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Kafka tinha razão: todo amante da burocracia tem cara de rato

Título original: Feliz Ano-Novo, Kafka

por Luiz Felipe Pondé para Folha

Acho o Réveillon uma festa chatíssima. Quando você estiver lendo esta coluna, estarei em Tel Aviv, e ainda bem que aqui não tem Réveillon.

A cidade é patrimônio cultural universal porque tem o maior conjunto arquitetônico Bauhaus do mundo, o que dá a ela um tom entre o blasé (isto é, a soma do cinza e branco típico dos prédios Bauhaus de poucos andares com o desleixo chique característico da população local mediterrânea) e o moderno da primeira modernização, antes de a modernidade virar essa coisa brega de massa.

Tel Aviv é descrita pelos israelenses como sendo "outro mundo", diferente do resto do país, justamente por seu caráter secular, arredio ao fanatismo religioso que cresce por aqui e aberto à convivência mundana.

Diante desse cenário, sempre que estou nesta cidade, meu pessimismo (que tem sua origem provavelmente em alguma forma de disfunção fisiológica) cede. O desleixo e o ar mediterrâneo, associados ao desespero mudo, embutido no cotidiano de quem se sabe uma espécie caçada, me acalmam. Estranho? Sou estranho mesmo.

Segundo reza uma das lendas sobre Franz Kafka, quando perguntaram a ele se não havia esperanças para o mundo, ele teria respondido: "Esperanças há muitas, mas não para nós".

De todas as formas de pessimismo, a de Kafka é a única que me assusta. Não temo pessimismos cosmológicos. Não espero nada da vida na forma de recompensa moral (aquilo que a teologia cristã chama "retribuição pelos méritos").

Antes de tudo porque não sou uma pessoa boa. Raramente me preocupo com os outros, e a África pouco me importa. Nem a fome. Nem as baleias. Nem você.

Não conto com a misericórdia de Deus porque não a mereço. Guerras sempre existirão, e a humanidade faz o que pode para sobreviver ao mundo e a si mesma.

A possível falta de sentido da vida não me interessa. Durmo bem com ela. Sou daqueles que pensam que a metafísica é fruto de indisposição e mau humor. Mas temo o pessimismo kafkiano como nada mais no mundo. Temo a burocracia. Todo amante da burocracia tem cara de rato. Kafka tinha razão.

O pior mundo de Kafka não é sua barata, mas aquele do seu conto "A Construção". O roedor que faz a "construção" em sua casa é a melhor descrição do inferno burocrático em que o mundo se transformou.

Kafka, à diferença da maioria de nossos especialistas em ciências humanas, sabe que construímos a burocracia para nos sentir seguros, e não porque nos obrigam a isso. E o pior é que existem muitas razões para nos sentirmos inseguros, por isso não há saída para o inferno que é a burocracia.

Algumas almas menos brilhantes assumem que um mundo "paperless" (nada mais ridículo do que usar expressões em inglês para se sentir mais científico), ou seja, sem papel, seria menos burocrático. Risadas... Nada mais horroroso do que alguns restaurantes que começam a trocar seus menus "físicos" por iPads. Logo nos farão escolher nossos pratos via rede, e eles acharão isso o máximo.

Um mundo "paperless" afogar-se-á em senhas. Você precisará de uma senha especial para usar sua senha menos especial e assim sucessivamente, ao infinito. Depois, precisará de um programa superavançado para ter acesso a todas as suas senhas e combiná-las de modo secreto (em si, uma outra senha).

Quando você tiver uma crise diante de tudo isso, algum burocrata dirá para você que isso tudo é para sua segurança. E você será obrigado a concordar, assumindo também uma cara de rato.

Mas, dirão as almas menos brilhantes, graças a Deus estamos cortando menos árvores e não estamos gerando papel.

No conto de Kafka "A Construção", nosso roedor atarefado teme um ruído horroroso que vem não sabe de onde e por isso começa a construir "rotas de fuga" em sua moradia subterrânea.

Logo, a rede de "rotas de fuga" é tão grande que ele se esquece onde começou e descobre que, apesar de o ruído aumentar cada vez mais e sua sensação de perigo aumentar junto com o ruído, ele já não sabe como fugir, porque suas rotas de fuga viraram um labirinto infernal.

O mundo de Kafka é uma prisão a céu aberto, e os ratos venceram. Feliz Ano-Novo.

Grande parte do nosso amor familiar é apenas protocolo social.
agosto de 2011

Artigos de Pondé.

Comentários

Adilson disse…
Já dizia Freud que o que todo mundo quer é consolo...Pondé como bom freudiano que é certamente sabe que a sua afronta, sua petulância e sua insolência são lenitivos à existência absurda, em todas as suas manifestações, seja na burocracia sem sentido, seja na morte assombrosa...ah, mas que pena que seja só isso e apenas isso, um grito e nada mais, porque o absurdo continua por aí a nos rondar e nós continuamos aqui sem saber o que fazer.
Izaque Bastos disse…
Este comentário foi removido pelo autor.
Izaque Bastos disse…
um texto com um peso angustiante,infelizmente para muitos a moral morreu mesmo, nao me admira que pseudo-ateus, disfarçado de Cristaos, transformaram nosso país em uma maquina de corrupçao, posam de cristaos, só pra ganharem a politica, mas o Deus deles é o dinheiro, as letras sao só pra fazer delirar, e os glorias é so pra enganar os bestas.
Ricardo disse…
Eu podia jurar que ele ia dizer que o Reveillon é uma festa brega, mas ele se limitou a chamá-la de chata (opinião da qual compartilho totamente). Está melhorando, Pondé, está melhorando... (a redação do texto, não o humor dele, para o qual estou me lixando)
Silva disse…
De fato compartilho dessa ideia com Pondé, é uma festa chatíssima, porque eu também sou chato e pessimista, horrivelmente depressivo, festa de burocratas, de gente que comemora seus ganhos podres, suas pequenas conquistas ridículas, um bando de gente artificial desejando feliz ano novo pra outro bando de gente artificial, depois irão afogar seus erros, suas deficiências, suas taras em bebidas e transas grupais, se bem que das transas e bebidas eu participaria, aliás a única coisa boa desta festa ridícula.
Anônimo disse…
Cada Pondé tem o leitor que merece.
Anônimo disse…
" Não temo pessimismos cosmológicos. Não espero nada da vida na forma de recompensa moral (aquilo que a teologia cristã chama "retribuição pelos méritos").

Antes de tudo porque não sou uma pessoa boa. Raramente me preocupo com os outros, e a África pouco me importa. Nem a fome. Nem as baleias. Nem você".

kkkkkkkkk, pondé é aquele q vai numa festa a fantasia sem fantasia e, por isso, chama mais atenção.Causa espanto.
muito bom texto
R B C disse…
Quanto mais lêio o Pondé, mais tenho a certeza de que não o "conheço" ele passa a ser contraditório em seus artigos e "aparições públicas" salvo me engano Pondé aqui mesmo neste blog vossa senhoria já publicou artigos criticando rituais africanos, práticas de aborto,(isso não seria uma forma de preocupação a qual se refere não ter para com os outros?) já disse não ser mais ateu no programa (roda viva) diferente do que disse no ultimo texto seu, as vezes (quase sempre) me considero chatoe blasé com essas festas maquiadoras de caráter a exemplo do natal, você sabe de onde vem esse "bom e vermelho velinho" ? Ah! Já dizia o grande Renato Russo... "Geração coca-cola..." mas, o Pondé adora críticas e frases de efeito (puro sofisma) além do mais exercer a sua psicanálise faz bem né? Acho que ele me lembra um certo governante, quem? Getúlio Vargas, aquele você ao virar a costas com a certeza de boas promessas, recebia nada menos que pedradas, quanta falácia, espero que volte a construir textos interessantes como antes, ou, (faça como Getúlio diga o que o povo queira ouvir) eca...
Silva disse…
Pondé é um bicho enjaulado como qualquer um de nós, com seus demônios o cutucando o tempo todo.
Pondé adora ser do contra.
Anônimo disse…
Todo pensamento está limitado a uma realidade e ao Pondé à própria deficiência de realidade, então vai vender livros!
Anônimo disse…
Filósofia e para quem tem tempo para delirar , e religião é para caretas, quem debruça o rosto em livros velhos e empoeirados para fazer valer a razão bom sujeito não é, aqueles que dobram seus joelhos e ficam chorando se dizendo podres pecadores que precisam beber sangue de um morto, sangue coagulado e frio como chave de chantagem para receberem um inequivoco céu já esta destituido de censo, que me desculpe os bibliolatras.
Anônimo disse…
Eu sou ateu sou livre de dogmas, de preceitos ,de filósofias minha vida se da em mim e isto me basta, minha sobrevivencia é a unica coisa que importa, foda-se os religiosos e falsos moralistas, a minha vida é bela até o dia em que morrerei e nunca mais existirei ,os mitos eu chutei pra longe de mim, e esmaguei debaixo dos meus pés deus e jesus cristo esta lenda que ganhou o ocidente debaixo de muito sangue e violência dos primeiros cristãos.
Anônimo disse…
Minha grande amiga Lydia Matusaila, estranha que ELE fale tanto em jantares inteligentes; pois os dela são, e ela jamais o convidaria. Dizem as linguas que outrora chamávamos más, que é um péssimo e inábil conviva. Tropeça a todo momento na etiqueta e nem perde por um segundo a pose de inequívoco penetra. ELE , entretanto tem um traço louvável; a certidão de nascimento inapagável, indelével; de filho adotivo da classe média brasileira, que adora e representa tudo que ele queima APÓS INCENSAR e depois renega...Como bem disse o Arcebispo de Reims ao neófito Clóvis:"curva a cabeça sicambro, adora o que queimaste, e queima o que adoraste". E olha que não me refiro aqui aos baseados da juventude maconheira da USP. Um certo maneirismo mimético o acompanha em toda parte, como o amor da boa-mesa; também do bom vinho!Mas diga-se de passagem, ele sempre possui aquele travo , da memória do passado de pobreza...Sem exceptuar, é claro, o indiscutível mau-gosto(nos hábitos, tantos nos de tecido, quanto nos dos gestos). Quem não for arquiteto - e até quem o seja!-, não fala BAUHAUS com tanto deslumbramento como ELE, que; aliás segundo todos sabemos, nasceu numa vila de casas sem eira nem beira...A ostentação periódica das viagens, como diz a Mentarra Maluf; é típica de pobre (sempre marinheiros de alguma primeira viagem, primeiro carro importado, primeira ida a Paris); a exibir tudo que é EXTRAORDINÁRIO (para os supostos admiradores) nos facebooks da vida...A minha cabeleireira aliás, tem facebook(!)E para desgosto do arrivista DE CUJUS, passou também o ano-novo em Tel-Aviv, com o genro que é judeu. Fez questão de falar com todo mundo via skype. Para que ter, afinal, se não for pra mostrar, não eh? Mas o mundo não seria tão divertido sem ELE e sem pessoas como a minha cabeleireira...Mui boa gente no meu CONDOMÍNIO passou o dia de hoje no valium e no uísque. Eu me diverti com um GROUSEzinho, que ninguém é de ferro, e uma lida NELE.
Anônimo disse…
Luiz Felipe Pondé
O Maior Brasileiro de Todos os Tempos!!!
rodrigo disse…
Quanto mais o tempo passa, menos eu suporto o Pondé. Chato, chato, chato...
Anônimo disse…
Meu Caro Pondé. Sei que não lerás estas linhas, mas com o devido perdão pela temeridade, desejara que as lesses. Tenho aprendido muito contigo, à medida que percebo tantas coisas no que escreves, invisíveis ao meu espelho cego, despertado por tua reflexão fruto de um trabalho perseverante de consciência. Não me considero um admirador teu, nem um seguidor, mas um livre aprendiz. Eu tenho dificuldades de compreender muitas coisas que dizes, posto que devo confessar para minha confusão, que leio pouco. Entretanto, talvez por comodidade ou preguiça, aprecio a forma que traduzes para mim estas complicadas meditações oriundas da filosofia e de outras obras literárias. Eu penso que és um crítico muito experimentado, na hipocrisia dos discursos, e na dissimulação da farsa, comumente ocultada nos debatedores e nos debates. Fico pensando às vezes, se ainda há quem te engane, naquelas apresentações, leituras públicas, exposições, bancas examinadoras e dissertações; onde ocorrem (e algures assistimos) momentos e situações impagáveis!O que eu penso ser mais inteligente, e por isso mais valioso, em tudo o que dizes, é a crítica à ditadura dos ressentidos...E eu gostaria que acrescentásseis uma: a dos especialistas em humildade. Todo mundo agora tem vergonha de falar a palavra pobre (pauperofobia?), e orgulham-se de serem "humildes"...Mas nem sei se lês estes posts, onde se pontuam dirigidas a ti tantas críticas. Perdoa-me a temerária presunção de falar-te e a confusão das pessoas pronominais. Não queria parecer intimo nem exagerar no formalismo. Estou lendo alguns daqueles livros que você sugeriu e gostei muito do autor Cioran. Aprendi com ele uma frase que é meu lema no facebook: não tente seduzir, quando é justamente o seu trabalho desenganar.
Charles disse…
Repito o que disse, 'Cada Pondé tem o leitor que merece' e completo : e vice-versa...tem gente que tem orgasmos lendo o gajo.
Anônimo disse…
Quer comparar a burocracia com um conto de Kafka ? OK, é possível.
Mas o que tem o reveillon ver com isto ?
Este texto me parece oriundo de um daqueles livros infantis, em que as páginas são divididas em três, cada parte com cabeça; tronco e pernas e ao final podem se criar personagens absurdos. Cabeça de rato, corpo de burocrata, pernas de Bauhaus...
Anônimo disse…
O Pondé não entende nem de democracia e nem de direitos constitucionais, se é que esse perfil dele for verdadeiro no face, pra falar tamanha asneira sobre uma manifestação pacifica:
http://www.180graus.com/geral/movimento-contraoaumento-esta-protestando-em-frente-a-prefeitura-485788.html
Anônimo disse…
Cade o anônimo??? Ok, vou substituir: Pondé é o Schopenhauer reencarnado e parará pirirí...
miguel disse…
KAFKA
Bom é saber que o grito de Kafka ainda tem a sua reminescencia, já se passaram mais de 11 anos, e ainda há quem se lembre da temática de "Todo amanate da burocracia tem cara de rato".

Na verdade, não falei para o vento, Deus disse que o "o mundo passa assim como a sua concupiscencia, mas aquele que faz a vontade de Deus permanece para sempre", e que "passarão os céus e a terra mas a minha palavra não passará", veja-se como as profecias biblicas se têm cumprido, e no seu age realmente os que amam a burocracia (o paradigma moral e existencial deste mundo), verão a volta do Senhor e o abater da Sua ira sobre a terra e seus moradores irreconciaveis com Deus, aí se esconderão inultilmente pelas cavernas e rochas.
O grito enfim ainda persiste: "Abraçai o seu amor e sua salvação hoje "

KAFKA
Anônimo disse…
Anônimo do dia 02/01/12 as 23 h:08

O seu comentário me desperta os piores instintos esquerdistas que eu já tinha descartado há muito tempo(assim como a esquerda).Instintos quase animalescos...

Mas também fico feliz,porque lendo seu comentário,me lembro que muitas vezes o dinheiro somente traz um verniz na escrita que além de ser estilisticamente horroroso,esconde um pseudo-intelectualismo e pobreza de espírito,que via de regra não tem cura.
Unknown disse…
A burocracia, como tantas coisas ruins e necessárias desde mundo que vivemos, está aí, livre e solta. O que fazer se tudo que se pode mudar não é levado a cabo? Conformar-se...

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