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'Não perco meu tempo sonhando em abolir as religiões', escreve Piza

Título original: A fé e o tom

por Daniel Piza

Perdi o pouco que tinha ou poderia ter de fé religiosa entre os 13 e 14 anos, depois de um coquetel de leituras que viria a conter Dostoiévski, Darwin, Nietzsche (O Anticristo) e Bertrand Russell (Por Que não Sou Cristão), os dois últimos na coleção Os Pensadores da editora Abril. Mas, na realidade, já desconfiava de tudo aquilo desde quando fui obrigado a fazer primeira comunhão, aos 10 anos, período em que de fato tentei acreditar e rezar e confessar. A chatice e caretice das aulas, a falta de vontade de obedecer aos padres, a sensação de que não fazia sentido pedir perdão por um pecado que a espécie humana teria gravado em sua alma, não apenas por eventualmente ter roubado o chocolate do meu irmão do armário da cozinha – tudo isso era difícil de engolir, como a hóstia que só provei naquela ocasião e nunca mais.

Passei a me declarar agnóstico, como que dizendo “não sei se Deus existe”, o que era a mais pura e dura verdade. Depois aprendi que o termo tinha sido cunhado por outro escritor-biólogo de grande estilo, Thomas Huxley, com intenção muito mais combativa: a de negar qualquer possibilidade de conhecermos fenômenos supernaturais ou místicos. Ao mesmo tempo, ele traçou uma distinção com os ateístas da época, que supunham poder provar a não-existência de Deus ou deuses. Em países como o Brasil, porém, quando alguém declara ser ateu ou agnóstico causa levantar de sobrancelhas ou olhares de esguelha, como se prestes a cometer algum gesto feio ou autodestrutivo. Nos EUA, principalmente em certas regiões, a reação é ainda pior.

De uns anos para cá, talvez por causa dos atentados de 11/9/2001, os ateus e agnósticos decidiram sair do armário. Surgiram movimentos como o dos brights (você leu aqui primeiro), que acham importante aglutinar pessoas que não acreditam em entidades superiores, espírito e vida pós-morte. O livro do mais célebre desses brights, Richard Dawkins, "Deus, um Delírio" (Companhia das Letras), acaba de chegar ao Brasil, onde no final do ano passado já tinha sido publicado o do quase tão célebre Daniel C. Dennett, "Quebrando o Encanto" (Globo). Recentemente li também God Is not Great, de Christopher Hitchens (Twelve), o polemista inglês. Todos têm bons argumentos, mas, devo dizer, nada acrescentam ao que eu já tinha lido e pensado naquele tempo.

O que fica sem destaque nesses livros é a observação de que até mesmo pessoas não-religiosas atribuem sentidos diversos à palavra Deus, como a qualquer palavra genérica e antiga, e de que isso é um direito delas. Para umas, é justamente a aceitação de que não podemos explicar tudo, de que somos pequenos diante dos mistérios e da passagem do tempo, etc. Minha palavra para isso é Natureza. Para outras, Deus é uma crença que ajudaria a fortalecer valores morais, em especial a humildade e a responsabilidade, numa era em que há tanto materialismo e egoísmo. Chamo a isso Ética. E outras defendem a noção como forma de consolo ou esperança, necessária para situações de desespero como a do pai de família bêbado e agressivo que encontra conforto na palavra de Jesus. Meu nome para isso é Ânimo – ou boa vontade, ou bom humor, ou qualquer coisa que designe disposição de continuar vivendo e superar obstáculos.

Mas, se quiserem chamar de Deus, estarei errado ao supor que defendam ou estejam sujeitas a defender um comportamento repressivo e hipócrita, como diz em especial Hitchens, que é mais um panfletário do que um pensador e nem sequer reconhece o papel do imaginário cristão na tradição cultural. Dennett se mostra mais inclinado a investigar por que o cérebro humano precisa de uma dose de ilusão sobre o futuro, mas acha que não existe convívio possível entre ciência e religião, como se a mesma pessoa não pudesse encarar a fé como “encanto” e defender evolução e genética. Dawkins, no prefácio à nova edição de seu best-seller, rebate a crítica – de que a presença da religião na humanidade desde priscas eras é inelutável – dizendo que a aceitaria se dita “num tom que chegasse pelo menos perto do da pena ou da preocupação”.

Aqui está, portanto. A religião me preocupa quando pretende explicar a dinâmica das coisas e estimula dogmatismo e conformismo; só não perco meu tempo sonhando em aboli-la. E, tal como Dawkins, acho que seu problema e o de Dennett e Hitchens é de tom. Há algo tolo em quem critica o fundamentalismo com o mesmo dedo em riste e a mesma pregação exaltada daqueles que acusa.

Reprodução do site do autor.

Explicações da ciência descartam a 'hipótese Deus', diz filósofo italiano.
dezembro de 2010

Mais sobre Hitchens.     Mais sobre Dawkins.     Ateísmo.

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