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Evento gospel joga Estado laico no ralo, escreve professora



por Maria Angela Mirault
professora em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP

O fundamentalismo surgiu no protestantismo norte-americano em meados do século 19, cunhado por professores de teologia da Universidade de Princeton, expressos em doze livros – Fundametals.


A Testeimony of teh Truth –, e fazia a proposição de um cristianismo, excessivamente rigoroso, ortodoxo e dogmático, em contraste com o liberalismo norte-americano. Sob essa perspectiva, a Bíblia – por ser de inspiração divina – só deve ser encarada como o fundamento básico da fé cristã e tomada sob o estrito rigor da letra. Qualquer interpretação, ou contestação, será obra de satanás.

'Quinta Gospel'
é expressão do 

fundamentalismo
Essa concepção a respeito do texto sagrado coloca todo militante como um crente dessa “verdade inconteste”. Note-se que se pode identificar o fundamentalista em toda e qualquer religião e, mesmo expansivamente, o convertido, em qualquer ideologia.

Do mesmo modo, ressalve-se que nem todo protestante é um fundamentalista. Afirma, Leonardo Bof, em sua obra “Fundamentalismo – a Globalização e o Futuro da Humanidade” (Sextante) que o próprio Lutero já declarava: “a Bíblia toda tem a Deus como autor, mas suas sentenças devem ser julgadas a partir de Cristo”. Esclarece, ainda, Boff: “Com o Concílio Vaticano II, a Bíblia é inspirada e inerrante [que não pode errar] só com referência às verdades importantes para nossa salvação”. Por isso, dizem os católicos que “na Bíblia está contida a Palavra de Deus” e não “a Bíblia é a palavra de Deus”.

Desse modo, qualquer pessoa que confere caráter absoluto ao seu ponto de vista é um fundamentalista, pois passa a acreditar-se senhor da verdade incontestável, daí sua intolerância aos pensamentos opostos. Na visão de Boff, “ ... a intolerância gera o desprezo aos outros, a agressividade, e agressividade, a guerra contra o erro a ser combatido e exterminado”.

Dito isso, afirmamos que o Estado de Direito e Laico do Executivo de Campo Grande [Mato Grosso do Sul] foi para o ralo, exterminado, com a realização exclusivista, discricionarista, segregacionista e inconstitucional da malfadada “Quinta Gospel”, como um “presente para a cidade”.

Muito longe de espalhar luzes, deu vazão à ação nefasta da treva.

A Lei nº 5.092, de 20 de julho de 2012, que “institui na Praça do Rádio Clube a ‘Quinta Gospel’ no Município de Campo Grande”, prevê sua realização “na quinta-feira que antecede a ‘Noite da Seresta’ utilizando a mesma estrutura que é utilizada na ‘Noite da Seresta’” e a “apresentação de artistas nacionais e regionais”, sob o patrocínio da Fundação de Cultura de Campo Grande, por si só, não exclui a expressividade musical de outros segmentos religiosos, porém, seu teor deu margens à interpretação dúbia por parte da diretora-presidente (sra. Juliana Zorzo) da Fundac e garantiu a exclusividade de apresentação de um único segmento religioso, em detrimento dos demais.

Em maio deste ano, o ICE-MS (Instituto de Cultura Espírita de Mato Grosso do Sul), representado pelo seu presidente, João Batista Paiva, encaminhou ofício à fundação, solicitando participação de artistas espíritas no show. Em resposta (4 de agosto de 2014), a diretora manifestou-se com a argumentação de que “a indicação de artistas espíritas seria impossível” porque foge da proposta do evento destinado ao “público evangélico cristão”.

Angela denuncia
ato inconstitucional
O fato é que, apesar da ignorância do segmento religioso que “batalhou” a lei, não podemos admitir que houvesse qualquer mínima discrepância nas decisões de gestores com relação a dotações orçamentárias dos recursos públicos; o privilégio de uns e a exclusão de outros. 

Se o local é público, os recursos são provenientes dos cofres públicos, organizado e patrocinado por um órgão público – que se qualifica como uma Fundação de Cultura – e sob o princípio que deve reger o Estado Laico expresso na Constituição Federal, que a “Quinta Gospel” garanta nas próximas edições a participação de todos os segmentos religiosos que nesse espaço queiram manifestar sua religiosidade, por meio da linguagem musical. 

Caso o espírito fundamentalista – que vem pouco a pouco corroendo os espaços da gestão pública municipal – persista, que o Ministério Público faça valer a sua função de resguardar os direitos do cidadão (católico, espírita, ateu...) e interfira pela revogação imediata dessa lei municipal, para que sirva de exemplo de forma que expedientes semelhantes não se perpetuem nessa gestão, impondo-se às leis que garantem, ao Estado Laico brasileiro, o direito à livre expressão e manifestação religiosa em nosso País.

Esse texto foi publicado originalmente no blog de Maria Angela Mirault. As fotos são de divulgação.



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