Pular para o conteúdo principal

SUS deveria ter gatos para adoção, já que aderiu à pseudociência


Oferecer cromoterapia é
tão irresponsável como ter
bichano para adoção

por Natália Pasternak Taschner

Ter um animal de estimação reduz a incidência de problemas cardíacos e depressão, auxilia no tratamento de autismo em crianças, além de reduzir a incidência de asma e dermatite atópica. Gatos estão especialmente associados à redução da pressão arterial.

Uma rápida busca no Pubmed mostra aproximadamente 800 publicações sobre esse tema, apontando a relação dos humanos com animais domésticos como uma possível promoção de saúde e bem-estar, além de prevenção de doenças.

Como gosto muito de gatos, acho que deve ser verdade. Não tenho grandes evidências científicas para me embasar, mas as evidências anedóticas – aquelas histórias de amigos e conhecidos – me dizem que sim. Afinal, todo mundo que tem um gato sabe como é calmante a sensação do bichano ronronando no colo, após um dia estressante no trabalho.

Pois bem, como gosto do tema, e minha experiência pessoal diz que é verdade, eu gostaria que o Sistema Único de Saúde disponibilizasse gatos para adoção. Mas não basta doar os bichinhos, o SUS precisa prover alimentação e tratamento veterinário permanente, para que os animais possam cumprir sua função de prevenção de doenças, desonerando assim o nosso sistema de saúde. O custo pode até ser alto, mas imagine o quanto o SUS poderia economizar só em exames e tratamentos cardiovasculares? Além do benefício social de retirar vários animais das ruas e oferecer-lhes um lar.

Parece estranho? Exagerado? Irresponsável? 

A obrigação do SUS não é providenciar adoção de gatos, certo? Para isso, existe o centro de zoonoses. Pois bem, mas foi exatamente isso que o SUS fez quando abraçou pseudociências como aromaterapia, reiki, florais, cromoterapia, constelações familiares, e outras tantas que foram recentemente incluídas, sob a justificativa de que seriam modalidades preventivas. E não esqueçamos da homeopatia, que habita por lá faz tempo, podendo ser usada até na emergência…

Na verdade, há mais evidências científicas acerca dos animais de estimação do que sobre o uso de constelações familiares, geoterapia e reiki.

No entanto, mesmo a evidência de que os animais de estimação promovem saúde envolve outras variáveis. Afinal, ter um cão obriga o indivíduo a ser menos sedentário, ter um gato é uma companhia para idosos solitários, e cuidar de um bichinho aumenta a autoestima e bem-estar. 

Há muitos fatores envolvidos na “eficácia” dos animais como preventores de doenças. Assim como nas pseudociências. A diferença é que não temos nenhuma organização que promova a “medicina baseada em energia felina” ou “cura quântica animal” querendo impor gatos como forma alternativa de medicina.

Tanto as publicações sobre animais como as poucas publicações acerca de práticas integrativas – algumas das recém incluídas no SUS nem apresentam publicações em periódicos científicos – atestam que são necessários mais estudos e, principalmente, estudos bem desenhados de acordo com o método científico, para que possamos tirar qualquer conclusão a respeito. 

A plataforma Cochrane, uma iniciativa independente que realiza meta-análises e revisões sobre temas de Saúde, apresenta exatamente essas conclusões: não há dados suficientes de estudos bem conduzidos que demonstrem a eficácia dessas pseudociências. 

Gatos podem e devem ser adotados, mas seria o SUS o local adequado para isso?

O SUS não é um centro cultural e espiritual de promoção de bem-estar. É um sistema de saúde, e deve utilizar tratamentos comprovados por evidências científicas.


Se nossos impostos são usados para financiar um profissional que receita florais, óleos aromáticos, passes espiritas e pílulas de açúcar, estamos deixando de financiar mamografias, vacinas e exames cardiovasculares, esses sim preventivos de doenças sérias que geram um custo alto de tratamento para o governo.

 Qual é o custo das mamografias não realizadas? Quantas cirurgias e tratamentos terão que ser realizados por causa da falta destes exames preventivos? Quantos tratamentos estaremos deixando de financiar? Vamos dividir o orçamento dos coquetéis de tratamento para HIV com terapias de lama e cores? Deixar de financiar quimioterapia para financiar mel de abelhas?

Mas talvez o mais perigoso de tudo: estamos endossando práticas que não têm comprovação científica nenhuma, e estamos deseducando e desinformando a população. Se o governo promove pseudociências, a população conclui que funcionam. E como essas práticas envolvem a promoção de cuidados e autoestima, a população sente-se amparada e cuidada. 

O bom efeito placebo atenua os efeitos de uma doença em curso, talvez até adiando os sintomas. E talvez, quando esses sintomas surgirem, seja tarde demais para tratá-los com medicina de verdade. Uma população que se sente amparada é uma boa fonte de votos. E enquanto o populismo fala, a ciência mais uma vez se cala. Jamais teremos o apoio da sociedade se deixarmos de defendê-la quando é atacada em seu direito à Saúde.

Somos privilegiados por ter acesso à informação e entender como funciona o método científico e a medicina baseada em evidências. 

A maior parte da população não tem esse conhecimento. Se não dedicarmos um pouco do nosso tempo para esclarecer a população, não devemos chorar pela volta do obscurantismo que nos cerca. Se não somos capazes de ser a luz na escuridão, morreremos nas trevas. É nosso papel advertir mais uma vez: Se medicina alternativa funcionasse, ela se chamaria simplesmente medicina. Tenho certeza de que os gatos concordam.

Natália Pasternak Taschner é bióloga. Esse texto foi publicado originalmente no site Café na Bancada, com o título "Sobre gatos e pseudociências no SUS".


Terapias alternativas avançam sobre o SUS e a comunidade científica não reage

Cura de impotência com hipnose pelo SUS divide opiniões de cariocas




A responsabilidade dos comentários é de seus autores.


Comentários

Post mais lidos nos últimos 7 dias

90 trechos da Bíblia que são exemplos de ódio e atrocidade

Morre o americano Daniel C. Dennett, filósofo e referência contemporânea do ateísmo

Veja 14 proibições das Testemunhas de Jeová a seus seguidores

Entre os 10 autores mais influentes de posts da extrema-direita, 8 são evangélicos

Ignorância, fé religiosa e "ciência" cristã se voltam contra o conhecimento

Vídeo mostra adolescente 'endemoninhado' no chão. É um culto em escola pública de Caxias

Oriente Médio não precisa de mais Deus. Precisa de mais ateus

Malafaia divulga mensagem homofóbica em outdoors do Rio

Ateu, Chico Anysio teve de enfrentar a ira de crentes

Cartunista Laerte anuncia que agora não é homem nem mulher