Pular para o conteúdo principal

Brasil nem sequer sabe quanto desperdiça com terapias sem comprovação científica

Prefeituras não sabem quanto
 gastam com terapias não comprovadas
pela ciência médica

por Natalia Pasternak e Carlos Orsi
para Jornal da USP

Inglaterra baniu a homeopatia de seu sistema público de saúde, o NHS, num processo gradual que culminou, em 2018, com o descredenciamento do tradicional hospital homeopático de Londres. A França — terra da Boiron, maior fabricante de preparados homeopáticos do mundo —, após extensa revisão da literatura científica, decidiu encerrar a política de reembolso de gastos com medicamentos homeopáticos pelo erário.

O exemplo francês estimulou os médicos da Alemanha a sugerir uma medida semelhante, e a Espanha vem pressionando a União Europeia a deixar de classificar preparados homeopáticos como “medicamentos”. 

Nos Estados Unidos, a Comissão Federal de Comércio, um órgão governamental de defesa do consumidor, publicou alerta sobre a ineficácia da prática e, hoje, exige que os preparados homeopáticos digam, no rótulo, que não têm base científica, pois do contrário estariam violando as leis contra publicidade enganosa.

É muito comum, na imaginação popular, a ideia de que homeopatia envolve produtos que são naturais e “fazem menos mal que os medicamentos químicos”. 

Pesquisa de opinião pública conduzida nos Estados Unidos mostra que, quando os verdadeiros princípios por trás da prática são apresentados de forma clara, o consumidor/paciente se sente fraudado.

E que princípios são esses? Dois bastam para colocar a homeopatia em oposição direta ao conhecimento científico: o da cura pelos semelhantes e o da potencialização do medicamento.

A cura pelos semelhantes afirma que uma substância que produz, numa pessoa saudável, os sintomas de que o paciente se queixa, deve ser capaz de curá-lo. Potencialização do medicamento assevera que o poder curativo de uma substância é tanto mais ampliado (potencializado) quanto mais diluída a substância estiver.

“Cura pelos semelhantes” não é um princípio com validade geral em medicina. Sua adoção irrestrita no meio homeopático — ele está consagrado no próprio nome da doutrina (“homeopatia” significa, literalmente, “semelhante à doença”) — reflete uma experiência pessoal do fundador da prática, no século XVIII, mas que jamais foi reproduzida em experimentos controlados posteriores.

Mais problemático é o princípio da potencialização, que contradiz leis fundamentais da física, da química e da farmacologia. Diluições homeopáticas tipicamente são tão intensas que nem uma única molécula do suposto princípio ativo resta na solução final.

Não existe nenhum procedimento analítico conhecido pela ciência capaz de distinguir um preparado homeopático de água limpa: em outras palavras, “medicamentos” homeopáticos não passam, efetivamente, de água limpa, consumida pelos pacientes pura, misturada a álcool ou aspergida sobre bolinhas de açúcar.



Gasto do SUS

Variações da explanação acima aplicam-se à esmagadora maioria das demais Práticas Integrativas e Complementares (PICs) que, com a homeopatia, são oferecidas no Sistema Único de Saúde (SUS). 

Com exceção dos fitoterápicos, cujos princípios ativos requerem análise caso a caso, da meditação — que parece ter algum valor — e das que envolvem atividade física, as demais dependem de princípios que a ciência já demonstrou serem tão absurdos quanto o das diluições infinitesimais, como campos mágicos de energia vital, campos quânticos de consciência ou reencarnação.

Mais importante, testes de eficácia, realizados segundo os métodos desenvolvidos nos últimos 200 anos para evitar que médicos e pacientes sejam iludidos por falsas curas, mostram que essas práticas não têm efeito superior ao de um placebo.

Existem inúmeros estudos sobre as mais diversas PICs, alguns até com resultados positivos, mas a tendência geral da literatura científica é inconteste: quanto melhor a qualidade da pesquisa, quanto mais sólidos os controles contra fraude ou engano, mais difícil é distinguir uma PIC de um mero placebo.

Dado esse fato, qualquer centavo do erário empenhado numa PIC representa violação do princípio constitucional da eficácia do gasto público. Há, no entanto, quem argumente que um gasto pequeno em placebos pode ser útil, por ajudar a manter o equilíbrio emocional dos pacientes e prevenir doenças psicossomáticas. Sem entrar no mérito ético da proposta, ou em sua viabilidade real, vale a pena tentar determinar se esse gasto é realmente tão “pequeno”.

A linguagem criada em torno das PICs é vaga e imprecisa. PICs não são recomendadas para nenhuma doença em particular: seus proponentes falam em “sofrimentos difusos”, “queixas tanto emocionais quanto físicas, em que não se consegue delinear um diagnóstico”. 

Quando o assunto são as verbas públicas consumidas por tais práticas, a imprecisão se converte em opacidade: não existe transparência quando o assunto são PICs. Quem diz que elas são custo-efetivas, porque reduzem os gastos com intervenções mais complexas, está repetindo um artigo de fé, não apresentando uma conclusão racional. O dado não existe.

O Instituto Questão de Ciência, valendo-se da Lei de Acesso à Informação, tentou aferir exatamente quanto se gasta com as PICs nas capitais brasileiras. Encaminhamos ofícios a todas as capitais, e o resultado foi trágico para qualquer um que se importe com a transparência e a racionalidade do gasto público. A grande maioria das prefeituras simplesmente não sabe quanto gasta com essas práticas.

Uma capital — apenas — dispunha de dados detalhados, e vamos apresentá-la como exemplo. Vitória (ES) oferece as seguintes práticas integrativas: fitoterapia, homeopatia, acupuntura, musicoterapia, auricoloterapia, yoga e xian gong.

O valor mínimo total gasto, por ano, para manter estas práticas é de R$ 1.540.522,00. Vitória tem 362 mil habitantes. Assim, podemos dizer que Vitória gasta R$ 4,20 em PICs, por pessoa, por ano. Parece pouco. Mas uma única dose de vacina de febre amarela custa R$ 3,50 ao erário. Isso quer dizer que com o dinheiro gasto com PICs em Vitória, poderíamos vacinar quase meio milhão de brasileiros.

A falta de transparência e objetividade no trato com as PICs não se limita aos municípios. Página temática do site do Ministério da Saúde sobre essas práticas no SUS diz que elas estão presentes em 3.024 municípios. Já o ObservaPICs, da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), diz que são 4.365 as cidades “atendidas”.

De acordo com boletim publicado pelo ObservaPICs, o município de Betim (MG), com menos de 500 mil habitantes, gasta cerca de R$ 1 milhão, ao ano, num programa de produção de fitoterápicos e remédios homeopáticos.

O site do ObservaPICs traz artigo que estima que o gasto federal com PICs é da ordem de R$ 2,6 milhões: a autora do trabalho considera o valor desprezível. Mas se essa estimativa do gasto federal estiver correta, e diante dos números de apenas duas cidades com menos de um milhão de habitantes cada, fica claro que o verdadeiro gasto público com placebos se concentra nos municípios — dos quais pouco, ou nada, se sabe.
A campanha 1023

O Instituto Questão de Ciência lançou, no fim de novembro, a campanha 1023, para conscientizar a população e os órgãos de regulamentação sobre a ineficácia e os gastos desnecessários com homeopatia. O nome 1023 refere-se ao número de Avogadro, constante química que indica a diluição máxima que ainda contém ao menos uma molécula da solução original.

Trata-se, na verdade, de uma estimativa generosa, já que pressupõe que o processo de diluição teve início com um mol de soluto. A homeopatia trabalha, tipicamente, com diluições muito maiores, e partindo de quantidades muito menores de princípio ativo.

A homeopatia é ensinada na Universidade de São Paulo, nas escolas de Medicina, Ciências Farmacêuticas e Medicina Veterinária. 

Há quem defenda tal presença nos currículos — como “ciência” viva, não curiosidade histórica — em nome do interesse dos estudantes e da pluralidade de ideias. Se o argumento é realmente sério, e não apenas cínico e ocioso, e dado o recente ressurgimento do interesse dos jovens por astrologia, seria talvez então o caso de ensinar também a doutrina clássica de Galeno sobre os Dias Críticos da doença, regidos, como se sabe, pelas fases da Lua.

Na prova de química da Fuvest deste ano, havia uma questão que trazia o termo “medicamentos homeopáticos”, entre aspas, e pedia que o candidato calculasse a partir de quantas diluições não sobraria uma única molécula da solução original em um preparado desses. A resposta correta depende, claro, do número de Avogadro.

Então, temos um paradoxo: para entrar nesta Universidade o estudante tem de ser capaz de demonstrar que a homeopatia é ilusão, apenas para, anos mais tarde, encontrar uma disciplina inteira dedicada a convencê-lo de que a resposta certa que deu estava errada.

Natalia Pasternak é pesquisadora colaboradora do ICB-USP e presidente do Instituto Questão de Ciência, e Carlos Orsi, jornalista e editor chefe da revista “Questão de Ciência”.



Estudo comprova que poder de cura da homeopatia é nulo

Grã-Bretanha bane homeopatia do serviço público de saúde

Nos EUA, CFI processa Walmart por expor homeopatia perto de remédios verdadeiros

Faculdade de medicina da França acaba com curso de homeopatia




Comentários

Post mais lidos nos últimos 7 dias

90 trechos da Bíblia que são exemplos de ódio e atrocidade

Ateu usa coador de macarrão como chapéu 'religioso' em foto oficial

Fundamentalismo de Feliciano é ‘opinião pessoal’, diz jornalista

Sheherazade não disse quais seriam as 'opiniões não pessoais' do deputado Rachel Sheherazade (foto), apresentadora do telejornal SBT Brasil, destacou na quarta-feira (20) que as afirmações de Marco Feliciano tidas como homofóbicas e racistas são apenas “opiniões pessoais”, o que pareceu ser, da parte da jornalista,  uma tentativa de atenuar o fundamentalismo cristão do pastor e deputado. Ficou subentendido, no comentário, que Feliciano tem também “opiniões não pessoais”, e seriam essas, e não aquelas, que valem quando o deputado preside a Comissão de Direitos Humanos e Minorias, da Câmara. Se assim for, Sheherazade deveria ter citado algumas das opiniões “não pessoais” do pastor-deputado, porque ninguém as conhece e seria interessante saber o que esse “outro” Feliciano pensa, por exemplo, do casamento gay. Em referência às críticas que Feliciano vem recebendo, ela disse que “não se pode confundir o pastor com o parlamentar”. A jornalista deveria mandar esse recado...

PMs de Cristo combatem violência com oração e jejum

Violência se agrava em SP, e os PMs evangélicos oram Houve um recrudescimento da violência na Grande São Paulo. Os homicídios cresceram e em menos de 24 horas, de anteontem para ontem, ocorreram pelo menos 20 assassinatos (incluindo o de policiais), o triplo da média diária de seis mortes por violência. Um grupo de PMs acredita que pode ajudar a combater a violência pedindo a intercessão divina. A Associação dos Policiais Militares Evangélicos do Estado de São Paulo, que é mais conhecida como PMs de Cristo, iniciou no dia 25 de outubro uma campanha de “52 dias de oração e jejum pela polícia e pela paz na cidade”, conforme diz o site da entidade. “Essa é a nossa nobre e divina missão. Vamos avante!” Um representante do comando da corporação participou do lançamento da campanha. Com o objetivo de dar assistência espiritual aos policiais, a associação PMs de Cristo foi fundada em 1992 sob a inspiração de Neemias, o personagem bíblico que teria sido o responsável por uma mobili...

Wyllys vai processar Feliciano por difamação em vídeo

Wyllys afirmou que pastor faz 'campanha nojenta' contra ele O deputado Jean Wyllys (PSOL-RJ), na foto, vai dar entrada na Justiça a uma representação criminal contra o pastor e deputado Marco Feliciano (PSC-SP) por causa de um vídeo com ataques aos defensores dos homossexuais.  O vídeo “Marco Feliciano Renuncia” de oito minutos (ver abaixo) foi postado na segunda-feira (18) por um assessor de Feliciano e rapidamente se espalhou pela rede social por dar a entender que o deputado tinha saído da presidência da Comissão dos Direitos Humanos e Minorias, da Câmara. Mas a “renúncia” do pastor, no caso, diz o vídeo em referência aos protestos contra o deputado, é à “privacidade” e às “noites de paz e sono tranquilo”, para cuidar dos direitos humanos. O vídeo termina com o pastor com cara de choro, colocando-se como vítima. Feliciano admitiu que o responsável pelo vídeo é um assessor seu, mas acrescentou que desconhecia o conteúdo. Wyllys afirmou que o vídeo faz parte de uma...

Embrião tem alma, dizem antiabortistas. Mas existe alma?

por Hélio Schwartsman para Folha  Se a alma existe, ela se instala  logo após a fecundação? Depois do festival de hipocrisia que foi a última campanha presidencial, com os principais candidatos se esforçando para posar de coroinhas, é quase um bálsamo ver uma autoridade pública assumindo claramente posição pró-aborto, como o fez a nova ministra das Mulheres, Eleonora Menicucci. E, como ela própria defende que a questão seja debatida, dou hoje minha modesta contribuição. O argumento central dos antiabortistas é o de que a vida tem início na concepção e deve desde então ser protegida. Para essa posição tornar-se coerente, é necessário introduzir um dogma de fé: o homem é composto de corpo e alma. E a Igreja Católica inclina-se a afirmar que esta é instilada no novo ser no momento da concepção. Sem isso, a vida humana não seria diferente da de um animal e o instante da fusão dos gametas não teria nada de especial. O problema é que ninguém jamais demonstrou que ...

Defensores do Estado laico são ‘intolerantes’, diz apresentadora

Evangélico quebrou centro espírita para desafiar o diabo

"Peguei aquelas imagens e comei a quebrar" O evangélico Afonso Henrique Alves , 25, da Igreja Geração Jesus Cristo, postou vídeo [ver abaixo] no Youtube no qual diz que depredou um centro espírita em junho do ano passado para desafiar o diabo. “Eu peguei todas aquelas imagens e comecei a quebrar...” [foto acima] Na sexta (19), ele foi preso por intolerância religiosa e por apologia do ódio. “Ele é um criminoso que usa a internet para obter discípulos”, disse a delegada Helen Sardenberg, depois de prendê-lo ao término de um culto no Morro do Pinto, na Zona Portuária do Rio. Também foi preso o pastor Tupirani da Hora Lores, 43. Foi a primeira prisão no país por causa de intolerância religiosa, segundo a delegada. Como 'discípulo da verdade', Alves afirma no vídeo coisas como: centro espírito é lugar de invocação do diabo, todo pai de santo é homossexual, a imprensa e a polícia estão a serviço do demônio, na Rede Globo existe um monte de macumbeiros, etc. A...

Físico afirma que cientistas só podem pensar na existência de Deus como hipótese

Apoio de âncora a Feliciano constrange jornalistas do SBT

Opiniões da jornalista são rejeitadas pelos seus colegas O apoio velado que a âncora Rachel Sheherazade (foto) manifestou ao pastor-deputado Marco Feliciano (PSC-SP)  deixou jornalistas e funcionários do "SBT Brasil" constrangidos. O clima na redação do telejornal é de “indignação”, segundo a Folha de S.Paulo. Na semana passada, Sheherazade minimizou a importância das afirmações tidas como homofóbicas e racistas de Feliciano, embora ele seja o presidente da Comissão de Direitos Humanos da Câmara, dizendo tratar-se apenas de “opinião pessoal”. A Folha informou que os funcionários do telejornal estariam elaborando um abaixo assinado intitulado “Rachel não nos representa” para ser encaminhado à direção da emissora. Marcelo Parada, diretor de jornalismo do SBT, afirmou não saber nada sobre o abaixo assinado e acrescentou que os âncoras têm liberdade para manifestar sua opinião. Apesar da rejeição de seus colegas, Sheherazade se sente segura no cargo porque ela cont...