Pular para o conteúdo principal

Estrutura de madeira de meio milhão de anos é vestígio da tecnologia de hominídeos

Cunha de 476 mil anos descoberta na Zâmbia indica o uso de ferramenta produzida e usada pelos humanos antigos 


SHADRECK CHIRIKURE
professor de ciências arqueológicas
na Universidade de Oxford,
no Reino Unidos

The Conversation
plataforma de informação
e análise produzida por 
acadêmicos e jornalistas

Para a maioria das pessoas, as tecnologias complexas separam os seres humanos modernos de seus ancestrais que viveram na Idade da Pedra, milhares ou centenas de milhares de anos atrás. No mundo atual, que muda rapidamente, as tecnologias mais antigas, mesmo aquelas de alguns anos atrás, são frequentemente descritas de forma desdenhosa como “Idade da Pedra”.

Esses termos servem para nos desconectar de nossos parentes antigos, que eram muito mais sofisticados do que às vezes pensamos.

Uma equipe liderada pelo arqueólogo Larry Barham, da Universidade de Liverpool, publicou recentemente evidências robustas e bem datadas do uso mais antigo conhecido da tecnologia da madeira. A estrutura de madeira, juntamente com artefatos, data de 476.000 anos atrás e foi escavada de depósitos alagados em Kalambo Falls, Zâmbia.

Esse sítio arqueológico é famoso por produzir vestígios de desenvolvimento cultural humano que datam de centenas de milhares de anos atrás.

As evidências extremamente bem preservadas encontradas por Barham e seus colegas incluem, entre outras coisas, uma cunha (um tipo de ferramenta de madeira), um bastão de escavação, um tronco cortado com a ajuda de ferramentas e um galho com um entalhe.

Mas por que, na era da IA e da robótica, a tecnologia da madeira de quase meio milhão de anos atrás deveria gerar tanto interesse tanto dos cientistas quanto do público?

As evidências de Kalambo Falls demonstram uma capacidade notável dos primeiros hominídeos (parentes humanos antigos) de obter madeira e moldá-la com ferramentas.

Eles eram capazes de produzir não apenas uma variedade de outras ferramentas, mas também estruturas sofisticadas de madeira. Não sabemos exatamente que espécie produziu a estrutura, mas Homo heidelbergensis ou uma espécie semelhante a Homo naledi podem ser candidatos, entre outros.

Esses resultados têm implicações de longo alcance para nossa compreensão de como os materiais sustentáveis eram usados no início da Idade da Pedra. Também lançam luz sobre as capacidades dos primeiros hominídeos.

Da especulação ao fato

Arqueologia é o estudo da história profunda e recente usando os restos de coisas deixadas por pessoas que vieram antes de nós. Entretanto, essas histórias são tendenciosas em favor de coisas que sobreviveram à passagem do tempo ou que se deterioraram, mas deixaram rastros.

Esta cunha é tecnologia
que antecedeu a
Idade da Pedra

FOTO: DIVULGAÇÃO


Os seres humanos viveram na era conhecida como Idade da Pedra por quase 99% da história humana. A Idade da Pedra Primitiva é considerada a primeira e talvez a mais longa “era tecnológica”, estendendo-se de quase quatro milhões de anos atrás a 300.000 anos atrás.

Sabemos mais sobre ferramentas de pedra durante essa fase inicial do desenvolvimento humano, em parte porque os materiais inorgânicos, como as rochas, são quase indestrutíveis em comparação com aqueles feitos de materiais perecíveis, como a madeira.

De fato, a madeira é muito escassa em depósitos pertencentes ao início da Idade da Pedra, exigindo condições excepcionais de preservação para não se deteriorar. Ela sobrevive apenas em ambientes extremamente secos, como desertos, ou em condições extremamente úmidas, como foi o caso das Cataratas de Kalambo.

Dada a escassez de evidências, a prova direta do uso intencional da madeira de mais de 400.000 anos atrás transforma radicalmente nossa compreensão da antiguidade da madeira como tecnologia e há quanto tempo os hominídeos interagem com esse material versátil. Eles a utilizavam para fabricar ferramentas, construir abrigos, obter alimentos e, talvez, até mesmo como combustível em suas vidas diárias.

Embora os pesquisadores suspeitassem que a tecnologia da madeira fosse amplamente utilizada pelos primeiros hominídeos, sem evidências concretas e diretas, não podíamos aceitar isso como fato. A arqueologia é um campo de estudo baseado em descobertas e evidências - ver para crer. 

A descoberta de Kalambo Falls transformou a especulação em fato, mudando nossa compreensão da história da tecnologia.

Beneficiando o meio ambiente

No entanto, parte do desafio vem de conceitos da história humana que podem ser descritos como progressistas ou lineares, que consideram a história como um avanço inevitável em direção à modernidade por meio de conquistas científicas e tecnológicas.

No passado, alguns cientistas consideravam que as mentes dos primeiros hominídeos eram mais limitadas em comparação com as dos humanos modernos. Eles acreditavam que a tecnologia e a cultura melhoravam em sofisticação à medida que o tamanho do cérebro humano aumentava, passando de um estado “simples” para o mundo complexo, dominado por algoritmos, em que vivemos hoje.

Apesar do fato de o tamanho do cérebro ter aumentado com o tempo e de a tecnologia ter mudado, é possível que aqueles que vieram antes de nós tivessem uma compreensão impressionante dos materiais ao seu redor e cuidassem do ambiente.

A construção de madeira intencionalmente moldada em Kalambo Falls é uma ilustração de design, tecnologia e criatividade, usando o que, no mundo atual, chamaríamos de tecnologia verde.

As noções de “progresso” estão profundamente arraigadas na cultura. Isso também pode ser um representante do excepcionalismo dos seres humanos modernos (Homo sapiens), a crença de que há algo único ou exemplar em nossa espécie em comparação com os hominídeos anteriores. 

Se deixarmos essas noções de lado, podemos reconhecer que as chamadas “tecnologias atrasadas” podem beneficiar muito o meio ambiente e o planeta.

O fato de a madeira ser perecível faz dela um material mais sustentável, ao contrário de alguns materiais de construção modernos que são quase indestrutíveis e deixam ruínas visíveis. A fabricação desses materiais modernos também emite gases de efeito estufa que contribuem para a mudança climática.

É claro que há riscos associados ao uso da madeira como material de construção, como incêndio e deterioração. Mas, em situações apropriadas, devemos continuar nossa longa tradição de construir com madeira. Talvez os antigos não fossem tão retrógrados, mas sim mais progressistas do que nós quando se trata de cuidar do planeta por meio de uma tomada de decisão sólida.

Em resumo, as evidências de Kalambo Falls sugerem que, pelo menos algumas vezes, os primeiros hominídeos conseguiram aproveitar outros materiais além da pedra para suas necessidades cotidianas, incluindo a fabricação de ferramentas e abrigos. Eles também podem ter conseguido usar os recursos de seu ambiente para obter combustível e remédios.

No entanto, precisamos de evidências mais diretas, voltando aos primórdios da Idade da Pedra para demonstrar como aqueles que vieram antes de nós usavam e trabalhavam com a madeira. Mais descobertas como essa podem até nos levar a renomear a poderosa Idade da Pedra como a Idade da Madeira.

• DNA de ossos de 90 mil anos revela descendente de duas espécies de hominídeos

• Fósseis indicam descoberta de nova espécie de humanoide

Comentários

Post mais lidos nos últimos 7 dias

90 trechos da Bíblia que são exemplos de ódio e atrocidade

Icar queixa-se de que é tratada apenas como mais uma crença

Bispos do Sínodo para as Américas elaboraram um relatório onde acusam autoridades governamentais de países do continente americano de darem à Igreja Católica um tratamento como se ela fosse apenas mais uma crença entre tantas outras, desconsiderando o seu “papel histórico inegável”. Jesuíta convertendo índios do Brasil Os bispos das Américas discutiram essa questão ao final de outubro em Roma, onde elaboraram o relatório que agora foi divulgado pela imprensa. No relatório, eles apontam a “interferência estatal” como a responsável por minimizar a importância que teve a evangelização católica na formação da identidade das nações do continente. Eles afirmaram que há uma “estratégia” para considerar a Igreja Católica apenas pela sua “natureza espiritual”,  deixando de lado o aspecto histórico. O relatório, onde não há a nomeação de nenhum país, tratou também dos grupos de evangélicos pentecostais, que são um “desafio” por estarem se espalhando “através de um proselitism...

Veja 14 proibições das Testemunhas de Jeová a seus seguidores

Ministro do STF diz que crucifixo é cultura, e não religião

Peluso está ligado à corrente da teologia da libertação O ministro Antonio Cezar Peluso (foto), 70, presidente do STF (Supremo Tribunal Federal), defendeu a presença do crucifixo no espaço público porque, para ele, esse símbolo é uma expressão da formação da cultura brasileira, e não de uma religião. Peluso falou sobre esse assunto ao site Consultor Jurídico, em uma entrevista de despedida do STF. Com 45 anos de magistratura — 9 dos quais no Supremo —, Peluso vai se aposentar no segundo semestre. Na quinta-feira (19), ele entregará a condução da instituição ao ministro Carlos Ayres Britto. Em sua argumentação a favor da permanência do crucifixo no espaço público, incluindo nos tribunais, Peluso disse que Pilatos, para não ter de tomar uma posição, promoveu um julgamento democrático de Cristo, e “o povo foi usado como instrumento de uma ideologia para oprimir um homem inocente”. Nesse sentido, disse, o crucifixo é uma advertência aos juízes e à sociedade sobre as c...

Avança emenda que submete decisões do STF ao Congresso

Campos, líder da bancada evangélica, criticou o "ativismo judiciário" Com apoio da bancada evangélica, a CCJ (Comissão de Constituição e Justiça), da Câmara dos Deputados, aprovou ontem (25) por unanimidade a Proposta de Emenda Constitucional que permite ao Congresso Nacional sustar decisões do STF (Supremo Tribunal Federal).  De autoria do deputado Nazareno Fonteles (PT-PI), a PEC passou a ser prioritária aos deputados da militância evangélica e católica após a decisão do STF que permite o aborto de fetos anencéfalos. O deputado João Campos (foto), coordenador da bancada evangélica, disse que a PEC, se aprovada, vai acabar com o “ativismo judiciário”. "Precisamos pôr um fim nesse governo de juízes”, disse o deputado do PSDB-GO. “Isso já aconteceu na questão das algemas, da união estável de homossexuais, da fidelidade partidária, da definição dos números de vereadores e agora no aborto de anencéfalos." Evangélicos querem se impor como em países isl...

Colégio adventista ensina dilúvio em aula de história

Professor coloca criacionismo e evolução no mesmo nível No Colégio Adventista de Várzea Grande, na região metropolitana de Cuiabá (MT), o dilúvio é matéria de ensino não só nas aulas de religião, mas também nas de história, embora não haja qualquer indício científico de que tenha havido esse evento da natureza conforme está descrito na Bíblia. Para Toni, estudantes "confirmaram' a crença A foto do professor Toni Carlos Sanches  em uma sala de aula do 6º ano considerando na lousa a possibilidade de os fósseis terem se formado na época do dilúvio tem gerado acalorado debate no Facebook, a ponto de o colégio ter emitido uma nota tentando se justificar. O colégio informou que ministra aulas de criacionismo em conjunto com evolucionismo, admitindo, assim, que coloca os textos bíblicos no mesmo patamar de credibilidade da teoria do naturalista britânico Charles Darwin (1809-1882), autor do livro "A Origem das Espécies". A nota procura dar ideia de...

Russas podem pegar até 7 anos de prisão por protesto em catedral

Protesto das roqueiras Y ekaterina Samutsevich, Nadezhda  Tolokonnikova  e Maria Alyokhina durou apenas 1m52 por Juliana Sayuri para Estadão Um protesto de 1 minuto e 52 segundos no dia 21 de fevereiro [vídeo abaixo]. Por esse fato três roqueiras russas podem pagar até 7 anos de prisão. Isso porque o palco escolhido para a performance foi a Catedral de Cristo Salvador de Moscou. No altar, as garotas da banda Pussy Riot tocaram a prece punk Holy Shit , que intercala hinos religiosos com versos diabólicos como Virgin Mary, hash Putin away . Enquanto umas arranhavam nervosos riffs de guitarra, outras saltitavam, faziam o sinal da cruz e dançavam cancã como possuídas. As freiras ficaram escandalizadas. Os guardas, perdidos. Agora as rebeldes Yekaterina Samutsevich  (foto), Nadezhda Tolokonnikova (foto) e  Maria Alyokhina (foto) e  ocupam o banco dos réus no tribunal Khamovnichesky de Moscou, acusadas de vandalismo e ódio religioso. Na catedral, as...

Caridade das religiões não as absolve de suas atrocidades

de Cogita Tibi em resposta a Willian Papp  sobre Violência ‘em nome de Deus’ não é culpa da religião, diz papa Willian: "As religiões podem ser usadas para qualquer fim. Podem-se promover obras de caridades e massacres em nome de Deus." Religião católica é responsável pelo sofrimento de milhões de pessoas Isso é verdade, mas pode ser dito de tudo. E, nesse sentido, esse fato não exime as religiões, ou qualquer outra organização, de ser responsabilizada por seus atos daninhos ou prejudiciais. Reconhecer que uma organização religiosa pode ser direcionada para ajudar alguém, não a absolve, por exemplo, de ter protegido pedófilos para se proteger. Willian: "Uma faca é culpada de ter degolado alguém? Não seria aquele que usa a faca o verdadeiro culpado?" Não exatamente, a comparação tem alguns problemas. Por exemplo, um sapato e uma faca podem ser utilizados para machucar, mas qual dos dois objetos tem maior capacidade ofensiva e maior eficácia em causar...

Christopher Hitchens afirma que Jesus supera Deus em crueldade

'Jesus foi quem primeiro  falou do fogo eterno' Atualização: Hitchens morreu no dia 15 de dezembro de 2011 .  O Novo Testamento, o do Deus pai de Jesus, costuma ser citado por cristãos conscienciosos como uma espécie de upgrade,  com menos bugs,  do Velho Testamento, onde está o Deus mesquinho, cruel e insano. Para Christopher Hitchens (foto abaixo), contudo, o Novo Testamento é mais terrível que o Velho.

BC muda cédulas do real, mas mantém 'Deus seja Louvado'

Louvação fere o Estado laico determinado pela Constituição  O Banco Central alterou as cédulas de R$ 10 e R$ 20, “limpou” o visual e acrescentou elementos de segurança, mas manteve a expressão inconstitucional “Deus seja Louvado”.  As novas cédulas, que fazem parte da segunda família do real, começaram a entrar em circulação no dia 23. Desde 2011, o Ministério Público Federal em São Paulo está pedindo ao Banco Central a retirada da frase das cédulas, porque ela é inconstitucional. A laicidade determinada pela Constituição de 1988 impede que o Estado abone qualquer tipo de mensagem religiosa. No governo, quanto à responsabilidade pela manutenção da frase, há um empurra-empurra. O Banco Central afirma que a questão é da alçada do CMN (Conselho Monetário Nacional), e este, composto por um colegiado, não se manifesta. Em junho deste ano, o ministro Marco Aurélio, do STF (Supremo Tribunal Federal), disse que a referência a Deus no dinheiro é inconcebível em um Estado mode...