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5 contestações ao que Karnal afirma sobre religião e ateísmo

"Leandro é dos que crê
 que ciência e religião
sejam compatíveis.
Acredito que, dentro de
 um contexto intelectualmente
 honesto, não o sejam." 

por André Averbug

Uma amiga, leitora deste blog [O Meio e o Si], pediu minha opinião sobre as palestras do historiador Leandro Karnal, no YouTube. Segundo ela, dr. Leandro teria visão bastante equilibrada sobre o tema da religião, que abordo com frequência. Segui a sugestão e assisti a dois de seus vídeos: Confrontos Religiosos e Temor e Tremor.

Antes de qualquer coisa, faço questão de exaltar a qualidade das apresentações. Realmente, dr. Leandro possui erudição ímpar, além de ser um orador fantástico. Articula suas ideias de maneira impecável, com intermináveis referências históricas e filosóficas, além de possuir agradável senso de humor. Aprendi bastante com suas palestras e fiquei com vontade de ver mais.

Tendo dito isso tudo, dr. Leandro tem aos menos cinco posições das quais discordo:


1 - Nenhuma religião é inerentemente mais nociva que as outras

Dr. Leandro adota a postura muito comum e politicamente correta de nivelar todas as religiões. Por exemplo, diz coisas como “toda religião não é inerentemente nem pacífica nem violenta, depende da interpretação” ou “todo fundamentalismo é semelhante”. A meu ver, trata-se mais de um esforço em não ofender ninguém do que uma análise objetiva.

Não vamos tapar o sol com a peneira: algumas religiões são sim inerentemente mais violentas que outras. Não é possível compararmos, por exemplo, as três grandes religiões monoteístas com o budismo ou o jainismo indiano.

Os textos judaico, cristão e muçulmano estão repletos (embora não exclusivamente) de violência e intolerância, enquanto que os budistas e os jainistas são inequivocamente pacíficos e pregam a harmonia e a compaixão. Conforme exemplo clássico dado pelo o neurocientista Sam Harris, a última pessoa com a qual precisaríamos nos preocupar seria um “fundamentalista jainista”.

A interpretação literal de suas escrituras o faria passar a maior parte do tempo meditando, praticando compaixão, e tendo o cuidado para não maltratar uma formiga sequer.

Dr. Leandro vai adiante e diz que, assim como há fundamentalistas islâmicos, temos o caso de monges budistas que cometem violência, como se fossem problemas de natureza e escala comparáveis. Trata-se de uma comparação absurda. Além da “violência budista” ocorrer com muito menos frequência, a prática budista de forma alguma dá espaço para esse tipo de conduta. Muito pelo contrário.

Se algum budista comete ato de violência, não o está fazendo por ser budista, mas sim apesar de sê-lo. Está indo contra os ensinamentos. Por outro lado, fundamentalistas islâmicos – ou, no passado, inquisidores católicos – cometem atrocidades porque as escrituras sagradas oferecem justificativa para tal.



2 - Devemos contextualizar práticas consideradas opressivas

Dr. Leandro utiliza de “relativismo cultural” como justificativa para aceitarmos o tratamento das mulheres no mundo islâmico. Fiquei inclusive chocado com a romantização dessa questão, que considerei no mínimo naïve.

O professor diz, por exemplo, que o uso da burca causa estranheza entre nós, assim como o uso do Botox entre mulheres ocidentais deve causar estranheza no oriente. Sugere inclusive que a burca possa ser vista como vestimenta “sexy” naquele contexto e que devemos aceitar nossas diferenças culturais.

No entanto, ele ignora uma questão fundamental: as mulheres ocidentais têm a opção de não usar Botox caso não queiram! Como sabemos, isso nem sempre é verdade no caso da burca. E, na realidade, esta é apenas a ponta do iceberg.

Será que devemos aceitar também a mutilação genital feminina? Os casamentos forçados de meninas de dez ou doze anos de idade, muitas vezes com maridos abusivos? A semiescravidão vivida por tantas mulheres, que até para sair de casa precisam da companhia de um homem? A proibição que algumas mulheres sofrem ao direito de estudar? Dr. Leandro conhece o sofrimento e ativismo de mulheres como Malala Yousafzai e a somaliana Ayaan Hirsi Magan, que ele próprio cita em uma de suas palestras, e por isso fiquei surpreso com sua posição.

Como desenvolvo em outro post, em pleno século XXI, certos direitos humanos devem se tornar universais. Caso contrário, até grupos como o Estado Islâmico ou Boko Haram sempre encontrarão justificativa “cultural” para suas atrocidades. Embora concorde que haja uma linha tênue entre o respeito por práticas socioculturais e influências de valores externos, devemos, como sociedade global, discutir onde estabelecemos limites.


3 - Regimes ateus

Dr. Leandro afirma também que, na história, tantas atrocidades foram cometidas por “regimes ateus” quanto em nome da religião. Previsivelmente, citou os casos de Stalin na União Soviética e Mao na China. No entanto, existem duas falhas nesse argumento.

Primeiro, ateísmo não é doutrina, não é norteador, muito menos regime. Ateísmo, por definição, “não é”. A-teu, quer dizer “não-(negação a)-Deus”, não oferecendo nenhuma idéia de como ser. Não existe um manifesto ateu, uma bíblia ateia, um código de conduta. Ou seja, nada que Stalin ou Mao tenham feito foi em nome do ateísmo. Seus regimes foram principalmente movimentos políticos de conquista e manutenção de poder.

Segundo, ironicamente, Stalinismo e Maoísmo tinham todas as características de religiões. Assim como hoje na Coreia do Norte, foram regimes apoiados em dogma e doutrina, onde a figura do ditador é literalmente a de um deus.

Na Coreia do Norte, por exemplo, espalham-se estórias como a de que o Líder não urina ou defeca, que é imortal, ou seja, assume uma figura sobre-humana, típica de idolatria, de culto. Esses regimes se denominam ateus justamente porque querem o monopólio da idolatria; não querem competir com outros deuses.

Idealmente, um regime ateu nada mais seria que um estado laico, onde religião simplesmente não fizesse parte da discussão. Cada um teria a liberdade de crer ou não crer no que quisesse, sem que isso influenciasse política ou governo.


4 - Religiosidade, educação, desenvolvimento

Dr. Leandro fez duas colocações relacionadas que me surpreenderam. Primeiro, que não existe correlação entre nível de educação e religiosidade. Segundo, que não há evidência que o mundo hoje seja menos religioso que há 200 anos.

Existem inúmeros estudos mostrando correlação negativa entre nível de escolaridade e religiosidade, principalmente no Ocidente. Por exemplo, a proporção de ateus e agnósticos é tipicamente maior entre mestres e doutores comparado com bacharéis, a distância é maior ainda entre bacharéis e pessoas com formação primária, e assim por diante.

Basta ver a lista dos países mais seculares e dos mais religiosos para a relação desenvolvimento/educação e secularismo tornar-se evidente (fonte: Huffington Post/Gallup). Mais seculares: Japão, Holanda, Alemanha, Dinamarca, Suécia, Austrália, Inglaterra. Mais religiosos: Gana, Nigéria, Iraque, Romênia, Quênia, Macedônia, Brasil. Embora a causalidade possa ser discutida, a correlação é clara.

Quanto ao mundo de 200 anos atrás em relação ao de hoje, vale lembrar que estamos comparando uma era pré-Darwin com uma pós-Darwin. Antes da teoria da evolução das espécies por seleção natural, no final do século XIX, ninguém em sã consciência não era religioso. Eram muitas perguntas sem respostas. Mas Darwin foi um divisor de águas, e o mundo de hoje é sem sombra de dúvidas mais secular do que o mundo de dois séculos atrás.

Diversas pesquisas, inclusive uma recente do respeitadíssimo Pew Research (2015), mostram quantidade crescente de ateus e agnósticos ao longo das últimas décadas, principalmente nas sociedades ocidentais. Os millennials, jovens que cresceram com a internet e acesso irrestrito à informação, são a geração mais secular que já houve.


5 - Ciência e religião são compatíveis

Dr. Leandro é dos que crê que ciência e religião sejam compatíveis. Acredito que, dentro de um contexto intelectualmente honesto, não o sejam. A ciência, por definição, busca a verdade, os fatos, a prova de hipóteses através da evidência, do empirismo. Promove contestação, investigação, acolhe o erro. A religião, por sua vez, se baseia em dogma, em verdades absolutas e incontestáveis. É impossível conciliar, por exemplo, a história de Adão e Eva com a teoria da evolução das espécies. Qualquer tentativa de fazê-lo logo se revela apelativa e irracional.

Um argumento aceito por alguns é o de que a religião preenche os espaços deixados pela ciência. Mas essa relação é um vínculo artificial, desenvolvido pela exclusão, e em constante enfraquecimento de acordo com novas descobertas científicas e amadurecimento filosófico.

Embora provavelmente sempre tenhamos questões não respondidas pela ciência, uma postura verdadeiramente compatível seria a de admitir nossa ignorância quanto aos mistérios vigentes. Nos apegar ao sobrenatural e a estórias milenares infundadas não torna o vínculo entre religião e ciência compatível.

Naturalmente, os pontos acima são parte de uma discussão fértil e subjetiva, onde ninguém está necessariamente certo ou errado. Reafirmo minha admiração pelo dr. Leandro e estou aberto ao diálogo com ele e com os leitores.

André Averbug é autor do livro O Meio e o Si. Esse texto foi publicado originalmente no seu blog.




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Onde termina o extremismo religioso e começa a loucura?




Ateísmo é radical; agnosticismo é melhor, escreve Gleiser


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