caráter universal e se aplica a todas as pessoas em igual medida.

Um caso: se reconheço que não devo ser enganado, ao mesmo tempo reconheço que ninguém deve ser enganado (uma espécie de lei universal).

O segundo exemplo que apresento está na obra do filósofo e ateu inglês John Stuart Mill (1806-1873).

Esse pensador foi um dos representantes do utilitarismo, doutrina ética que postula que as ações são boas quando tendem a promover a felicidade das pessoas e são más quando promovem a infelicidade. Esse raciocínio foi exposto por ele no livro Utilitarismo (1861). 

A partir da linha de reflexão de John Stuart Mill,  filósofo inglês Julian Baggini apresentou no livro "Ateísmo: uma breve introdução" o seguinte exemplo: um chute em alguém provoca uma dor. O ato de chutar pode ser posto como uma descrição, mas ao afirmar que a dor é ruim, é feita uma avaliação que pode ser posta como base para uma conduta moral. Não se deve chutar alguém, pois isso provoca dor na pessoa.

Por fim, apresento a perspectiva existencialista do filósofo e ateu francês Jean-Paul Sartre (1905-1980).

Esse intelectual francês definiu seu existencialismo como ateísta a partir do postulado de que a existência precede a essência, ou seja, não há nada que determine a priori o ser humano, como uma essência divina quando as pessoas são compreendidas como uma criação de Deus, colocando todo ser humano em um horizonte de radical liberdade.

Em "O existencialismo é um humanismo" (1946), Sartre afirmou que, pelo fato do indivíduo ser livre, cabe a ele criar os valores morais para nortear sua vida, mas uma decisão que deve ser feita de forma responsável, pois acaba envolvendo outras pessoas.

O ateísmo se constitui como uma visão de mundo desprovida de crença no sobrenatural, o que não implica pensar as relações humanas sem uma base moral. 

Assumir uma identidade ateísta deve colocar esse tema em pauta, mostrando que não existe uma relação antinômica entre ateísmo e ética. E as reflexões de Immanuel Kant, John Stuart Mill e Jean-Paul Sartre são provas da possibilidade do ser humano construir sistemas éticos seculares.

O autor do texto é docente do Curso de História da UFMS/CPNA).





Sam Harris faz desafio aos críticos da ciência da moralidade

Moralidade vem da natureza do homem, afirma biólogo

'Moralidade não vem da fé no Cristo ou em quem quer que seja'

Moral avançou sem precisar da religião, afirma Dawkins



Receba por e-mail aviso de novo post

Comentários

Post mais lidos nos últimos 7 dias

90 trechos da Bíblia que são exemplos de ódio e atrocidade

Professor obtém imunidade para criticar criacionismo nas aulas

A Corte de Apelação da Califórnia (EUA) decidiu que um professor de uma escola pública de Mission Viejo tem imunidade para depreciar o criacionismo, não podendo, portanto, ser punido por isso. A cidade fica no Condado de Orange e tem cerca de 94 mil habitantes. Durante uma aula, o professor de história James Corbett, da Capistrano Valley High School, afirmou que o criacionismo não pode ser provado cientificamente porque se trata de uma “bobagem supersticiosa”. Um aluno foi à Justiça alegando que Corbett ofendeu a sua religião, desrespeitando, assim, a liberdade de crença garantida pela Primeira Emenda da Constituição. Ele perdeu a causa em primeira instância e recorreu a um tribunal superior. Por unanimidade, os três juízes da Corte de Apelação sentenciaram que a Primeira Emenda não pode ser utilizada para cercear as atividades de um professor dentro da sala de aula, mesmo quando ele hostiliza crenças religiosas. Além disso, eles também argumentaram que o professor não ...

Caso Roger Abdelmassih

Violência contra a mulher Liminar concede transferência a Abelmassih para hospital penitenciário 23 de novembro de 2021  Justiça determina que o ex-médico Roger Abdelmassih retorne ao presídio 29 de julho de 2021 Justiça concede prisão domiciliar ao ex-médico condenado por 49 estupros   5 de maio de 2021 Lewandowski nega pedido de prisão domiciliar ao ex-médico Abdelmassih 26 de fevereiro de 2021 Corte de Direitos Humanos vai julgar Brasil por omissão no caso de Abdelmassih 6 de janeiro de 2021 Detento ataca ex-médico Roger Abdelmassih em hospital penitenciário 21 de outubro de 2020 Tribunal determina que Abdelmassih volte a cumprir pena em prisão fechada 29 de agosto de 2020 Abdelmassih obtém prisão domicililar por causa do coronavírus 14 de abril de 2020 Vicente Abdelmassih entra na Justiça para penhorar bens de seu pai 20 de dezembro de 2019 Lewandowski nega pedido de prisão domiciliar ao ex-médico estuprador 19 de novembro de 2019 Justiça cancela prisão domi...

Reação de aluno ateu a bullying acaba com pai-nosso na escola

O estudante já vinha sendo intimidado O estudante Ciel Vieira (foto), 17, de Miraí (MG), não se conformava com a atitude da professora de geografia Lila Jane de Paula de iniciar a aula com um pai-nosso. Um dia, ele se manteve em silêncio, o que levou a professora a dizer: “Jovem que não tem Deus no coração nunca vai ser nada na vida”. Era um recado para ele. Na classe, todos sabem que ele é ateu. A escola se chama Santo  Antônio e é do ensino estadual de Minas. Miraí é uma cidade pequena. Tem cerca de 14 mil habitantes e fica a 300 km de Belo Horizonte. Quando houve outra aula, Ciel disse para a professora que ela estava desrespeitando a Constituição que determina a laicidade do Estado. Lila afirmou não existir nenhuma lei que a impeça de rezar, o que ela faz havia 25 anos e que não ia parar, mesmo se ele levasse um juiz à sala de aula. Na aula seguinte, Ciel chegou atrasado, quando a oração estava começando, e percebeu ele tinha sido incluído no pai-nosso. Aparentemen...

Seleção feminina de vôlei não sabe que Brasil é laico desde 1891

Título original: O Brasil é ouro em intolerância Jogadoras  se excederam com oração diante das câmeras por André Barcinski para Folha Já virou hábito: toda vez que um time ou uma seleção do Brasil ganha um título, os atletas interrompem a comemoração para abrir um círculo e rezar. Sempre diante das câmeras, claro. O mesmo aconteceu sábado passado, quando a seleção feminina de vôlei conquistou espetacularmente o bicampeonato olímpico em cima da seleção norte-americana, que era favorita. O Brasil é oficialmente laico desde 1891 e a Constituição prevê a liberdade de religião. Será mesmo? O que aconteceria se alguma jogadora da seleção de vôlei fosse budista? Ou mórmon? Ou umbandista? Ou agnóstica? Ou islâmica? Alguém perguntou a todas as atletas e aos membros da comissão técnica se gostariam de rezar o “Pai Nosso”? Ou será que alguns se sentiram compelidos a participar para não destoar da festa? Será que essas manifestações públicas e encenadas, em vez de prop...

Cinco deuses filhos de virgens morreram e ressuscitam. E nenhum deles é Jesus

Ateus são o grupo que menos apoia a pena de morte, apura Datafolha

Aluno com guarda-chuva se joga de prédio e vira piada na UERJ

"O campus é depressivo, sombrio, cinza, pesado" Por volta das 10h de ontem (31 de março de 2001), um jovem pulou do 11º andar do prédio de Letra da UERJ (Universidade do Estado do Rio de Janeiro) e virou motivo de piadinhas de estudantes, no campus Maracanã e na internet, por ter cometido o suicídio com um guarda-chuva. Do Orkut, um exemplo: "Eu vi o presunto, e o mais engraçado é que ele está segurando um guarda-chuva! O que esse imbecil tentou fazer? Usar o guarda-chuva de paraquedas?" Uma estudante de primeiro ano na universidade relatou em seu blog que um colega lhe dissera na sala de aula ter ouvido o som do impacto da queda de alguma coisa. Contou que depois, de uma janela do 3º andar, viu o corpo. E escreveu o que ouviu de um estudante veterano: “Parabéns, você acaba de ver o seu primeiro suicídio na UERJ.” De fato, a morte do jovem é mais uma que ocorre naquele campus. Em um site que deu a notícia do suicido, uma estudante escreveu: “O campus é depressivo, s...

Por que é absurdo considerar os homossexuais como criminosos

Existem distorções na etimologia que vem a antiguidade AURÉLIO DO AMARAL PEIXOTO GAROFA Sou professor de grego de seminários, também lecionei no seminário teológico da igreja evangélica e posso dizer que a homofobia católica e evangélica me surpreende por diferentes e inaceitáveis motivos. A traduções (traições), como o próprio provérbio italiano lembra ( traduttore, tradittore ) foram ao longo dos séculos discricionariamente destinadas a colocar no mesmo crime etimológico, categorias de criminosos sexuais que na Antiguidade distinguiam-se mais (sobretudo na cultura grega) por critérios totalmente opostos aos nossos. O que o pseudoepígrafo que se nomeia Paulo condenava eram os indivíduos de costumes torpes, infames, os quais se infiltravam em comunidades para perverter mocinhas e rapazinhos sob pretexto de "discipulado" e com fins de proveito sexual. Nada diferente de hoje, por isso vemos que a origem da efebofilia e pedofilia católica e evangélica é milenar. O fato...

No noticiário, casos de pastores pedófilos superam os de padres