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Comer carne: o que diziam os gregos e romanos sobre isso

O carnismo se justificava em parte por motivos metafísicos porque o consumo era o que os deuses desejavam para os humanos


Philippe Le Doze
professor em história antiga, Université Rennes 2, França

The Conversation
plataforma de informação e análise produzida por acadêmicos e jornalistas

No dia 24 de fevereiro foi inaugurada, como todos os anos, a Feira Agrícola, Porte de Versailles. Perante as crescentes críticas ao consumo de carne, os profissionais do setor são agora obrigados a justificar a sua atividade.

Essa defesa do carnismo não é na realidade nova: a Antiguidade greco-gomana mostra que essa dieta já não era evidente. Os argumentos dos vegetarianos suscitaram então reações instintivas e o desenvolvimento de um discurso legitimador. 

O consumo de carne era
uma demonstração de 
superioridade dos humanos
sobre os demais animais

FOTO: REDE SOCIAL

O fenômeno é tanto mais interessante quanto o consumo de carne não era regra entre gregos e romanos. Esses últimos viviam numa sociedade onde a dieta à base de carne não era a maioria (os cereais e os vegetais constituíam a dieta básica), mas as representações faziam dela um ideal, até mesmo uma necessidade espiritual.

Além disso, segundo o imperador Juliano, uma série de tratados foram compostos para responder às críticas à carne: “Alguns supõem que o consumo de carne está conforme a natureza humana, mas outros pensam que não é nada adequado que os humanos a utilizem: essa questão é objeto de muitas discussões; na verdade, se você quiser tentar, verá que há muitos livros sobre o problema”.

Apesar da perda desses trabalhos, diversas pistas permitem traçar as principais motivações dos consumidores de carne. E, curiosamente, o argumento higiênico não é preponderante, ainda que não esteja ausente (pelo menos desde Hipócrates) entre os médicos.

O carnismo deveu-se em parte a considerações metafísicas, uma vez que o consumo de carne associado ao domínio do fogo concedido aos humanos correspondia supostamente a uma ordem mundial desejada pelos deuses. 

Os deuses diferiam dos humanos por não comerem carne: durante os banquetes que se seguiam aos sacrifícios de animais, a fumaça da gordura queimada, dos ossos e das vísceras era suficiente para satisfazê-los e complementavam a dieta com outros alimentos compostos de néctar e ambrosia.

Nas cerimônias religiosas, a parte dos humanos, a carne cozida, era inferior à dos deuses: ao comerem matéria corruptível, eram devolvidos à sua própria mortalidade; ao mesmo tempo, afirmavam a sua superioridade sobre o resto do mundo animal, reduzido ao consumo de carne crua. 

A dádiva do fogo de Prometeu estabeleceu a ruptura entre o humano e o animal, com a ideia de que o cozido estabelece uma cesura ao mesmo tempo cultural e técnica: o cru pertence a um mundo simples, próximo da natureza, o cozido a um mundo complexo, que de know-how e refinamento. A dieta aqui reflete uma hierarquia de seres vivos.

Representações socioeconômicas

As considerações socioeconômicas tiveram, sem dúvida, precedência sobre a metafísica. Tal como acontece ainda hoje, o gado era uma unidade de riqueza.

Algum dinheiro foi usado como meio de pagamento no comércio antes da adoção da moeda. Muitas vezes era também o gado que aparecia nos lingotes utilizados como primeiras moedas, como se fosse a melhor forma de expressar o valor das coisas.

Moeda de bronze
de cerca de
280-250 a.C.


A etimologia preserva a memória: o próprio nome do dinheiro, pecunia, deriva de pecus, “gado”, forma de significar que a criação foi durante muito tempo a forma preferida de enriquecer. 

Como a riqueza repousava então na posse de rebanhos e propriedades fundiárias, os ricos eram chamados de pecuniosi, isto é, ricos em gado, e locupletes, ricos em terras. 

Além disso, como a posse de numerosos animais permitia distinguir os ricos dos pobres, consumir carne equivalia a consumir riqueza. Daí um status especial concedido à carne animal nos alimentos.

O peso do hábito

A imaginação socioeconômica e metafísica foi ainda reforçada pela força do hábito: o carácter imemorial do carnismo prevaleceu sobre todas as outras considerações, funcionando como uma norma capaz de repelir qualquer questionamento. 

O ambiente de vida dos Antigos ajudou a reduzir o drama do consumo de carne. Em Roma, caçadores, caçadores, pescadores, criadores de porcos, açougueiros faziam parte do cotidiano dos habitantes. A carne consumida após sacrifícios públicos durante banquetes ou vendida a açougueiros também ajudou a legitimar o seu consumo. 


A participação dos animais nos jogos romanos também reforçou o sentimento de superioridade dos humanos e, portanto, o seu direito de dispor deles: uma relação com os animais baseada na violência foi, assim, normalizada e institucionalizada.

Os animais mortos destinados ao consumo eram, aliás, nas casas ricas, objeto de decoração: assim estas naturezas-mortas pompeianas ou estes mosaicos de ricas residências africanas representando fileiras de tordos, também muito populares nas mesas romanas.

Esse enquadramento condicionou um habitus e um fato óbvio: a legitimidade de matar animais para os comer. Talvez isto fosse justo: a ferocidade e a proliferação de outras espécies representavam uma ameaça aos humanos e às culturas. 

A partir de então, mascarar e disfarçar a morte não foi uma necessidade: ao contrário do que observamos hoje, o abate de animais não foi invisibilizado: os açougueiros trabalhavam à vista de todos; cenas em sarcófagos romanos representam uma prática bastante comum em banquetes: cabeças de porcos ou javalis servidas em um prato aos convidados; numa cena do Satiricon de Petronius, porcos destinados ao consumo são apresentados vivos, decorados com sinos, a convidados entusiasmados para serem selecionados.

O status da carne entre os cristãos

A cristianização do Império Romano não pôs em causa a abordagem dos politeístas que viam no carnismo uma forma de piedade, uma vez que respeitava uma ordem do mundo desejada pelos deuses.

Embora, em Gênesis, Adão e Eva sejam vegetarianos, como toda a criação, a queda teve como consequência a entrega de animais aos humanos. A zoofagia é legitimada por um mandamento divino e a preocupação dos Padres da Igreja e dos teólogos em privar os animais da razão tinha como objetivo, em parte, estabelecer a dieta cárnea. 

Nos evangelhos, Jesus diz: “Não é o que entra na boca que torna o homem impuro.”

Encontrou um aliado em Paulo de Tarso, também conhecido como São Paulo, para quem nenhum alimento deveria ser proibido, pois tudo o que Deus cria é bom.

O monge joviniano chegou ao ponto de considerar o vegetarianismo uma ofensa a Deus: podemos compreender a utilidade da carne bovina e do cavalo num mundo vegetariano, mas para que serviria a carne de porco se não a comêssemos?

Se havia desconfiança em relação à carne, não era devido à comida em si, mas porque ela teria despertado prazer e levado à gula. Foi necessário, portanto, desconfiar do mundo carnal, sem questionar o providencialismo divino. 

A partir de então, foi adotado um caminho intermédio: o ascetismo, consagrado em certas regras monásticas (a mortificação do corpo por um estilo de vida frugal e austero promove supostamente a união mística com Deus); a presença de muitos “dias magros” para os leigos no calendário cristão.

> Esse artigo foi publicado originalmente em francês. 


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