Pular para o conteúdo principal

Entidade luta contra 'inferno' dos ateus brasileiros: o preconceito

Título original:
Sorria! O inferno não existe
A má notícia é que o Céu também não


por Fábio Fujita para Piauí

Na Escola Estadual Frei Afonso Maria Jordá, na cidade mineira de Aimorés, os alunos cumprem diariamente o ritual de rezar na sala de aula. Tão inescapável quanto o gongo do recreio, o momento de evocação divina nunca havia gerado conflito. Até que, no início do ano, um estudante se recusou a tirar o boné para a prece.

A atitude inusitada teria sido entendida como simples transgressão de adolescente, não fosse a justificativa apresentada pelo garoto: "Eu não reverencio esse Deus, então por que tenho que tirar o boné?" A lógica era irretocável. Entre estarrecidos e embasbacados, os professores se entreolharam. Sem saber como explicar ao jovem pecador que vilipêndio dessa grandeza o levaria, no post-mortem, a ser fritado nas labaredas do Inferno, eles fizeram o que lhes cabia: mandaram-no para o purgatório terreno, a diretoria.

O caso teria sido contornado e esquecido, não fosse a intervenção da -Associação Brasileira de Ateus e Agnósticos, Atea. A entidade, formalizada em novembro de 2008, tem como objetivo defender o ateísmo e combater hostilidades e sanções sofridas por seus adeptos, além de difundir premissas anti-Deus como base de um caminho filosófico consistente. "Entramos com uma representação no Ministério Público e o inquérito está rolando", explica o presidente da associação, Daniel Sottomaior, 37 anos, a propósito do episódio de Aimorés.

Não foi sua primeira batalha legal. Em abril, quando lia uma série de artigos sobre a Páscoa publicados por um jornal de Jundiaí, Sottomaior foi surpreendido pelas idéias da psicóloga Léa Maria Lopes. Ela asseverava: "É dever dos pais orientar e incentivar os filhos a seguir uma religião, seja ela qual for." Podia-se ler, ali, o pressuposto de que a religião faz o indivíduo melhor - e que, portanto, sua ausência o piora. O episódio motivou outra representação da Atea, desta vez no Conselho Regional de Psicologia de São Paulo, para contestar a profissional; na condição de representante da categoria dos psicólogos, ela não poderia recorrer a princípios não fundamentados na ciência.

Preconceitos dessa sorte não surpreendem Sottomaior. No inconsciente coletivo, ele diz, está consolidada a idéia que associa o ateu a uma figura do mal, quando não à própria encarnação de Belzebu na Terra. (O fato de "inconsciente coletivo" ser um conceito tão metafísico quanto Deus não parece atrapalhar Sottomaior.) "O que o [José Luiz] Datena fala no programa dele sobre o pior estuprador? 'Esse não tem Deus no coração'", ele exemplifica.

Sottomaior cita dados para mostrar que a perseguição aos incréus é não só real, mas explícita, à diferença do preconceito sofrido por negros e homossexuais, segundo ele, mais velados. Uma pesquisa do Instituto Gallup nos Estados Unidos apontou, por exemplo, que um candidato ateu à Presidência enfrentaria resistência de 53% do eleitorado, contra 43% do segundo colocado, um hipotético candidato gay.

Na mesma linha, de acordo com um estudo encomendado em 2008 pela revista Veja ao cnt/Sensus, 87% dos brasileiros jamais ajudariam a eleger um candidato que tivesse desertado do Criador. "É um índice de rejeição mais alto do que contra os negros americanos na época em que eram obrigados a viajar nos bancos de trás dos ônibus", comenta, horrorizado.

O dirigente ateísta frisa que em nenhum momento rompeu com Deus, e isso pelo simples fato de ele nunca ter estado em sua vida. "Todo mundo nasce ateu. Deus não surge espontaneamente nos lábios das crianças", raciocina. É, portanto, o entorno - em boa parte do mundo, cristão - que determina as convicções religiosas dos pequenos, num período da vida em que eles tendem a acreditar em tudo o que ouvem dos adultos. Sottomaior agradece "a imensa sorte" de não ter sido doutrinado dessa forma. E refuta a idéia de que o ateísmo possa ser entendido, esquizofrenicamente, como religião: "Essa comparação me deixa violento", diz, suave. "Ateísmo é uma religião tanto quanto careca é uma cor de cabelo", conclui, citando o ícone da descrença Don Hirschberg, espécie de Jesus Cristo ateu nascido no Arkansas.

Existem duas correntes distintas entre os adeptos do ateísmo: os antirreligiosos xiitas e os céticos, que nada pregam. Sottomaior é do primeiro time. "Roxo, raivoso e militante", orgulha-se, indicando que integra uma comunidade (do Orkut) chamada "A Bíblia me faz rir". Para ele, trata-se do documento que melhor expressa o quanto o suposto Deus cristão seria homofóbico, machista, vingativo e homicida. Sottomaior lembra que a maior injustiça dos tempos de Cristo, "se é que existiu um Cristo", foi a escravidão. "Quantas coisas a Bíblia fala contra isso? Nada. Sempre se fala em 'servos'. É um eufemismo que os tradutores acordaram para se referir aos escravos."

Também no Orkut, entre máximas atéias de Drummond ("De nada vale erguer mãos e olhos para um céu tão longe, para um Deus tão longe"), Einstein ("A palavra Deus para mim é nada mais que a expressão e produto da fraqueza humana") e Nietzsche ("O cristão comum é uma figura deplorável"), Sottomaior publicou uma espécie de mantra extraoficial dos ateus: Obrigado, senhor, porque me deu de comer hoje, apesar de ter esquecido as centenas de milhares de crianças que morrem de fome todos os anos, por mais que elas e seus pais também tenham orado! Obrigado, senhor, por atender minhas preces quando peço para meu time ganhar e também por não atender as preces de milhares de pessoas que imploram pela paz diariamente! Obrigado, senhor, porque você salva a vida de uma pessoa no meio de um desastre com milhares de vítimas fatais!

A formalização da Atea como entidade nacional é o primeiro marco de uma luta para mudar a situação dos ateus - a "última minoria social", na classificação de Sottomaior. Ele considera que existe um forte boicote dos meios de comunicação sobre o assunto. Os jornais Folha de S.Paulo e O Estado de S. Paulo chegaram a procurá-lo para matérias que, no final, acabaram engavetadas. Coisa de deísta.

Sem que as idéias circulem, a associação não consegue arrecadar fundos para emplacar campanhas como as da Inglaterra, com frases estampadas nas laterais dos ônibus: There's probably no God.Now stop worrying and enjoy your life - "Provavelmente Deus não existe. Agora pare de se preocupar e aproveite a vida." Por aqui, Sottomaior diz que o slogan seria: "Sorria! O Inferno não existe" ou "Você é quase tão ateu quanto nós. Quando entender por que não acredita em todos os outros deuses, saberá por que não acreditamos no seu."

Ainda usando calças curtas, a associação não conseguiu articular nenhuma atividade especial para marcar o Dia do Orgulho Ateu, 12 de fevereiro. A data, celebrada por confrarias ateístas de alguns países, homenageia o nascimento de Charles Darwin, inimigo número 1 do criacionismo.

Personalidades que poderiam emprestar visibilidade à causa também não se assumem devidamente. Sottomaior chegou a procurar Glória Maria, depois de vê-la se dizer atéia no programa Pânico, condição negada pela assessoria da apresentadora. Ele alfineta: "Foi o caso, talvez único, de alguém que saiu do armário e entrou correndo de volta."

Reação de aluno ateu a bullying acaba com pai-nosso na escola.
abril de 2012

Ateísmo.

Comentários

Post mais lidos nos últimos 7 dias

90 trechos da Bíblia que são exemplos de ódio e atrocidade

Veja 14 proibições das Testemunhas de Jeová a seus seguidores

Morre o americano Daniel C. Dennett, filósofo e referência contemporânea do ateísmo

Entre os 10 autores mais influentes de posts da extrema-direita, 8 são evangélicos

Cartunista Laerte anuncia que agora não é homem nem mulher

Malafaia divulga mensagem homofóbica em outdoors do Rio

Música gravada pelo papa Francisco tem acordes de rock progressivo. Ouça

Evangélico 'enviado de Cristo' dá marretadas em imagem de santa

Ateu, Chico Anysio teve de enfrentar a ira de crentes

Sam Harris: não é Israel que explica as inclinações genocidas do Hamas. É a doutrina islâmica