Pular para o conteúdo principal

Alquimia floral, pseudociência nacional disponível até em hospital público

Hospital do Servidor Público Municipal de São Paulo oferece terapia com os florais alquímicos cujos supostos benefícios não têm nenhuma comprovação científica


Mauro Proença 
nutricionista 

Questão de Ciência
publicação digital do IQC (Instituto Questão de Ciência)

Não tenho o costume de comentar sobre o meu antigo emprego. Além de rememorar situações estressantes e, em muitas ocasiões, embaraçosas, eu sentia vergonha ao explicar minhas funções. Mas foi um divisor de águas na minha trajetória: além de me obrigar a exercitar o senso crítico, me permitiu conhecer muitos praticantes e usuários de pseudociências menos convencionais.

Dentre esses encontros, recordo-me parcialmente de uma conversa com um casal de alquimistas florais. Nunca tinha ouvido falar do assunto, e eles simpaticamente me explicaram do que se consistia a prática, suas aplicações diárias em muitos pacientes e como poderia ser utilizada concomitantemente com outros suplementos e substâncias benéficas para o organismo para fortalecer o sistema imune e prevenir doenças.

Além disso, eles me aconselharam, caso tivesse interesse, a pesquisar sobre o AlkhemyLab de Joel Aleixo, uma das maiores referências brasileiras no assunto. Agradeci-os, anotei as informações, já pensando em como poderia render um artigo, e voltei ao trabalho.

Isso ocorreu em 2022 e, como surgiram notícias muito mais importantes, acabei deixando o tema de lado. Além disso, havia mais de dois anos que não ouvia nada sobre a prática, o que poderia indicar que não estavam mais atraindo adeptos. Infelizmente, eu estava muito enganado.

Em um momento de descontração, enquanto assistia ao YouTube, recebi uma notificação de que o Paranormal Experience, um podcast que dá espaço para entrevistados falarem sobre diferentes sistemas religiosos, culturais e filosóficos estava começando uma live com o nome “Olhar da Alquimia para o mundo - Joel Aleixo”. Naturalmente, encarei isso como um sinal do Monstro do Espaguete Voador para assistir às três horas de transmissão e me aprofundar sobre a alquimia floral.

De acordo com as narrativas autobiográficas encontradas em vídeos e entrevistas, em determinado momento da vida Aleixo teve uma experiência mística, talvez mediúnica, seguida de um período prolongado de jejum, e daí recebeu o poder de “ler” auras, tando de pessoas quanto de plantas, o que o dotou da capacidade de descobrir quais preparados vegetais melhor serviriam para resolver os “desequilíbrios” de seus pacientes.

Entre afirmações intrigantes que apareceram no podcast, o entrevistado alega, com grande convicção e embasamento em suas consultas clínicas, que 90% dos pacientes que o procuram estão enfermos e também carregam consigo uma história de tristeza.

Com base nisso, conclui que as doenças não são entidades reais, mas sim manifestações de “fragmentações internas” do paciente. Por exemplo, as fragmentações físicas se apresentam na forma de cânceres e tumores, enquanto as fragmentações do espírito se traduzem em desilusões e depressão. O papel do alquimista seria penetrar no cerne da questão, explorar essa história de tristeza e não se restringir, apenas, ao tratamento dos sintomas.

Nada disso deve soar como novidade para quem está familiarizado com os clichês mais comuns das pseudociências relacionadas à saúde – o mito da “causa única” (todas as doenças teriam uma “causa profunda” comum) e da restauração da saúde por meio do resgate de algum “equilíbrio” perdido. Essa era a visão comum sobre saúde humana em tempos pré-científicos, antes da descoberta dos micro-organismos e da genética. Propostas pseudocientíficas resgatam esse modo ultrapassado de pensar, apenas incorporando ao vocabulário conceitos modernos como “energia”.

Aleixo ressuscita ainda a noção, demonstravelmente errada, de que o ser humano utilizada apenas uma pequena parcela de sua capacidade cerebral. Na versão particular do mito propagada por ele, usamos apenas 4% do cérebro, enquanto os gênios, como Michelangelo, Da Vinci, Tesla e Einstein, usavam 8%, devido a uma expansão cerebral que os possibilitava enxergar um novo espectro, onde vislumbravam o passado, presente e futuro.

Durante as horas seguintes, outras desinformações, ainda mais problemáticas, foram propagadas, como a sugestão terapêutica de utilizar água desmineralizada com partículas de diamante para o tratamento de traumas intrauterinos (informações negativas adquiridas e armazenadas antes de nascer) - trataremos sobre isso em outra seção do artigo.

O novo Bach

A RQC já tratou dos Florais de Bach neste artigo aqui. Sugiro que o leiam na íntegra para entender como o homeopata inglês Edward Bach inventou essa pantomima. No entanto, apesar de muitas semelhanças, o sistema “alquímico” desenvolvido no Brasil é diferente.

Segundo o site da Alkhemylab, a principal diferença é que o sistema floral nativo utiliza preceitos da alquimia em todo o processo, desde o plantio até a colheita. Aqui parece haver um uso um tanto quanto excêntrico da palavra “alquimia”. 

Normalmente, o termo se refere à arte antiga de purificar, refinar e misturar substâncias que, além de um forte aspecto empírico – que levou ao desenvolvimento de técnicas depois adotadas pela química, como a destilação – envolvia também crenças mágicas, supersticiosas e especulação filosófica.

No caso dos florais alquímicos, as flores são cultivadas em canteiros em formato de mandala, projetados para reproduzir os padrões da natureza. São colhidas de acordo com os ciclos lunares. Após a colheita, são transferidas para um galpão, onde são acondicionadas em barris de carvalho e embebidas em álcool de cereais, permanecendo em repouso por um ciclo lunar completo, totalizando 28 dias.

Após completarem esses 28 dias, as flores são divididas em dois destinos distintos: aquelas que serão enviadas ao laboratório para a produção de compostos alquímicos em spray; e as que serão usadas na confecção dos florais sutis – florais vibracionais que atuam na mudança de comportamentos e na “alma”. Estas últimas são enviadas para a capela, um espaço especialmente preparado para contemplar as 12 casas astrológicas. Lá, as flores são depositadas em tubos de cobre, permitindo que recebam a influência do signo astrológico da pessoa que as ingerirá.

Se esses delírios não foram o suficiente para olharmos a prática com incredulidade, trago algumas informações adicionais do que é ensinado aos alunos da escola de alquimia, de acordo com o conteúdo apresentado no “Módulo 1 do Sistema Floral Joel Aleixo” de 25 de junho de 2019, e na obra “Traumas Intrauterinos” 2a edição de 17 de março de 2016. 

Os alunos são instruídos sobre alquimistas antigos, a história da prática e expostos a algumas alegorias mequetrefes para ficarem com a vaga impressão de que o estudo da alquimia e dos florais seria “científico”. Por exemplo, sugerindo-se que os alquimistas apontavam que toda a matéria era feita de mercúrio (relacionado a expansão), sal (estabilização) e enxofre (contração), mas que na verdade isso era uma alegoria para elétrons, nêutrons e prótons.

Os alunos também aprendem a história de Edward Bach, o criador dos florais. Além disso, para aumentar a credibilidade da prática, mencionam-se a Organização Mundial da Saúde e a inclusão dos florais no Plano Nacional de Práticas Integerativas e Complementares.

Supreendentemente, é possível encontrar, em meio a esse material, a advertênciade que os florais não substituem tratamentos “alopáticos” (termo pejorativo usado pela medicina alternativa para se referir à medicina de base centífica) e que seus efeitos não têm comprovação científica. E de que a utilização do floral é preventiva, cabendo à “medicina alopática” tratar as doenças.

Logo na página seguinte, o “Módulo 1” parece esquecer as limitações enunciadas (talvez apenas para propósitos elgais) e transforma-se em um panfleto para auxiliar o futuro alquimista a indicar os produtos produzidos pelo Alkhemylab. Aqui encontramos um composto floral para o estresse do dia a dia e promessas extremamente apelativas, como o composto “Flor da Vida”, sugerido para idosos e pacientes em tratamento quimioterápico (pré, durante, pós).

Além disso, quando os alunos são instruídos sobre os florais sutis, aqueles com “efeitos vibracionais”, aprendem que podem ser divididos em três níveis de acordo com sua atuação no corpo e na psiquê humana.A explicação do mecanismo de ação envolve o uso inadequado e ignorante da palavra magnetismo (em conceitos nonsense como “magnetismo de cores quentes”).

Ainda mais pernicioso, em outra obra, intitulada “Traumas Intrauterinos”, ensina-se que a gestação das mulheres é de 12 meses (3 meses de gravidez espiritual e 9 meses de gravidez física), e que as experiências negativas da mãe durante todo o processo são “impressas” no feto, como “cristais carbônicos” encapsulados nos ossos. Esses cristais seriam responsáveis por muitos danos à saúde do bebê, como má formações congênitas e síndromes genéticas. 

Dependendo da quantidade e severidade dos traumas, os cristais podem penetrar mais profundamente nos ossos, chegando à medula óssea vermelha, comprometendo o sistema imune, causando anemia e, em casos extremos, leucemia.

Nada disso tem o menor sentido. Na prática, o que se tem aí é um mix pseudocientífico de conceitos usado na construção de uma, narrativa que culpabiliza as mães pelos problemas de saúde dos filhos.

Parem de ser implicantes!

Enquanto realizava o levantamento de informações para esse artigo, deparei-me com o seguinte no site da prefeitura de São Paulo: “Conheça mais sobre a terapia com os florais alquímicos: Terapia está disponível aos servidores no HSPM” [Hospital do Servidor Público Municipal].




Reprodupção de
imagem do site
do Hospital do
Servidor Público
Municipal de
São Paulo


Segundo a publicação, a terapia tem como objetivo promover um estado de harmonia e equilíbrio, através de um tratamento integral da saúde, nos âmbitos físico, mental, social, emocional e espiritual. 

Afirma-se ainda, com a autoridade de uma comunicação oficial do poder público, que os florais alquímicos conseguem auxiliar o paciente a realizar seus projetos de vida, além de trazer consciência sobre o processo de vida do indivíduo, passando pelo cotidiano, passado e futuro.

Claro que algum defensor de práticas alternativas poderia argumentar que, mesmo não tendo apoio em estudos científicos (e, de fato, fazendo afirmações que contradizem leis científicas básicas), o floral alquímico pode propiciar conforto emocional ou psicológico, o que não deixa de ser verdade – exceto, claro, quando culpa mulheres grávidas pelas doenças que o filho vai ter no futuro, o que não é nada reconfortante.

Como discutido no capítulo “A verdade tem alguma importância?” presente no livro “Truque ou tratamento: Verdades e mentiras sobre a medicina alternativa”, muitos defensores da medicina alternativa apontam que, mesmo que as práticas não possuam evidências científicas, elas podem atuar como um placebo, proporcionando alívio e esperança para os pacientes.

Contudo, como os próprios autores destacam, os medicamentos de eficáca comprovada já despertam efeito placebo. Além disso, é importante destacar que tratamentos alternativos e práticas que operam somente como placebo podem acabar desviando os pacientes de tratamentos que realmente funcionam e conseguiriam evitar desfechos graves.

Sabendo o quanto de dinheiro é destinado à área da saúde e o quanto o setor continua defasado em diversos aspectos, é uma obrigação discutirmos se é uma boa decisão alocarmos mesmo que seja uma ínfima parcela desse montante para práticas sem respaldo científico. Resposta curta: não.

> Esse texto foi publicado originalmente com o título Alquimia, pseudociência nacional.

Comentários

CBTF disse…
Caramba, como o Brasil tá atrasado, eu achava que alquimia era coisa dos meus jogos de RPG de temática medieval.

Post mais lidos nos últimos 7 dias

90 trechos da Bíblia que são exemplos de ódio e atrocidade

Ateu usa coador de macarrão como chapéu 'religioso' em foto oficial

Fundamentalismo de Feliciano é ‘opinião pessoal’, diz jornalista

Sheherazade não disse quais seriam as 'opiniões não pessoais' do deputado Rachel Sheherazade (foto), apresentadora do telejornal SBT Brasil, destacou na quarta-feira (20) que as afirmações de Marco Feliciano tidas como homofóbicas e racistas são apenas “opiniões pessoais”, o que pareceu ser, da parte da jornalista,  uma tentativa de atenuar o fundamentalismo cristão do pastor e deputado. Ficou subentendido, no comentário, que Feliciano tem também “opiniões não pessoais”, e seriam essas, e não aquelas, que valem quando o deputado preside a Comissão de Direitos Humanos e Minorias, da Câmara. Se assim for, Sheherazade deveria ter citado algumas das opiniões “não pessoais” do pastor-deputado, porque ninguém as conhece e seria interessante saber o que esse “outro” Feliciano pensa, por exemplo, do casamento gay. Em referência às críticas que Feliciano vem recebendo, ela disse que “não se pode confundir o pastor com o parlamentar”. A jornalista deveria mandar esse recado...

PMs de Cristo combatem violência com oração e jejum

Violência se agrava em SP, e os PMs evangélicos oram Houve um recrudescimento da violência na Grande São Paulo. Os homicídios cresceram e em menos de 24 horas, de anteontem para ontem, ocorreram pelo menos 20 assassinatos (incluindo o de policiais), o triplo da média diária de seis mortes por violência. Um grupo de PMs acredita que pode ajudar a combater a violência pedindo a intercessão divina. A Associação dos Policiais Militares Evangélicos do Estado de São Paulo, que é mais conhecida como PMs de Cristo, iniciou no dia 25 de outubro uma campanha de “52 dias de oração e jejum pela polícia e pela paz na cidade”, conforme diz o site da entidade. “Essa é a nossa nobre e divina missão. Vamos avante!” Um representante do comando da corporação participou do lançamento da campanha. Com o objetivo de dar assistência espiritual aos policiais, a associação PMs de Cristo foi fundada em 1992 sob a inspiração de Neemias, o personagem bíblico que teria sido o responsável por uma mobili...

Wyllys vai processar Feliciano por difamação em vídeo

Wyllys afirmou que pastor faz 'campanha nojenta' contra ele O deputado Jean Wyllys (PSOL-RJ), na foto, vai dar entrada na Justiça a uma representação criminal contra o pastor e deputado Marco Feliciano (PSC-SP) por causa de um vídeo com ataques aos defensores dos homossexuais.  O vídeo “Marco Feliciano Renuncia” de oito minutos (ver abaixo) foi postado na segunda-feira (18) por um assessor de Feliciano e rapidamente se espalhou pela rede social por dar a entender que o deputado tinha saído da presidência da Comissão dos Direitos Humanos e Minorias, da Câmara. Mas a “renúncia” do pastor, no caso, diz o vídeo em referência aos protestos contra o deputado, é à “privacidade” e às “noites de paz e sono tranquilo”, para cuidar dos direitos humanos. O vídeo termina com o pastor com cara de choro, colocando-se como vítima. Feliciano admitiu que o responsável pelo vídeo é um assessor seu, mas acrescentou que desconhecia o conteúdo. Wyllys afirmou que o vídeo faz parte de uma...

Embrião tem alma, dizem antiabortistas. Mas existe alma?

por Hélio Schwartsman para Folha  Se a alma existe, ela se instala  logo após a fecundação? Depois do festival de hipocrisia que foi a última campanha presidencial, com os principais candidatos se esforçando para posar de coroinhas, é quase um bálsamo ver uma autoridade pública assumindo claramente posição pró-aborto, como o fez a nova ministra das Mulheres, Eleonora Menicucci. E, como ela própria defende que a questão seja debatida, dou hoje minha modesta contribuição. O argumento central dos antiabortistas é o de que a vida tem início na concepção e deve desde então ser protegida. Para essa posição tornar-se coerente, é necessário introduzir um dogma de fé: o homem é composto de corpo e alma. E a Igreja Católica inclina-se a afirmar que esta é instilada no novo ser no momento da concepção. Sem isso, a vida humana não seria diferente da de um animal e o instante da fusão dos gametas não teria nada de especial. O problema é que ninguém jamais demonstrou que ...

Defensores do Estado laico são ‘intolerantes’, diz apresentadora

Evangélico quebrou centro espírita para desafiar o diabo

"Peguei aquelas imagens e comei a quebrar" O evangélico Afonso Henrique Alves , 25, da Igreja Geração Jesus Cristo, postou vídeo [ver abaixo] no Youtube no qual diz que depredou um centro espírita em junho do ano passado para desafiar o diabo. “Eu peguei todas aquelas imagens e comecei a quebrar...” [foto acima] Na sexta (19), ele foi preso por intolerância religiosa e por apologia do ódio. “Ele é um criminoso que usa a internet para obter discípulos”, disse a delegada Helen Sardenberg, depois de prendê-lo ao término de um culto no Morro do Pinto, na Zona Portuária do Rio. Também foi preso o pastor Tupirani da Hora Lores, 43. Foi a primeira prisão no país por causa de intolerância religiosa, segundo a delegada. Como 'discípulo da verdade', Alves afirma no vídeo coisas como: centro espírito é lugar de invocação do diabo, todo pai de santo é homossexual, a imprensa e a polícia estão a serviço do demônio, na Rede Globo existe um monte de macumbeiros, etc. A...

Físico afirma que cientistas só podem pensar na existência de Deus como hipótese

Apoio de âncora a Feliciano constrange jornalistas do SBT

Opiniões da jornalista são rejeitadas pelos seus colegas O apoio velado que a âncora Rachel Sheherazade (foto) manifestou ao pastor-deputado Marco Feliciano (PSC-SP)  deixou jornalistas e funcionários do "SBT Brasil" constrangidos. O clima na redação do telejornal é de “indignação”, segundo a Folha de S.Paulo. Na semana passada, Sheherazade minimizou a importância das afirmações tidas como homofóbicas e racistas de Feliciano, embora ele seja o presidente da Comissão de Direitos Humanos da Câmara, dizendo tratar-se apenas de “opinião pessoal”. A Folha informou que os funcionários do telejornal estariam elaborando um abaixo assinado intitulado “Rachel não nos representa” para ser encaminhado à direção da emissora. Marcelo Parada, diretor de jornalismo do SBT, afirmou não saber nada sobre o abaixo assinado e acrescentou que os âncoras têm liberdade para manifestar sua opinião. Apesar da rejeição de seus colegas, Sheherazade se sente segura no cargo porque ela cont...