Pular para o conteúdo principal

Homo sapiens tem a habilidade da linguagem há pelo menos 135 mil anos, mostra estudo

A ciência não sabe exatamente quando a linguagem humana surgiu, mas um estudo recente mostra que ela já era uma habilidade desenvolvida pelo Homo sapiens há pelo menos 135 mil anos. E propõe que tenha sido o gatilho para o surgimento disseminado de comportamentos humanos modernos, como a decoração corporal e o uso de padrões simbólicos.


José Tadeu Arantes 
jornalista 

Agência FAPESP
Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo

A pesquisa foi coordenada pelo linguista Shigeru Miyagawa, professor do Massachusetts Institute of Technology (MIT), e publicada na revista Frontiers in Psychology.

Miyagawa é também professor visitante do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (IB-USP), onde coordena um projeto apoiado pela FAPESP por meio do programa São Paulo Excellence Chair (SPEC).


Estudos genômicos indicam que a primeira divisão populacional da nossa espécie ocorreu por volta dessa data: 135 mil anos atrás. E Miyagawa e colaboradores argumentam que a universalidade da linguagem entre as populações humanas atuais implica que todas as linhagens que se originaram da primeira divisão de Homo sapiens já tinham plena capacidade linguística. 

Caso contrário, seria de se esperar que algumas populações modernas não tivessem linguagem, tal como a conhecemos, o que não ocorre. 

Esse argumento não diz exatamente quando a linguagem surgiu, mas indica com boa precisão o momento mais tardio em que ela já devia estar presente.

Com base nesse argumento, o artigo em pauta propõe que a linguagem possa ter sido o gatilho para o surgimento dos comportamentos humanos modernos, que se disseminaram por volta de 100 mil anos atrás.

Nesta entrevista exclusiva à Agência FAPESP, ele comenta os principais resultados de seu estudo e suas implicações para a compreensão da evolução da linguagem.



linguagem foi o
gatilho para outros
comportamentos
humanos modernos

Agência FAPESP — O artigo que o senhor acaba de publicar sustenta que a linguagem, tal como a conhecemos, já estava presente no Homo sapiens por volta de 135 mil anos atrás. Que evidências genéticas e arqueológicas lhe permitiram chegar a essa conclusão?

Shigeru Miyagawa – Comecei pelo fato de que todo grupo humano atual possui linguagem, todos os 8 bilhões de nós. Embora as línguas possam ser muito diferentes, no fundo todas elas emergem de um sistema uniforme. Isso significa que cada ramificação na história levou à linguagem. 

Se pudéssemos voltar e identificar a primeira divisão do Homo sapiens, poderíamos afirmar com razoável certeza que a capacidade linguística existia antes dessa divisão inicial. 

Com base em um grande número de estudos genéticos que apontam para essa primeira divisão, chegamos à conclusão de que ela ocorreu por volta de 135 mil anos atrás. Isso define, ao menos, a data mais tardia para o surgimento da linguagem humana. 

Ainda não sabemos realmente quando ela surgiu, mas acredito que esse é um primeiro passo muito importante.

Parece haver um intervalo de tempo entre o surgimento da capacidade linguística e o aparecimento dos comportamentos humanos modernos, como a decoração corporal e as inscrições simbólicas. Como o senhor interpreta esse hiato temporal e qual teria sido o papel da linguagem nessa transição?

No estudo da evolução humana, há duas caracterizações bem distintas da linguagem. Uma delas considera que a linguagem é apenas parte da variedade de comportamentos humanos modernos que surgiram ao longo da evolução, como pintura, decoração corporal, produção de ferramentas e armas sofisticadas. Outra corrente considera que a linguagem foi o gatilho para esses outros comportamentos humanos modernos. 
Nosso estudo sugere que essa segunda visão é a mais acertada. A linguagem já estava presente há pelo menos 135 mil anos e organizou nosso sistema cognitivo para permitir um pensamento abstrato de alto nível. Também permitiu que o Homo sapiens se comunicasse extensamente. Isso levou ao surgimento sistemático dos comportamentos humanos modernos que conhecemos, por volta de 100 mil anos atrás.

O senhor desenvolveu a “hipótese da integração” para a evolução da linguagem humana, que propõe a combinação de sistemas mais simples, como o canto dos pássaros e os gritos de alerta dos primatas. Como essa hipótese se relaciona com os achados apresentados no artigo recente?

A hipótese da integração trata de como a linguagem pode ter-se formado a partir de formas de comunicação já existentes, que observamos em pássaros, macacos e outros animais. O artigo recente não aborda propriamente a origem da linguagem, como faz a hipótese da integração. Nele, tentamos identificar com precisão quando a linguagem já estava presente na população inicial de Homo sapiens. Pelo que sabemos, esse é o primeiro estudo verdadeiramente empírico sobre a linguagem na evolução.

À luz do estudo, como esses achados influenciam nossa compreensão da diversidade linguística atual e da origem comum das línguas modernas?

Eles indicam que tivemos uma origem comum não apenas como espécie, mas também na forma de nos comunicar — ou seja, na linguagem. Conforme o Homo sapiens se espalhou, a linguagem também se espalhou. E, a cada divisão, surgia uma nova versão da linguagem, o que levou à diversidade atual.

Hoje existem cerca de 7 mil línguas, embora estimemos que, até o fim do século, esse número venha a ser reduzido pela metade, devido à perda de línguas. 

Olhando para o passado, estimamos que já tenham existido até 31 mil línguas, das quais a maioria foi perdida.

Embora o artigo se concentre em Homo sapiens, há algum indício ou evidência de alguma forma de linguagem — por mais rudimentar que seja — em outras espécies humanas extintas, como Homo neanderthalensis ou Homo heidelbergensis? Como o senhor avalia essas possibilidades à luz de achados recentes?

Nosso trabalho não afirma nada sobre o tipo de comunicação que espécies anteriores possam ter tido. Certamente elas se comunicavam, assim como os pássaros, os macacos, os sapos e outros animais. 

De fato, Alfred Russel Wallace, contemporâneo de Charles Darwin e coautor da teoria da seleção natural, dizia que não via problema algum que fosse resolvido pela linguagem e que não pudesse ser resolvido sem ela.

O que ele queria dizer é que o Homo sapiens antes da linguagem provavelmente já se comunicava bem, assim como os neandertais e outros ancestrais humanos. 

Não havia necessidade de linguagem, porém, mesmo assim, ela surgiu, embora tenha levado dezenas de milhares de gerações para se tornar o sistema complexo que conhecemos hoje.

Embora sua pesquisa examine principalmente a capacidade linguística humana, alguns estudos sugerem que certas espécies animais exibem sistemas de comunicação com propriedades semelhantes à linguagem. O senhor poderia comentar essas evidências e as possíveis implicações para a compreensão dos fundamentos biológicos da linguagem?

Precisamos observar com mais atenção o que outros animais são capazes de fazer. Temos estado muito focados nos humanos como os únicos detentores desse sistema complexo. É como se estivéssemos em uma era pré-copernicana do estudo da evolução, com os humanos no centro e os demais animais orbitando ao redor. 
Conforme aprendemos mais sobre o potencial de outros animais, como alguns macacos que eu mesmo estudei, começamos a ver que há partes da linguagem que são compartilhadas com outros animais. A linguagem humana simplesmente reuniu partes já existentes na natureza para criar o sistema extraordinário que temos hoje.

Quais são os próximos passos ou estudos futuros que o senhor considera necessários para aprofundar nossa compreensão da evolução da linguagem no Homo sapiens?

Como parte do projeto SPEC da FAPESP, estamos estudando uma variedade de animais — como macacos, pássaros e, mais recentemente, sapos — para investigar que sistemas eles possuem que podem ter contribuído para a linguagem humana.

> O artigo Linguistic capacity was present in the Homo sapiens population 135 thousand years ago pode ser acessado em: www.frontiersin.org/journals/psychology/articles/10.3389/fpsyg.2025.1503900/full.

Comentários

Post mais lidos nos últimos 7 dias

Canadenses vão à Justiça para que escola distribua livros ateus

Chouinard sugeriu  dois livros à escola,  que não aceitou René (foto) e Anne Chouinard recorreram ao Tribunal de Direitos Humanos do Estado de Ontário, no Canadá, para que a escola de seus três filhos permita a distribuição aos alunos de livros sobre o ateísmo, não só, portanto, a Bíblia. Eles sugeriram os livros “Livre Pensamento para Crianças” e “Perdendo a Fé na Fé: De Pregador a Ateu” (em livre tradução para o português), ambos de Dan Barker. Os pais recorreram à Justiça porque a escola consentiu que a entidade cristã Gideões Internacionais distribuísse exemplares da Bíblia aos estudantes. No mês passado, houve a primeira audiência. O Tribunal não tem prazo para anunciar a sua decisão, mas o recurso da família Chouinard desencadeou no Canadá uma discussão sobre a presença da religião nas escolas. O Canadá tem cerca de 34 milhões de habitantes. Do total da população, 77,1% são cristãos e 16,5% não têm religião. René e Anne são de Niágara, cidade p...

90 trechos da Bíblia que são exemplos de ódio e atrocidade

Bento 16 associa união homossexual ao ateísmo

Papa passou a falar em "antropologia de fundo ateu" O papa Bento 16 (na caricatura) voltou, neste sábado (19), a criticar a união entre pessoas do mesmo sexo, e, desta vez, associou-a ao ateísmo. Ele disse que a teoria do gênero é “uma antropologia de fundo ateu”. Por essa teoria, a identidade sexual é uma construção da educação e meio ambiente, não sendo, portanto, determinada por diferenças genéticas. A referência do papa ao ateísmo soa forçada, porque muitos descrentes costumam afirmar que eles apenas não acreditam em divindades, não se podendo a priori se inferir nada mais deles além disso. Durante um encontro com católicos de diversos países, Bento 16 disse que os “cristãos devem dizer ‘não’ à teoria do gênero, e ‘sim’ à aliança entre homens e mulheres no casamento”. Afirmou que a Igreja defende a “dignidade e beleza do casamento” e não aceita “certas filosofias, como a do gênero, uma vez que a reciprocidade entre homens e mulheres é uma expressão da bel...

Eleição de Haddad significará vitória contra religião, diz Chaui

Marilena Chaui criticou o apoio de Malafaia a Serra A seis dias das eleições do segundo turno, a filósofa e professora Marilena Chaui (foto), da USP, disse ontem (23) que a eleição em São Paulo do petista Fernando Haddad representará a vitória da “política contra a religião”. Na pesquisa mais recente do Datafolha sobre intenção de votos, divulgada no dia 19, Haddad estava com 49% contra 32% do tucano José Serra. Ao participar de um encontro de professores pró-Haddad, Chaui afirmou que o poder vem da política, e não da “escolha divina” de governantes. Ela criticou o apoio do pastor Silas Malafaia, da Assembleia de Deus do Rio, a Serra. Malafaia tem feito campanha para o tucano pelo fato de o Haddad, quando esteve no Ministério da Educação, foi o mentor do frustrado programa escolar de combate à homofobia, o chamado kit gay. Na campanha do primeiro turno, Haddad criticou a intromissão de pastores na política-partidária, mas agora ele tem procurado obter o apoio dos religi...

Existe uma relação óbvia entre ateísmo e instrução

de Rodrigo César Dias   (foto)   a propósito de Arcebispo afirma que ateísmo é fenômeno que ameaça a fé cristã Rodrigo César Dias Acho que a explicação para a decadência da fé é relativamente simples: os dois pilares da religião até hoje, a ignorância e a proteção do Estado, estão sendo paulatinamente solapados. Sem querer dizer que todos os religiosos são estúpidos, o que não é o caso, é possível afirmar que existe uma relação óbvia entre instrução e ateísmo. A quantidade de ateus dentro de uma universidade, especialmente naqueles departamentos que lidam mais de perto com a questão da existência de Deus, como física, biologia, filosofia etc., é muito maior do que entre a população em geral. Talvez não existam mais do que 5% de ateus na população total de um país, mas no departamento daqueles cursos você encontrará uma porcentagem muito maior do que isso. E, como esse mundo de hoje é caracterizado pelo acesso à informação, como há cada vez mais gente escolarizada e dipl...

Quem matou Lennon foi a Santa Trindade, afirma Feliciano

Deus castigou o Beatle por falar ser mais famoso que Jesus, diz o pastor Os internautas descobriram mais um vídeo [ver abaixo] com afirmações polêmicas do pastor-deputado Marco Feliciano (PSC-SP), na foto. Durante um culto em data não identificada, ele disse que os três tiros que mataram John Lennon em 1980 foram dados um pelo Pai, outro pelo Filho e o terceiro pelo Espírito Santo. Feliciano afirmou que esse foi o castigo divino pelo fato de o Lennon ter afirmado que os Beatles eram mais famosos que Jesus Cristo. “Ninguém afronta Deus e sobrevive para debochar”, disse. Em 1966, a declaração de Lennon causou revolta dos cristãos, o que levou o Beatle a pedir desculpas. Feliciano omitiu isso. Em outro vídeo, o pastor disse que a morte dos integrantes da banda Mamonas Assassinas em acidente aéreo foi por vontade divina por causa das letras chulas de suas músicas. "Ao invés de virar pra um lado, o manche tocou pra outro. Um anjo pôs o dedo no manche e Deus fulminou aque...

Papa afirma que casamento gay ameaça o futuro da humanidade

Bento 16 disse que as crianças precisam de "ambiente adequado" O papa Bento 16 (na caricatura) disse que o casamento homossexual ameaça “o futuro da humanidade” porque as crianças precisam viver em "ambientes" adequados”, que são a “família baseada no casamento de um homem com uma mulher". Trata-se da manifestação mais contundente de Bento 16 contra a união homossexual. Ela foi feita ontem (9) durante um pronunciamento de ano novo a diplomatas no Vaticano. "Essa não é uma simples convenção social", disse o papa. "[Porque] as políticas que afetam a família ameaçam a dignidade humana.” O deputado Jean Wyllys (PSOL-RJ) ficou indignado com a declaração de Bento 16, que é, segundo ele, suspeito de ser simpático ao nazismo. "Ameaça ao futuro da humanidade são o fascismo, as guerras religiosas, a pedofilia e o abusos sexuais praticados por membros da Igreja e acobertados por ele mesmo", disse. Tweet Com informação...

Pastor Caio diz que Edir Macedo tem 'tarugo do diabo no rabo'

Caio diz que Macedo usa o paganismo Edir Macedo está com medo de morrer porque sabe que terá de prestar contas de suas mentiras a Deus, disse o pastor Caio Fábio D'Araújo (foto), 56, da denominação Caminho da Graça. “Você [Edir] está com o tarugo do diabo no rabo”, afirmou, após acusar o fundador da Igreja Universal de ter se "ajoelhado" diante dos “príncipes deste mundo para receber esses poderes recordianos” (alusão à Rede Record). Em um vídeo de 4 minutos [segue abaixo uma parte]  de seu canal no Youtube, Caio Fábio, ao responder um e-mail de um fiel, disse que conhece muito bem o bispo Edir Macedo porque já foi pastor da Igreja Universal. Falou que hoje Macedo está cheio de dinheiro e que se comporta como um “Nerinho de Satanás” caminhando para morte e “enganando milhares de pessoas”. O pastor disse que, para Macedo, o brasileiro é pagão, motivo pelo qual o fundador da Igreja Universal “usa o paganismo” como recurso de doutrinação. “Só que Jesu...

Roger Abdelmassih agora é também acusado de erro médico

Mais uma ex-paciente do especialista em fertilização in vitro Roger Abdelmassih (foto), 65, acusa-o de abuso sexual. Desta vez, o MP (Ministério Público) do Estado de São Paulo abriu nova investigação porque a denúncia inclui um suposto erro médico. A estilista e escritora Vanúzia Leite Lopes disse à CBN que em 20 de agosto de 1993 teve de ser internada às pressas no hospital Albert Einstein, em São Paulo, com infecção no sistema reprodutivo. Uma semana antes Vanúzia tinha sido submetida a uma implantação de embrião na clínica de Abdelmassih, embora o médico tenha constatado na ocasião que ela estava com cisto ovariano com indício de infecção. Esse teria sido o erro dele. O implante não poderia ocorrer naquelas circunstâncias. A infecção agravou-se após o implante porque o médico teria abusado sexualmente em várias posições de Vanúzia, que estava com o organismo debilitado. Ela disse que percebeu o abuso ao acordar da sedação. Um dos advogados do médico nega ter havido violê...