Pular para o conteúdo principal

O que pode ocorrer com ateus em um país em que 'Deus está acima de tudo'?

por Daniel Gama e Colombo
para El País Brasil

Aqueles que abandonaram ou não seguem crenças e tradições religiosas sabem que o período eleitoral é usualmente um tempo de desânimo e desconfiança com instituições e figuras públicas. Abundam citações pouco republicanas a ‘deus’, e a quase totalidade dos candidatos afirma representar e aderir a ‘valores cristãos’, deixando claro que aqueles que não seguem essa cartilha pouco ou nada importam. Ainda assim, as eleições atuais conseguem surpreender mesmo alguém já acostumado com as atrocidades verbais de nossos pastores de votos.

Há elementos suficientes para suspeitar que estamos vivenciando uma escalada de intolerância religiosa que ameaça não apenas nossas vidas, mas também o tecido social e o princípio de pluralismo religioso que conquistamos nas últimas décadas.

Não é novidade ou surpresa que líderes e instituições religiosas influenciem eleições e decisões na esfera governamental.

Diferentes estudos provam que a religiosidade afeta o voto mesmo em democracias mais consolidadas, como na Europa e nos Estados Unidos. Seria ingênuo esperar que, no Brasil, país com a maior população católica do mundo, os candidatos não apelassem à religião para atrair eleitores. 

Fernando Henrique Cardoso cometeu esse erro em 1985, quando se recusou a responder se acreditava em deus, e perdeu a eleição para Jânio Quadros. 

A inauguração do Templo de Salomão em 2014 foi um espetáculo que reuniu a cúpula do PT e do PSDB, incluindo a ex-presidente Dilma Rousseff, que passou boa parte de sua vida “meio descrente, muito descrente”. 

Governo que coloca
 Deus acima de tudo
 não tem apreço por
 que não crê
em divindades

Para se ter uma ideia da baixa pluralidade religiosa na política brasileira, nota-se que cerca de 70% dos deputados federais eleitos em 2014 declaravam-se católicos, e mais de 90% diziam-se cristãos. A famosa ‘bancada da bíblia’ atualmente conta com ao menos 84 deputados.

Mas mesmo considerando esse panorama pouco animador, as eleições deste ano constituem uma guinada desastrosa na relação entre religião e política. 

O slogan do candidato favorito nas pesquisas - “Deus acima de tudo” - não deixa dúvidas: seu governo e suas propostas são direcionadas para os eleitores que professam o cristianismo. E antes que se diga que se trata apenas de manifestação legítima de sua fé, cabe lembrar que, no ano passado, o candidato declarou em alto e bom som que “não tem essa historinha de estado laico não, é estado cristão. E quem não concorda que se mude”. Se isso não constitui um claro chamado à perseguição religiosa, não sei mais o que poderia ser. 

Tendo recebido formação religiosa na infância, não passa pela minha cabeça como é possível compatibilizar esse discurso com os tais ‘valores cristãos’ que a população brasileira tanto estima.

Em boa medida, esse discurso constitui uma retórica raivosa e vazia típica de líderes autoritários, que tenciona fortalecer a fidelidade de seus seguidores ao inflamá-los contra um suposto ‘inimigo’. Mas, ao mesmo tempo, essa fala forma o caldo político e cultural que legitima propostas que minam nossa frágil e restrita liberdade religiosa e laicidade do Estado, como a referência do assessor Aléssio Souto ao criacionismo e a proposta de ensino religioso em creches.

A fim de compreender a seriedade da situação, a ascensão desse projeto político precisa ser contextualizada em um quadro social mais amplo. Estamos vivendo um momento de crescimento da violência e ataques a minorias religiosas no país e no mundo. 

O ‘Índice de Hostilidade Social’ do Brasil (que mede o grau de violência e intimidações na sociedade motivadas por religião, em uma escala de 0 a 10) vem aumentando sistematicamente, passando de 0,8 em 2007 para 3,5 em 2016. O canal de denúncias de direitos humanos do governo federal (Disque 100) registrou cerca de 750 denúncias de violações à liberdade religiosa em 2016, um crescimento de cerca de 37% em relação ao ano anterior.

De acordo com o IBGE, havia no Brasil em 2010 cerca de 740 mil pessoas que se declaravam ateus ou agnósticos. A baixa visibilidade e o medo da exposição muitas vezes nos protegem de agressões, mas a discriminação e preconceito que sofremos são dos mais fortes e arraigados em nossa sociedade. 

Os dados mais recentes (que datam de 10 anos atrás) indicam que 42% dos brasileiros sentem aversão aos ateus, índice superior ao observado para usuários de drogas, profissionais do sexo, homossexuais e transgêneros, e ex-presidiários; e que apenas 13% votariam em um ateu para presidente. À luz desses números, parece óbvio que ainda somos uma sociedade presa a preconceitos e que não enxerga a diversidade e a diferença como riquezas, buscando sempre no espelho as soluções para os problemas que nos afligem e as respostas para aquilo que não entendemos ou aceitamos.

É importante que se reconheça que Fernando Haddad e Manuela D’Ávila estão longe de ser exemplos de estadistas com um firme compromisso de manter religião e política em campos separados. A participação de ambos em uma missa no santuário de Aparecida em plena campanha e a ‘carta aos evangélicos’ (a ser divulgada) dão a entender que eles estão dispostos a sacrificar parte desses princípios em troca de alguns votos. 

Além disso, foge à minha compreensão como D’Ávila consegue compatibilizar seu cristianismo com as ideias marxistas de alienação religiosa. Ainda assim, há um abismo de diferença entre, de um lado, frequentar agremiações religiosas para colher votos e, de outro, defender publicamente um ‘estado cristão’ e propor a expulsão ou exílio daqueles que adotam uma escolha diferente.

É fundamental interrompermos a onda de autoritarismo e fundamentalismo religioso representada por Jair Bolsonaro. Suas declarações e propostas obscurantistas não ferem apenas os 0,4% de ateus e agnósticos de nossa população, mas constituem uma ameaça para todas e todos que possuem apreço pelas instituições e valores básicos de nossa sociedade. 

A separação entre Estado e religião é um dos pilares do iluminismo e das democracias modernas, um princípio inegociável e base do desenvolvimento intelectual, científico e econômico contemporâneo.

O momento que vivemos não trata mais de disputas entre diferentes projetos de governo, políticas econômicas ou ideologias políticas, mas da preservação do mínimo de estado de direito que conquistamos. Quaisquer que sejam as justificativas, apoiar essas ideias ou ‘declarar-se neutro’ neste segundo turno é ser conivente com o recrudescimento da intolerância e da violência. E principalmente os cristãos deveriam saber muito bem o que acontece quando aqueles que possuem o poder para mudar as coisas optam por lavar as mãos.

O autor do texto é doutor em Economia do Desenvolvimento pela Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da Universidade de São Paulo (USP). O título acima é deste site.



Aviso de novo post por e-mail

Jair Bolsonaro afirma a evangélicos que está em missão divina

Projeto da Universal é tomar o poder em 'interesse de Deus’

Bancada evangélica sobe de 71 congressistas para 91


Fundamentalismo cristão avança em seu projeto de tomar o poder

A responsabilidade dos comentários é de seus autores.

Comentários

Luciano disse…
Eu voto no Bolsonaro, não pelas suas convicções religiosas, mas por suas propostas, ele tem o benefício da dúvida, coisa que o PT perdeu a muito tempo, como ateu não me sinto ameaçado, o que ele irá fazer? me forçar a seguir o deus dele? não acho que chegaremos ao ponto de sermos governados por uma teocracia, onde quem não adorar o deus jesus será preso, ou algo do tipo.
Luciano disse…
Este comentário foi removido por um administrador do blog.
Luciano disse…
Eu voto no Bolsonaro, não pelas suas convicções religiosas, mas por suas propostas, ele tem o benefício da dúvida, coisa que o PT perdeu a muito tempo, como ateu não me sinto ameaçado, o que ele irá fazer? me forçar a seguir o deus dele? não acho que chegaremos ao ponto de sermos governados por uma teocracia, onde quem não adorar o deus jesus será preso, ou algo do tipo.
Paulo disse…
Como ateu, prefiro um candidato a presidente sincero, e que portanto, diz dentro de um contexto que vai governar pros cristãos que são a maioria do povo, a um candidato falso que não acredita no deus cristão e que vai junto com sua vice(uma comunista) a uma missa e ainda tem a cara de pau de comungar.
Precisamos de honestidade e não de gente hipócrita.

As opções que temos são essas. Um candidato honrado que nunca furtou -- e quem quiser me desmentir, prove -- e um candidato socialista, cínico até o pescoço. Ladrão e conivente com a bandidagem do PT.
Rafael disse…
Luciano Bandeira, se vc ler grandes pensadores que tentaram explicar a ascensão do Fascismo na Europa de 30 vai ver que dois componentes são imprescindíveis: primeiro, o rompimento da sensação de pertencimento da sociedade ou extrema frustração em relação ao horizonte político.

O segundo ponto é o que Theodor Adorno chamou de "Teatro do Absurdo". O fascismo se consolidou na Europa pq suas ideias eram propagadas de tal forma que pareciam absurdas demais para serem verdades. Aconteceu principalmente com Mussolini na Itália, na forma de pícaro (palhaço), traço presente em líderes como Berlusconi e Trump na nossa atualidade. O absurdo nunca vai parecer real até o momento que ele se concretiza. Ta aí Ketlyn Jenner, transexual que apoiou a campanha de Trump, agora profundamente arrependida pq o governo dos EUA não irá reconhecer a transexualidade e ela está prestes a perder sua cidadania e reconhecimento formal. Foi o mesmo motivo que fez Hitler ter apoio do general Röhm (notadamente homossexual) em seu partido; e dps assassiná-lo na "noite das facas longas".

O que nos diferencia aqui é que historiadores e cientistas políticos de direita e esquerda ESTÃO GRITANDO para falar que o que acontece hj tem os mesmos elementos da Europa da década de 30 do século passado. Ninguém botou muita fé que Hitler ia expurgar minorias como tinha dito. Ninguém acreditava que aquilo iria acontecer de fato, mesmo que, quando apossado do poder, Hitler começou invasão de territórios e já planejava um expurgo fortíssimo de oposições políticas e de determinados grupos, como judeus. E ele o fazia desde a década de 30, embora em eventos isolados. Mas ngm acreditava. Deram a capa da Revista Time para ele, um prêmio Nobel e tentaram apaziguar a situação na Europa conforme foi invadindo territórios. Cada país "diminuto" no mapa que ele invadia era uma justificativa engolida pelo outro lado de que só seria mais aquele território e ponto. Até o momento que invadiu a Polônia.

Todos os elementos discursivos e a figura de Bolsonaro correspondem ao modelo fascista europeu, adaptado à própria história recente da Am. Latina. E Bolsonaro, há menos de 3 dias disse que vai eliminar a oposição (de maneira violenta) a hora que chegar ao poder. O filho dele ameaçou fechar o STF à força e o pai tem proposta de dobrar o número de ministros do mesmo órgão para ter um colegiado que legitimar a tirania, dando ar de legalidade ao seu governo. O seu vice já disse que se não estabilizar o país (leia-se se não se curvarem ao que querem) irá fechar o Congresso Nacional- o coração institucional da democracia, principal controlador do Poder Executivo, responsável por vigiar e destituir o presidente em caso de crime. Vc ainda acha que depois disso, com o general que ele tem de vice ele está mesmo mentindo? O que mais precisa fazer para te convencer do contrário?
Unknown disse…
esperar sair o filme...
Unknown disse…
esperar sair o filme...

Post mais lidos nos últimos 7 dias

90 trechos da Bíblia que são exemplos de ódio e atrocidade

Professor obtém imunidade para criticar criacionismo nas aulas

A Corte de Apelação da Califórnia (EUA) decidiu que um professor de uma escola pública de Mission Viejo tem imunidade para depreciar o criacionismo, não podendo, portanto, ser punido por isso. A cidade fica no Condado de Orange e tem cerca de 94 mil habitantes. Durante uma aula, o professor de história James Corbett, da Capistrano Valley High School, afirmou que o criacionismo não pode ser provado cientificamente porque se trata de uma “bobagem supersticiosa”. Um aluno foi à Justiça alegando que Corbett ofendeu a sua religião, desrespeitando, assim, a liberdade de crença garantida pela Primeira Emenda da Constituição. Ele perdeu a causa em primeira instância e recorreu a um tribunal superior. Por unanimidade, os três juízes da Corte de Apelação sentenciaram que a Primeira Emenda não pode ser utilizada para cercear as atividades de um professor dentro da sala de aula, mesmo quando ele hostiliza crenças religiosas. Além disso, eles também argumentaram que o professor não ...

Caso Roger Abdelmassih

Violência contra a mulher Liminar concede transferência a Abelmassih para hospital penitenciário 23 de novembro de 2021  Justiça determina que o ex-médico Roger Abdelmassih retorne ao presídio 29 de julho de 2021 Justiça concede prisão domiciliar ao ex-médico condenado por 49 estupros   5 de maio de 2021 Lewandowski nega pedido de prisão domiciliar ao ex-médico Abdelmassih 26 de fevereiro de 2021 Corte de Direitos Humanos vai julgar Brasil por omissão no caso de Abdelmassih 6 de janeiro de 2021 Detento ataca ex-médico Roger Abdelmassih em hospital penitenciário 21 de outubro de 2020 Tribunal determina que Abdelmassih volte a cumprir pena em prisão fechada 29 de agosto de 2020 Abdelmassih obtém prisão domicililar por causa do coronavírus 14 de abril de 2020 Vicente Abdelmassih entra na Justiça para penhorar bens de seu pai 20 de dezembro de 2019 Lewandowski nega pedido de prisão domiciliar ao ex-médico estuprador 19 de novembro de 2019 Justiça cancela prisão domi...

Reação de aluno ateu a bullying acaba com pai-nosso na escola

O estudante já vinha sendo intimidado O estudante Ciel Vieira (foto), 17, de Miraí (MG), não se conformava com a atitude da professora de geografia Lila Jane de Paula de iniciar a aula com um pai-nosso. Um dia, ele se manteve em silêncio, o que levou a professora a dizer: “Jovem que não tem Deus no coração nunca vai ser nada na vida”. Era um recado para ele. Na classe, todos sabem que ele é ateu. A escola se chama Santo  Antônio e é do ensino estadual de Minas. Miraí é uma cidade pequena. Tem cerca de 14 mil habitantes e fica a 300 km de Belo Horizonte. Quando houve outra aula, Ciel disse para a professora que ela estava desrespeitando a Constituição que determina a laicidade do Estado. Lila afirmou não existir nenhuma lei que a impeça de rezar, o que ela faz havia 25 anos e que não ia parar, mesmo se ele levasse um juiz à sala de aula. Na aula seguinte, Ciel chegou atrasado, quando a oração estava começando, e percebeu ele tinha sido incluído no pai-nosso. Aparentemen...

Seleção feminina de vôlei não sabe que Brasil é laico desde 1891

Título original: O Brasil é ouro em intolerância Jogadoras  se excederam com oração diante das câmeras por André Barcinski para Folha Já virou hábito: toda vez que um time ou uma seleção do Brasil ganha um título, os atletas interrompem a comemoração para abrir um círculo e rezar. Sempre diante das câmeras, claro. O mesmo aconteceu sábado passado, quando a seleção feminina de vôlei conquistou espetacularmente o bicampeonato olímpico em cima da seleção norte-americana, que era favorita. O Brasil é oficialmente laico desde 1891 e a Constituição prevê a liberdade de religião. Será mesmo? O que aconteceria se alguma jogadora da seleção de vôlei fosse budista? Ou mórmon? Ou umbandista? Ou agnóstica? Ou islâmica? Alguém perguntou a todas as atletas e aos membros da comissão técnica se gostariam de rezar o “Pai Nosso”? Ou será que alguns se sentiram compelidos a participar para não destoar da festa? Será que essas manifestações públicas e encenadas, em vez de prop...

Cinco deuses filhos de virgens morreram e ressuscitam. E nenhum deles é Jesus

Ateus são o grupo que menos apoia a pena de morte, apura Datafolha

Por que é absurdo considerar os homossexuais como criminosos

Existem distorções na etimologia que vem a antiguidade AURÉLIO DO AMARAL PEIXOTO GAROFA Sou professor de grego de seminários, também lecionei no seminário teológico da igreja evangélica e posso dizer que a homofobia católica e evangélica me surpreende por diferentes e inaceitáveis motivos. A traduções (traições), como o próprio provérbio italiano lembra ( traduttore, tradittore ) foram ao longo dos séculos discricionariamente destinadas a colocar no mesmo crime etimológico, categorias de criminosos sexuais que na Antiguidade distinguiam-se mais (sobretudo na cultura grega) por critérios totalmente opostos aos nossos. O que o pseudoepígrafo que se nomeia Paulo condenava eram os indivíduos de costumes torpes, infames, os quais se infiltravam em comunidades para perverter mocinhas e rapazinhos sob pretexto de "discipulado" e com fins de proveito sexual. Nada diferente de hoje, por isso vemos que a origem da efebofilia e pedofilia católica e evangélica é milenar. O fato...

Aluno com guarda-chuva se joga de prédio e vira piada na UERJ

"O campus é depressivo, sombrio, cinza, pesado" Por volta das 10h de ontem (31 de março de 2001), um jovem pulou do 11º andar do prédio de Letra da UERJ (Universidade do Estado do Rio de Janeiro) e virou motivo de piadinhas de estudantes, no campus Maracanã e na internet, por ter cometido o suicídio com um guarda-chuva. Do Orkut, um exemplo: "Eu vi o presunto, e o mais engraçado é que ele está segurando um guarda-chuva! O que esse imbecil tentou fazer? Usar o guarda-chuva de paraquedas?" Uma estudante de primeiro ano na universidade relatou em seu blog que um colega lhe dissera na sala de aula ter ouvido o som do impacto da queda de alguma coisa. Contou que depois, de uma janela do 3º andar, viu o corpo. E escreveu o que ouviu de um estudante veterano: “Parabéns, você acaba de ver o seu primeiro suicídio na UERJ.” De fato, a morte do jovem é mais uma que ocorre naquele campus. Em um site que deu a notícia do suicido, uma estudante escreveu: “O campus é depressivo, s...

No noticiário, casos de pastores pedófilos superam os de padres