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Humanos teriam saído da África 500 mil anos antes do que se supõe

Para estudos de cientistas brasileiros, foi o Homo habilis que migrou pela primeira vez, e não o homo erectus


Herton Escobar
jornalista

Jornal da USP
para Jornal da USP

A já complicada e sempre polêmica história da evolução humana acaba de ganhar uma nova versão, escrita por cientistas brasileiros. 

A espécie que teria saído da África pela primeira vez teria sido o Homo habilis, e não o Homo erectus; e isso teria acontecido 500 mil anos antes do que se pensava — o que permitiria explicar diversos mistérios relacionados à história dos hominídeos no Cáucaso, na China e na Indonésia.

 A nova narrativa, apresentada no Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo (IEA-USP), é baseada em evidências arqueológicas desenterradas pelos pesquisadores no vale do rio Zarqa, na Jordânia, próximo à capital Amã. Eles descobriram centenas de ferramentas de pedra lascada com 1,9 milhão a 2,5 milhões de anos, claramente produzidas por mãos humanas.

Pedras lascadas encontradas
onde hoje é Jordânia registram
a existência do Homo habilis

O problema é que, segundo a teoria que predomina hoje sobre a evolução e dispersão do gênero homo (linhagem que deu origem aos seres humanos modernos), o primeiro hominídeo a deixar a África foi o Homo erectus, entre 2 milhões e 1,8 milhão de anos atrás. Então, quem teria produzido aquelas ferramentas no Oriente Médio, meio milhão de anos antes?

O trabalho não chega a cravar um nome no papel, mas o pesquisador Walter Neves tem opinião convicta sobre o assunto: “Foi o Homo habilis”, profere ele.

A datação dos artefatos jordanianos foi confirmada por três técnicas diferentes, e o Homo habilis era a única espécie de hominídeo (do gênero homo) que já vagava pela África naquela época, 2,5 milhões de anos atrás. Sendo assim, é o principal e único suspeito. O nome “homem habilidoso” refere-se justamente à sua associação pioneira com a produção de utensílios de pedra lascada.

“Acho que geramos a data precisa de saída dos hominídeos da África”, avalia Neves, professor aposentado do Instituto de Biociências da USP e pesquisador do IEA. O novo cronograma se encaixa perfeitamente — no tempo e no espaço — com o de outra descoberta recente, feita por outros estudiosos, que encontraram ferramentas líticas de 2,4 milhões de anos na Argélia, no norte da África, próximo à “porta de saída” para o Oriente Médio.

Segundo os pesquisadores, não há dúvidas sobre a idade dos artefatos da Jordânia nem sobre o fato de que eles foram produzidos por hominídeos (e não por processos naturais).

“Há evidências muito claras de lascamento intencional”, disse o arqueólogo Fabio Parenti, do Departamento de Antropologia da Universidade Federal do Paraná (UFPR), um dos líderes da pesquisa, que escava na região desde a década de 1990.

As peças são principalmente núcleos e lascas de pedra, características da chamada “indústria olduvaiensi”, que nossos ancestrais mais primitivos do gênero homo usavam para quebrar objetos e cortar as carcaças de animais dos quais se alimentavam.

“Não encontramos fósseis porque essa região da Jordânia não conserva bem fósseis, mas achamos as ferramentas desses hominídeos”, explica Neves. “Os resultados não poderiam ser mais convergentes.”

Réplicas de
crânios de
hominídeos

Especialista em evolução humana, e popularmente conhecido como “pai da Luzia” — por conta de seu trabalho com o fóssil mineiro que se tornou símbolo do povoamento das Américas —, Neves é um dos seis autores do trabalho que será publicado neste sábado, 6 de julho, na revista Quarternary Science Reviews.

Ele e Parenti assinam o estudo com o geólogo Giancarlo Scardia, da Universidade Estadual Paulista (Unesp – Rio Claro), e o geoarqueólogo Astolfo Araújo, do Museu de Arqueologia e Etnologia da USP, além de colaboradores nos Estados Unidos e na Alemanha, que contribuíram com parte das análises.

Neves acredita que as ferramentas foram produzidas por uma população de Homo habilis recém-saída da África, em rota para a região do Cáucaso, onde mais tarde o Homo habilis daria origem ao Homo erectus — uma espécie maior, mais inteligente e mais moderna de hominídeo, considerada por muitos como a precursora do homem moderno (Homo sapiens).

Os famosos fósseis de Dmanisi, na República da Geórgia, segundo Neves, seriam de uma forma transitória de hominídeo, com características tanto de Homo habilis quanto de Homo erectus; o que explicaria a grande variabilidade morfológica dos crânios encontrados ali, com 1,8 milhão de anos.

Essa diversidade já é discutida há anos pela comunidade científica internacional, levando alguns pesquisadores a propor que Homo erectus e Homo habilis não eram espécies diferentes, mas, na verdade, variações de uma mesma linhagem, com uma variabilidade anatômica equivalente à que existe, ainda hoje, entre os chimpanzés.

“Acho que nossa pesquisa vai encerrar de vez essa discussão”, disse Neves. A variabilidade dos crânios de Dmanisi, segundo ele, “é exatamente o que se esperaria de uma espécie transitória”.

Nesse caso, então, o Homo erectus teria evoluído primeiramente no Cáucaso, e só depois migrado para dentro da África, onde seus fósseis mais antigos datam, também, e só começam a aparecer por volta de 1,8 milhão de anos atrás.

Além da diversidade de Dmanisi, uma saída precoce do Homo habilis da África também ajudaria a explicar a descoberta recente de artefatos de pedra lascada em Shangchen, no leste da China, com 2,1 milhões de anos — ou seja, anteriores ao Homo erectus.

Neves acredita que elas, também, tenham sido produzidas pelo Homo habilis — o que significaria que o Homo habilis não só foi o primeiro a sair da África, como o primeiro a ocupar a Eurásia.

“O grande desbravador foi o habilis”, afirma Neves. O Homo habilis era bem menor do que o Homo erectus, tanto em estatura (1,20 m x 1,75 m) quanto em volume cerebral (650 cm3 x 850 cm3), mas já era bípede e perfeitamente capaz de caminhar longas distâncias, garante Neves.

Mais audacioso ainda, ele sugere que o Homo habilis — e não o Homo erectus — foi a espécie que deu origem ao Homo floresiensis, um hominídeo pigmeu que viveu até bem recentemente (20 mil anos atrás) na Ilha de Flores, na Indonésia. Apelidado de Hobbit, ele tinha pouco mais de 1 metro de altura e um cérebro equivalente em tamanho ao de um chimpanzé.

Pesquisadores debatem há anos, intensamente, se o Homo floresiensis era uma espécie portadora de microcefalia ou outra malformação genética, ou apenas uma versão reduzida de um Homo erectus — encolhida pelo chamado “efeito ilha”, um processo evolutivo que tende a reduzir o tamanho de espécies que vivem restritas a ambientes insulares.

Para Neves, a hipótese do Homo habilis faz mais sentido, porque se tratava de uma espécie já naturalmente menor. “Seria muito mais fácil para a evolução espremer um Homo habilis no formato de um floresiensis do que um Homo erectus”, diz.

Reconstruir a história da evolução humana é como tentar reescrever o roteiro de um filme baseado apenas em um trailer, ou narrar a história de um livro com base apenas em algumas folhas, sem saber exatamente quem são os personagens, de onde eles vêm, como eles se relacionam ou o que cada um faz.

As evidências são poucas e difíceis de serem encontradas, o que faz da paleoantropologia (o estudo da evolução humana com base em fósseis) um do campos mais competitivos, polêmicos e espetaculares da ciência.

Os pesquisadores não têm dúvida de que o trabalho e suas implicações para o estudo da evolução humana serão recebidos com “muito ceticismo” pela comunidade científica internacional.

“Vamos ser destroçados”, declarou Neves, com a tranquilidade de quem já está calejado nesse tipo de coisa. “Com certeza vamos encontrar ceticismo, mas faz parte da ciência”, disse Scardia, primeiro autor do trabalho e responsável pela datação do material.

“Temos muita confiança nos nossos resultados.”

O natural seria que uma descoberta desse porte fosse publicada numa revista de maior impacto, como Natureou Science. Só não foi, segundo Neves, porque os editores dessas revistas “não acreditam que possa haver vida inteligente abaixo do Equador”, pelo menos no que diz respeito à paleoantropologia — uma área na qual o Brasil não tem tradição de pesquisa internacional.

“Não queria me aposentar antes de botar o Brasil no mapa da paleoantropologia mundial”, desabafa o sempre polêmico e aguerrido Neves. “Engulam ou não, o Brasil está no mapa agora.”

A pesquisa foi financiada principalmente pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) e pela Wenner-Gren Foundation for Anthropological Research, de Nova York.






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