Pular para o conteúdo principal

SUS já realizou mais de 24 mil sessões da controvertida constelação familiar

No período de 2019 a 2022, Rio Grande do Sul é o estado onde houve mais sessões no SUS; dez universidades confirmaram terem oferecido a terapia condenada pelo Conselho Federal de Psicologia


JULLIA GOUVEIA
KAROL BERNARDI

jornalistas

Agência Pública
jornalismo investigativo
sem fins lucrativo

Moradora de Laguna, no litoral de Santa Catarina, Cleide de Lima nunca tinha ouvido falar em constelação familiar quando procurou uma Unidade Básica de Saúde para tratar um problema no lado direito do quadril. Da fisioterapia, seguiu para a yoga e, depois, foi apresentada ao tratamento por uma enfermeira consteladora. Ela não sabia que estava em um dos municípios do país que mais realiza sessões pelo SUS.

Segundo levantamento da Agência Pública, desde 2018, foram realizadas mais de 24,2 mil sessões de constelação no SUS no Brasil. Os estados com maior quantidade foram Rio Grande do Sul, São Paulo, Santa Catarina, Goiás e Bahia, nessa ordem. Já em relação ao tamanho da população, o Estado campeão é o Rio Grande do Norte.

A constelação familiar é uma técnica alternativa que utiliza dinâmicas para resolução de conflitos familiares. Ela realiza dramatizações, muitas vezes em grupos, para recriar cenas e eventos familiares que podem envolver antepassados de várias gerações.

Os municípios que mais realizaram constelação são Tomazina (PR), Laguna (SC), Itumbiara (GO) e Rodolfo Fernandes (RN). 

Proporcionalmente, o município com mais sessões de constelação em relação à população é Rodolfo Fernandes. Das 10 cidades com mais sessões de constelação proporcionais à população, nove têm menos de cinco mil habitantes, segundo dados do Censo 2022 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) — a exceção é Tomazina, com pouco mais de oito mil moradores.

O ano que mais registrou constelações pelo SUS no período foi 2022, com mais de 9,8 mil no país. Os dados são do Sistema de Informação em Saúde para a Atenção Básica (SISAB).

A constelação familiar foi indicada pela portaria 702, do Ministério da Saúde, de 2018, “para qualquer pessoa doente, em qualquer nível e qualquer idade”. Contudo, nem o ensino, nem a prática profissional da constelação são regulamentados no Brasil. Não existe um protocolo para sua aplicação no SUS e cada estado e município tem a autonomia para aderir e determinar as diretrizes de funcionamento do método, como ocorre com outras práticas integrativas e complementares, como a acupuntura, que exige que os profissionais de saúde tenham o título de especialista na técnica para aplicá-la.

Atendimento no SUS
entre 2019 e 2022
Dados levantados pela Agência Pública

O Ministério da Saúde não detalha nenhuma exigência específica de formação para trabalhar com as práticas no sistema público, apenas recomenda que sejam priorizados servidores que já atuem com esse serviço. Também aconselha, no caso de aplicação profissional da prática, “consultar o Conselho de Classe Profissional a que está vinculado, sobre as exigências definidas para o exercício da prática e, dessa forma, evitar o exercício irregular da profissão”.

Dos Conselhos Federais da Saúde, apenas o de Psicologia elaborou uma nota técnica de orientação aos profissionais sobre a constelação. No texto, o CFP conclui que a atividade é incompatível com o exercício profissional da Psicologia do ponto de vista ético, científico e epistemológico.

O conselho cita a falta de pesquisas que atestem a cientificidade da prática e alega que os métodos utilizados reproduzem “conceitos patologizantes” de gênero, sexualidade, masculinidade e feminilidade.

A entidade destaca que a concepção de casal adotada pela constelação é “calcada na heterossexualidade compulsória”. A crítica se baseia no fato de que a constelação frequentemente tem como pilar a união entre um homem e uma mulher para formar uma família. Também aponta passagens nas obras de Hellinger que atribuem às mulheres e aos homens “papéis naturalizados e desiguais”, onde frequentemente o poder dado ao marido ou pai é maior – numa relação, o homem teria precedência sobre a mulher, ou seja, estaria acima na hierarquia e precisaria ter sua posição respeitada. 

O conselho de Psicologia critica ainda o viés conservador com o qual a infância e juventude é tratada, naturalizando a ausência de direito desses cidadãos. Esses fatores, segundo o CFP, vão na contramão da prerrogativa de promover a saúde de indivíduos e coletividades fundamentais para a Psicologia.

Em resposta ao CFP, a Associação Brasileira de Consteladores (ABC) divulgou uma declaração na qual argumenta que a constelação não está vinculada à Psicologia, “ainda que desperte interesse dos profissionais desta área”. 

Também defende que “a validação científica de algo que é novo sempre vem a posteriori” e que “quem conhece com propriedade a Constelação Sistêmica/Familiar sabe que esta é uma ferramenta útil para alavancar processos estagnados”.

Universidades públicas

A constelação familiar já aparece em instituições públicas de nível superior no Brasil, mas ainda são compostos por iniciativas isoladas. A Universidade Federal de Uberlândia (UFU), por exemplo, ofereceu em 2015 duas oficinas com o tema “Direito Sistêmico: justiça curativa, soluções profundas”. 

Já o Núcleo de Práticas Jurídicas do curso de Direito da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) pesquisou o Direito Sistêmico e suas aplicações em conflitos familiares em 2017 — Direito Sistêmico é como é chamada a utilização da constelação no Judiciário. O projeto foi encerrado e o curso não tem previsão de estudar a técnica novamente, segundo a docente que coordenou o estudo.

Das 68 universidades federais brasileiras, dez confirmaram à reportagem que oferecem ou já ofereceram projetos de extensão, cursos ou atividades de constelação. 

Além da UFSC, as seguintes universidades confirmaram ter projetos com a prática: Universidade Federal de Goiás (UFG), Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Universidade Federal do Ceará (UFC), Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). A UFU, citada na matéria, realizou o último curso de Direito Sistêmico em 2022. 

A Universidade Federal do Acre (UFAC) e a Universidade Federal de Jataí (UFJ) também informaram terem encerrado as atividades.

É na área da saúde que a constelação ganha cada vez mais espaço em projetos de extensão nas universidades federais. Um exemplo é o Projeto Amanhecer da UFSC. Criado em 1996 “a fim de oferecer terapias complementares aos profissionais de enfermagem do Hospital Universitário”, o projeto recebeu esse nome em 2004, quando se expandiu para “oferecer terapias complementares em saúde também aos servidores e comunidade acadêmica”.

Coordenadora do Amanhecer e professora do Curso de Farmácia da UFSC, Liliete Souza conta que o projeto já chegou a oferecer 47 tipos de terapias alternativas, entre atividades contempladas nas PICs e iniciativas próprias, como astrologia vocacional e bambuterapia. 

A professora, que também ministra as oficinas de dança meditativa, explica que todas as atividades são desenvolvidas de forma voluntária por professores ou outros profissionais sem vínculo com a universidade.

Em uma das constelações, uma mulher teria descoberto que, de acordo com a prática, o seu sucesso profissional estaria relacionado a uma maior ligação ao lado paterno, mas seus problemas financeiros, à mãe. “Eu tenho um laço forte com meu pai, então meu lado profissional está bom, mas meu lado financeiro, que é o da mãe, não”, conclui.

Para a psicóloga Beatriz Coltro, psicoterapêutico é um termo que descreve as práticas profissionais dentro da Psicologia, enquanto terapêutico pode ter um sentido mais amplo no vocabulário do dia a dia. 

Ela explica que, em geral, é comum afirmarmos que algo é terapêutico quando aquilo nos faz bem: “Posso estar aqui tomando meu chá e dizer que chá é terapêutico para mim”.

Por isso, Beatriz acredita que se alguém passa por um processo de constelação e consegue ver a experiência como algo produtivo e que traz sentido a suas inquietações, pode entender a situação como terapêutica. 

O problema para ela é que, por conta das premissas da constelação, a prática acaba beneficiando algumas pessoas em prejuízo do reconhecimento da autonomia de outras e da possibilidade de livre expressão, “sustentando alguns preconceitos e concepções sobre o ser humano restritas e que já estão ultrapassadas, inclusive pelas ciências humanas e sociais. 

Para a Maria [em alusão a uma mulher que faça constelação] foi bom, mas porque a Maria está vivendo num sistema predominantemente machista em que a resolução de um conflito, de uma angústia, pode estar envolvida com algo muito superficial, como escutar um pedido de desculpas que ela acha que deve ouvir”, diz.

Além dos projetos em universidades, centenas de instituições e empresas oferecem os mais diversos tipos de cursos de constelação familiar, com temáticas que vão de Negócios e Administração à capacitação para atuar como terapeuta. 

Uma busca no Google por “cursos de constelação familiar” oferece mais de um milhão de resultados, incluindo múltiplos links patrocinados.

A promessa de retorno financeiro é uma estratégia frequente para cativar interessados, como anuncia um curso on-line que pode ser adquirido em 12 vezes de R$ 99: “Com apenas 6 sessões de trabalho, você já pagará todo o Curso!” (Edição: Bruno Fonseca)

Comentários

CBTF disse…
Só podia ser o Rio Grande do Sul na frente, o estado campeão de aplicação de Ozônio Retal e de beber cloroquina, incrível, uma pseudociência sempre leva a outra.
Pior que a falta de recursos no nosso SUS é a PÉSSIMA utilização em pseudociências, pior ainda quando estas são intolerantes. Fora haver isso também em UNIVERSIDADES, onde deveria prevalecer o SABER, o aprimoramento do conhecimento humano, das Ciências.
A realidade tem seus limites, mas a imaginação hunama não, pior quando esta última o é para esse festival de bobagens, onde até validaram aquelas preconeituosas.

Post mais lidos nos últimos 7 dias

90 trechos da Bíblia que são exemplos de ódio e atrocidade

Malafaia divulga mensagem homofóbica em outdoors do Rio

Traficantes evangélicos proíbem no Rio cultos de matriz africana

Agência Brasil Comissão da Combate à Intolerância diz que bandidos atacam centros espíritas  O Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro e a CCIR (Comissão de Combate à Intolerância Religiosa) se reuniram na terça-feira para debater o pedido de instauração de inquérito de modo a investigar a denúncia de que traficantes que se declaram evangélicos de Vaz Lobo e Vicente de Carvalho, na zona norte do Rio, estão proibindo religiões de matriz africana de manterem cultos na região. Segundo a comissão, vários centros espíritas estão sendo invadidos por pessoas que dizem ser do tráfico, expulsando fiéis e ameaçando pessoas por usarem roupa branca. O presidente da CCIR, Ivanir dos Santos, relatou que a discriminação não é novidade e que vários religiosos de matriz africana passaram por situações parecidas diversas vezes. "Isso não começou hoje, vem desde 2008. Precisávamos conversar neste momento com o Ministério Público para conseguir uma atuação mais concreta. Vamos entre

MP pede prisão do 'irmão Aldo' da Apostólica sob acusação de estupro

Neymar paga por mês R$ 40 mil de dízimo à Igreja Batista

Dinheiro do jogador é administrado por seu pai O jogador Neymar da Silva Santos Júnior (foto), 18, paga por mês R$ 40 mil de dízimo, ou seja, 10% de R$ 400 mil. Essa quantia é a soma de seu salário de R$ 150 mil nos Santos com os patrocínios. O dinheiro do jogador é administrado pelo seu pai e empresário, que lhe dá R$ 5 mil por mês para gastos em geral. O pai do jogador, que também se chama Neymar, lembrou que o primeiro salário do filho foi de R$ 450. Desse total, R$ 45 foram para a Igreja Batista Peniel, de São Vicente, no litoral paulista, que a família frequenta há anos. Neymar, o pai, disse que não deixa muito dinheiro com o filho para impedi-lo de se tornar consumista. “Cinco mil ainda acho muito, porque o Juninho não precisa comprar nada. Ele tem contrato com a Nike, ganha roupas, tudo. Parece um polvo, tem mais de 50 pares de sapatos”, disse o pai a Debora Bergamasco, do Estadão. O pai contou que Neymar teve rápida ascensão salarial e que ele, o filho, nunca d

Sociedade está endeusando os homossexuais, afirma Apolinario

por Carlos Apolinário para Folha Não é verdade que a criação do Dia do Orgulho Hétero incentiva a homofobia. Com a aprovação da lei, meu objetivo foi debater o que é direito e o que é privilégio. Muitos discordam do casamento gay e da adoção de crianças por homossexuais, mas lutar por isso é direito dos gays. Porém, ao manterem apenas a Parada Gay na avenida Paulista, estamos diante de um privilégio. Com privilégios desse tipo, a sociedade caminha para o endeusamento dos homossexuais. Parece exagero, mas é disso que se trata quando a militância gay tenta aprovar no Congresso o projeto de lei nº 122, que ameaça a liberdade de imprensa. Se essa lei for aprovada, caso um jornal entreviste alguém que fale contra o casamento gay, poderá ser processado. Os líderes do movimento gay querem colocar o homossexualismo acima do bem e do mal. E mais: se colocam como vítimas de tudo. Dá até a impressão de que, em todas as ruas do Brasil, tem alguém querendo matar um gay. Dizem que a cada

Ricardo Gondim seus colegas pastores que são 'vigaristas'

Título original: Por que parti por Ricardo Gondim  (foto), pastor Gondim: "Restou-me dizer  chega  por não aguentar mais" Depois dos enxovalhos, decepções e constrangimentos, resolvi partir. Fiz consciente. Redigi um texto em que me despedia do convívio do Movimento Evangélico. Eu já não suportava o arrocho que segmentos impunham sobre mim. Tudo o que eu disse por alguns anos ficou sob suspeita. Eu precisava respirar. Sabedor de que não conseguiria satisfazer as expectativas dos guardiões do templo, pedi licença. Depois de tantos escarros, renunciei. Notei que a instituição que me servia de referencial teológico vinha se transformando no sepulcro caiado descrito pelos Evangelhos. Restou-me dizer chega por não aguentar mais. Eu havia expressado minha exaustão antes. O sistema religioso que me abrigou se esboroava. Notei que ele me levava junto. Falei de fadiga como denúncia. Alguns interpretaram como fraqueza. Se era fraqueza, foi proveitosa, pois despertava

Estudante expulsa acusa escola adventista de homofobia

Arianne disse ter pedido outra com chance, mas a escola negou com atualização Arianne Pacheco Rodrigues (foto), 19, está acusando o Instituto Adventista Brasil Central — uma escola interna em Planalmira (GO) — de tê-la expulsada em novembro de 2010 por motivo homofóbico. Marilda Pacheco, a mãe da estudante, está processando a escola com o pedido de indenização de R$ 50 mil por danos morais. A primeira audiência na Justiça ocorreu na semana passada. A jovem contou que a punição foi decidida por uma comissão disciplinar que analisou a troca de cartas entre ela e outra garota, sua namorada na época. Na ata da reunião da comissão consta que a causa da expulsão das duas alunas foi “postura homossexual reincidente”. O pastor  Weslei Zukowski (na foto abaixo), diretor da escola, negou ter havido homofobia e disse que a expulsão ocorreu em consequência de “intimidade sexual” (contato físico), o que, disse, é expressamente proibido pelo regulamento do estabelecimento. Consel

Milagrento Valdemiro Santiago radicaliza na exploração da fé

'O que se pode plantar no meio de tanto veneno deste blog?'

de um leitor a propósito de Por que o todo poderoso Deus ficou cansado após seis dias de trabalho?   Bem, sou de Deus e fiquei pensativo se escrevia  algo aqui porque o que se nota é um desespero angustiado na alma de alguns cheios de certezas envenenadas, com muita ironia, muita ironia mesmo. Paulo foi o maior perseguidor do evangelho e se tornou o maior sofredor da causa cristã. Os judeus são o povo escolhido, mas Deus cegou seu entendimento para que a salvação se estendesse aos gentios. Isso mostra que quando Deus decide Se revelar a alguém, Ele o faz, seja ou não ateu. Todo esse rebuliço e vozes de revolta, insatisfação, desdém em que podem afetá-Lo? Quanto a esse blog, "o que se pode plantar no meio de tanto veneno?" Tudo aqui parece gerar mais discórdia. Se vocês não têm fé e não acreditam Nele, por que a ideia de Deus lhe perturbam tanto e alguns (não todos) passam a perseguir quem expressa uma fé, principalmente a cristã? Por que tanto desamor e