Pular para o conteúdo principal

Mais religião, menos escolas e saúde pública sofrível. Eis a lógica da tragédia brasileira

Nos Estados onde faltam comida e emprego e um resfriado mata, as pessoas só podem olhar para o céu e rezar 


Janice Theodoro da Silva
professora da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP

Jornal da USP

Brasileiro gosta de futebol e pregação. Vê gente chutando bola, chuta. Vê gente pregando na rua, para e escuta. Brasileiro não gosta de escola, mas aprecia a refeição, o lanche, a bolacha. Brasileiro torce para a aula acabar logo e ir trabalhar, tentar ganhar um pouco mais. Brasileiro paga todos os pecados quando fica doente.

Que país é este?

Conforme os dados recolhidos e divulgados pelo IBGE, existem no Brasil 579,8 mil  estabelecimentos religiosos, 264,4 mil estabelecimentos dedicados à educação e 247,5 mil dedicados à saúde.

Considerando as ressalvas feitas por José Eustáquio Diniz Alves, a reflexão sobre o tema é necessária.

Para ele, […] os dados do IBGE são mais amplos. As pesquisas anteriores consideraram os templos religiosos registrados, com CNPJ, enquanto a do IBGE pega todo estabelecimento religioso, com CNPJ ou não, e não necessariamente templos. A Igreja Universal, por exemplo, pode ter uma casa num bairro pobre para distribuir alimentos, e ele é considerado um estabelecimento religioso. Vale também o contrário, a Igreja do Evangelho Quadrangular ter uma creche, e ela ser considerada um estabelecimento de ensino.

Que país é este? 
O Brasil do futuro?
IMAGEM GERADA POR IA

Observando os Estados do Sudeste e, sem desvendar o mistério do Piauí, é fato:

São Paulo, Piauí e os três Estados do Sul são as únicas unidades da federação cuja soma entre estabelecimentos de ensino e de saúde supera a de religiosos.

Observando o mesmo dado em Rondônia e Amazonas, é fato:

No Amazonas e em Rondônia, a proporção de estabelecimentos religiosos (19.134 e 7.670, respectivamente) é o dobro da soma dos de ensino e saúde (9.790 e 3.820, respectivamente).

A partir dos dados podemos levantar algumas hipóteses simples:

Nos Estados brasileiros onde falta comida no prato, falta emprego e um resfriado mata, nos Estados onde os problemas da carne só podem ser resolvidos por meio de políticas públicas, da presença do Estado, a solução é olhar para o céu e rezar.

Nestes Estados, o raciocínio da população é do tipo circunstancial-religioso.

Explico.

Para o garimpeiro pobre que precisa ganhar para comprar a comida do dia, não existe um amanhã, pouco importa floresta em pé garantindo um futuro melhor.

Para quem? O futuro sugere pó, pó de terra. Tudo vai virar pó, a onça, a mata, ele, seus filhos e descendentes. Não me parece estranho imaginar garimpeiros rezando para não serem descobertos pelos agentes da lei.

Sem comida e trabalho, o que sobra para fazer?

Sonhos à moda da cachorra Baleia (Graciliano Ramos).


Um elemento importante para compreender os mistérios da fé é a comida, o pão de cada dia. Existem outros, a falta de emprego, de trabalho honesto (não escravo) e patrão do tipo humano, sem tortura.

Com essas mercadorias escassas, a religião aponta com uma tendência de alta no mercado.

As igrejas, especialmente as pentecostais, consideram sintoma da graça o vil metal, o dinheiro. São hábeis na transubstanciação do material no espiritual.

Pesquisa do cientista político Victor Araújo, associado ao Centro de Estudos da Metrópole (CEM), mapeou essa transição. Só em 2019, foram abertas 6.356 igrejas evangélicas no país, média de 17 por dia. 

O estudo rastreou 109,5 mil igrejas evangélicas de muitas denominações, ante cerca de 20 mil em 2015. O predomínio é das pentecostais. Entre os motivos do boom está o enfraquecimento do catolicismo, que perdeu alcance com a formação das periferias urbanas após o êxodo rural.

Algumas igrejas evangélicas, sem preconceitos com as demandas da carne, oferecem apoio espiritual estimulando, o que é louvável, uma pessoa ajudar uma outra pessoa fora da sagrada família. Trata-se de ajuda mútua planejada, de eficientes redes de busca de emprego, programas voltados para pequenos negócios e trocas de todo tipo. Soluções terrenas, estímulos para a vida espiritual. Estas variáveis (entre outras) justificam parte do sucesso das igrejas evangélicas.
Saúde


Com relação à saúde, muita gente prefere, especialmente depois da Covid, entregar a vida nas mãos de Deus.

É compreensível.

As últimas experiências com relação às doenças e às epidemias demonstraram desacordos entre os homens da ciência, gente engravatada e até de jaleco. Desacordo responsável por mortes. Muita falação e nenhum entendimento sobre remédios e tratamento. Confusão grande, difícil de separar quem é “verdadeiramente iluminado por Deus”.

Solução popular: É melhor cada um falar diretamente com Deus. Sem intermediários. E esperar, resignadamente, o dia final, da redenção dos corpos.
Educação

Com relação às instituições escolares, falta apreço. Não é difícil compreender as razões brasileiras. Em algumas regiões do nosso imenso território, chegar à escola é difícil. Os recursos em sala de aula são pequenos, e nem sempre os professores estão satisfeitos com o que fazem e recebem. É uma vida sofrida para os estudantes e para os professores. Gera despesa e, depois da conclusão dos estudos, o conhecimento obtido não representa oportunidade de emprego melhor.

A educação no Brasil (de baixa qualidade) não cria horizontes para o futuro, não permite sonhar.

Conclusão temporária e datada: É melhor jogar futebol enquanto a idade permitir, ser realista em relação aos empregos e os baixos salários e manter alguma espiritualidade para situações de emergência, de desespero. Não há dúvida: em zonas sem energia elétrica para carregar o celular, só existe uma solução para a desesperança, rezar.

Brasileira típica

Conto uma história delicada. Minha mãe estava muito doente. Alguém sugeriu uma benzedeira com poderes extraordinários. Ela perguntou o que eu achava. Respondi na lata: Boa ideia. Onde é? Levei a minha mãe.

Confesso, tive uma gota de esperança.

Para não perder o foco diante das minhas humanas ambiguidades e ser fiel com a razão moderna, tipo USP, resumo as considerações em uma “fórmula matemática” simples e limpa. Talvez os politécnicos gostem. A esperança é a última que morre.

Mais religião = Menos educação – Menos saúde
Menos Estado = Mais religião
Mais Estado = Mais educação + Mais saúde
Menos religião = Mais Estado

Comentários

Post mais lidos nos últimos 7 dias

90 trechos da Bíblia que são exemplos de ódio e atrocidade

Malafaia divulga mensagem homofóbica em outdoors do Rio

Traficantes evangélicos proíbem no Rio cultos de matriz africana

Agência Brasil Comissão da Combate à Intolerância diz que bandidos atacam centros espíritas  O Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro e a CCIR (Comissão de Combate à Intolerância Religiosa) se reuniram na terça-feira para debater o pedido de instauração de inquérito de modo a investigar a denúncia de que traficantes que se declaram evangélicos de Vaz Lobo e Vicente de Carvalho, na zona norte do Rio, estão proibindo religiões de matriz africana de manterem cultos na região. Segundo a comissão, vários centros espíritas estão sendo invadidos por pessoas que dizem ser do tráfico, expulsando fiéis e ameaçando pessoas por usarem roupa branca. O presidente da CCIR, Ivanir dos Santos, relatou que a discriminação não é novidade e que vários religiosos de matriz africana passaram por situações parecidas diversas vezes. "Isso não começou hoje, vem desde 2008. Precisávamos conversar neste momento com o Ministério Público para conseguir uma atuação mais concreta. Vamos entre

MP pede prisão do 'irmão Aldo' da Apostólica sob acusação de estupro

Neymar paga por mês R$ 40 mil de dízimo à Igreja Batista

Dinheiro do jogador é administrado por seu pai O jogador Neymar da Silva Santos Júnior (foto), 18, paga por mês R$ 40 mil de dízimo, ou seja, 10% de R$ 400 mil. Essa quantia é a soma de seu salário de R$ 150 mil nos Santos com os patrocínios. O dinheiro do jogador é administrado pelo seu pai e empresário, que lhe dá R$ 5 mil por mês para gastos em geral. O pai do jogador, que também se chama Neymar, lembrou que o primeiro salário do filho foi de R$ 450. Desse total, R$ 45 foram para a Igreja Batista Peniel, de São Vicente, no litoral paulista, que a família frequenta há anos. Neymar, o pai, disse que não deixa muito dinheiro com o filho para impedi-lo de se tornar consumista. “Cinco mil ainda acho muito, porque o Juninho não precisa comprar nada. Ele tem contrato com a Nike, ganha roupas, tudo. Parece um polvo, tem mais de 50 pares de sapatos”, disse o pai a Debora Bergamasco, do Estadão. O pai contou que Neymar teve rápida ascensão salarial e que ele, o filho, nunca d

Sociedade está endeusando os homossexuais, afirma Apolinario

por Carlos Apolinário para Folha Não é verdade que a criação do Dia do Orgulho Hétero incentiva a homofobia. Com a aprovação da lei, meu objetivo foi debater o que é direito e o que é privilégio. Muitos discordam do casamento gay e da adoção de crianças por homossexuais, mas lutar por isso é direito dos gays. Porém, ao manterem apenas a Parada Gay na avenida Paulista, estamos diante de um privilégio. Com privilégios desse tipo, a sociedade caminha para o endeusamento dos homossexuais. Parece exagero, mas é disso que se trata quando a militância gay tenta aprovar no Congresso o projeto de lei nº 122, que ameaça a liberdade de imprensa. Se essa lei for aprovada, caso um jornal entreviste alguém que fale contra o casamento gay, poderá ser processado. Os líderes do movimento gay querem colocar o homossexualismo acima do bem e do mal. E mais: se colocam como vítimas de tudo. Dá até a impressão de que, em todas as ruas do Brasil, tem alguém querendo matar um gay. Dizem que a cada

Ricardo Gondim seus colegas pastores que são 'vigaristas'

Título original: Por que parti por Ricardo Gondim  (foto), pastor Gondim: "Restou-me dizer  chega  por não aguentar mais" Depois dos enxovalhos, decepções e constrangimentos, resolvi partir. Fiz consciente. Redigi um texto em que me despedia do convívio do Movimento Evangélico. Eu já não suportava o arrocho que segmentos impunham sobre mim. Tudo o que eu disse por alguns anos ficou sob suspeita. Eu precisava respirar. Sabedor de que não conseguiria satisfazer as expectativas dos guardiões do templo, pedi licença. Depois de tantos escarros, renunciei. Notei que a instituição que me servia de referencial teológico vinha se transformando no sepulcro caiado descrito pelos Evangelhos. Restou-me dizer chega por não aguentar mais. Eu havia expressado minha exaustão antes. O sistema religioso que me abrigou se esboroava. Notei que ele me levava junto. Falei de fadiga como denúncia. Alguns interpretaram como fraqueza. Se era fraqueza, foi proveitosa, pois despertava

Estudante expulsa acusa escola adventista de homofobia

Arianne disse ter pedido outra com chance, mas a escola negou com atualização Arianne Pacheco Rodrigues (foto), 19, está acusando o Instituto Adventista Brasil Central — uma escola interna em Planalmira (GO) — de tê-la expulsada em novembro de 2010 por motivo homofóbico. Marilda Pacheco, a mãe da estudante, está processando a escola com o pedido de indenização de R$ 50 mil por danos morais. A primeira audiência na Justiça ocorreu na semana passada. A jovem contou que a punição foi decidida por uma comissão disciplinar que analisou a troca de cartas entre ela e outra garota, sua namorada na época. Na ata da reunião da comissão consta que a causa da expulsão das duas alunas foi “postura homossexual reincidente”. O pastor  Weslei Zukowski (na foto abaixo), diretor da escola, negou ter havido homofobia e disse que a expulsão ocorreu em consequência de “intimidade sexual” (contato físico), o que, disse, é expressamente proibido pelo regulamento do estabelecimento. Consel

Milagrento Valdemiro Santiago radicaliza na exploração da fé

'O que se pode plantar no meio de tanto veneno deste blog?'

de um leitor a propósito de Por que o todo poderoso Deus ficou cansado após seis dias de trabalho?   Bem, sou de Deus e fiquei pensativo se escrevia  algo aqui porque o que se nota é um desespero angustiado na alma de alguns cheios de certezas envenenadas, com muita ironia, muita ironia mesmo. Paulo foi o maior perseguidor do evangelho e se tornou o maior sofredor da causa cristã. Os judeus são o povo escolhido, mas Deus cegou seu entendimento para que a salvação se estendesse aos gentios. Isso mostra que quando Deus decide Se revelar a alguém, Ele o faz, seja ou não ateu. Todo esse rebuliço e vozes de revolta, insatisfação, desdém em que podem afetá-Lo? Quanto a esse blog, "o que se pode plantar no meio de tanto veneno?" Tudo aqui parece gerar mais discórdia. Se vocês não têm fé e não acreditam Nele, por que a ideia de Deus lhe perturbam tanto e alguns (não todos) passam a perseguir quem expressa uma fé, principalmente a cristã? Por que tanto desamor e