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Constituição veta uso de religião em eleições, mas a prática é outra

O voto é uma expressão da cidadania, não de valores religiosos

RICARDO OLIVEIRA DA SILVA
Doutor em história pela UFRGS

A campanha eleitoral que marcará a vida da sociedade brasileira nas próximas semanas sinaliza, em seus momentos iniciais, o uso de uma linguagem religiosa que define a disputa como uma luta do “bem contra o mal” onde quem se situa no lado do “bem” evoca constantemente o nome de Deus na defesa do que chama “valores da civilização cristã”.

O uso de conceitos religiosos como forma de dar sentido aos conflitos políticos possui uma longa tradição na história do Brasil. Na época colonial o que era entendido como América Portuguesa fazia parte de uma ordem política onde o governante (Rei) era visto como um representante de Deus na Terra. Era a chamada doutrina do direito divino dos reis.

O entendimento da separação da esfera religiosa da esfera política, cristalizada na ideia de um Estado laico (ausência de religião oficial de Estado, liberdade de culto, tratamento jurídico igualitário para todas as crenças religiosas, condenação legal a perseguição religiosa) ganhou força na Europa com os ventos liberais e iluministas do século XVIII.

No Brasil a constituição de um Estado com base em princípios laicos ocorreu apenas no final do século XIX com o advento da República. Apesar disso, o uso de uma linguagem religiosa como código interpretativo e fonte de respostas para os conflitos políticos não desapareceu. O que não chega a surpreender levando em consideração a influência das crenças religiosas, particularmente o cristianismo, na vida da população brasileira.

No contexto da Nova República, iniciada em 1985, se verificou, de um lado, a progressiva inserção de grupos evangélicos na arena política, espaço até então considerado por eles como o “mundo do profano e do Diabo”, mas que em nova leitura passou a ser visto como fundamental para garantir direitos e expandir a influência da religião na sociedade. Uma consequência disso hoje são as “bancadas evangélicas” nos legislativos.

Em Estado laico, religião
não deveria se misturar
à política 

De outro lado, nas disputas presidenciais, talvez com exceção de Fernando Collor nas eleições de 1989, a instrumentalização de uma linguagem religiosa para fins políticos não parecia central. Contudo, a partir de 2010, isso foi ganhando mais espaço quando o candidato José Serra trouxe o tema do aborto para a arena central do debate político por meio de uma retórica moralista e religiosa. O ápice, até o momento, do uso de referenciais religiosos nas eleições presidenciais ocorreu em 2018, com o candidato Jair Messias Bolsonaro.

A Constituição de 1988 contém, em seu texto, os preceitos da laicidade como orientadores da relação do Estado com a sociedade. A partir disso, a religião, independente da crença individual dos candidatos, teoricamente não deveria ser determinante para a atuação político. Mas na prática é o que acontece. E o que se vê é uma segmentação onde determinadas formas de expressar uma religiosidade, capitalizadas por igrejas e lideranças religiosas, são privilegiadas em detrimento de outros grupos.

Na modesta opinião desse colunista, as eleições de 2022, não apenas no âmbito presidencial, deve ser o momento para o exercício da prática da cidadania em preceitos laicos e seculares, uma vez que as políticas públicas propostas e executadas pelos governantes deve visar o bem comum da coletividade, independentemente da crença religiosa de cada um.


Câmara de São Carlos têm de respeitar Estado laico, apura consulta




Comentários

Concordo 100%! O Estado brasileiro é laico e assim que devem ser as políticas públicas, eleições, etc. Respeito a todas as religiões, sem privilégios a qualquer grupo. Isso se expande a todos os grupos, gênero, cor, credo, etc.

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