Carta do filósofo revela reflexão sobre o direito à morte digna e expõe o contraste entre a autonomia pessoal e a proibição da eutanásia no Brasil.
 
Voltou a circular na internet a carta de despedida do escritor, filósofo, crítico e compositor Antonio Cícero, membro da Academia Brasileira de Letras (ABL).
Ele sofria de mal de Alzheimer e teve morte assistida na manhã de 23 de outubro de 2024, na Suíça.
Cícero deixou uma carta curta aos amigos, na qual expõe um problema da legislação brasileira que impede uma pessoa de decidir por uma morte digna.
Tomar a decisão pela morte assistida não é fácil, ainda mais para Cícero, que, com Alzheimer, poderia ter uma longa sobrevida, embora ao custo da perda da consciência do seu “eu” — do poeta, do pensador, do intelectual. Seria uma morte em vida.
O que o ajudou a decidir foi ser ateu desde a adolescência. Na carta, afirmou: “Pois bem, como sou ateu desde a adolescência, tenho consciência de que quem decide se minha vida vale a pena ou não sou eu mesmo. Espero ter vivido com dignidade e espero morrer com dignidade.”
Se o ateísmo — ou qualquer outra convicção — permite que alguém sinta que terá uma morte digna, isso merece atenção das autoridades.
É o caso de retomar a discussão sobre a eutanásia no Brasil, onde o procedimento ainda é considerado homicídio.
Naturalmente, a cautela deve prevalecer, com a realização de fóruns de médicos brasileiros e estrangeiros, para evitar a banalização da morte assistida.
Cícero precisou ir à Suíça para se consultar em uma clínica especializada, o que exige custos inacessíveis à maioria das pessoas
Agora há, contudo, uma alternativa mais próxima. O Uruguai, país mais progressista da América Latina, aprovou a eutanásia para pacientes em estado terminal e com sofrimentos insuportáveis.
A boa notícia, para quem viver se tornou insuportável, é que o Uruguai fica bem mais perto que a Suíça. A opção por uma morte digna deixa de ser privilégio de ricos e classe média.
Íntegra da carta de Antonio Cícero a amigo
"Queridos amigos, Encontro-me na Suíça, prestes a praticar eutanásia. O que ocorre é que minha vida se tornou insuportável. Estou sofrendo de Alzheimer. Assim, não me lembro sequer de algumas coisas que ocorreram não apenas no passado remoto, mas mesmo de coisas que ocorreram ontem. Exceto os amigos mais íntimos, como vocês, não mais reconheço muitas pessoas que encontro na rua e com as quais já convivi. Não consigo mais escrever bons poemas nem bons ensaios de filosofia. Não consigo me concentrar nem mesmo para ler, que era a coisa de que eu mais gostava no mundo. Apesar de tudo isso, ainda estou lúcido bastante para reconhecer minha terrível situação. A convivência com vocês, meus amigos, era uma das coisas — senão a coisa — mais importante da minha vida. Hoje, do jeito em que me encontro, fico até com vergonha de reencontrá-los. Pois bem, como sou ateu desde a adolescência, tenho consciência de que quem decide se minha vida vale a pena ou não sou eu mesmo. Espero ter vivido com dignidade e espero morrer com dignidade. Eu os amo muito e lhes envio muitos beijos e abraços!"
 
Paulo Lopes
jornalista, trabalhou na Folha de S.Paulo, Diário Popular, Editora Abril, onde foi premiado, e em outras publicações
Ele sofria de mal de Alzheimer e teve morte assistida na manhã de 23 de outubro de 2024, na Suíça.
Cícero deixou uma carta curta aos amigos, na qual expõe um problema da legislação brasileira que impede uma pessoa de decidir por uma morte digna.
Tomar a decisão pela morte assistida não é fácil, ainda mais para Cícero, que, com Alzheimer, poderia ter uma longa sobrevida, embora ao custo da perda da consciência do seu “eu” — do poeta, do pensador, do intelectual. Seria uma morte em vida.
O que o ajudou a decidir foi ser ateu desde a adolescência. Na carta, afirmou: “Pois bem, como sou ateu desde a adolescência, tenho consciência de que quem decide se minha vida vale a pena ou não sou eu mesmo. Espero ter vivido com dignidade e espero morrer com dignidade.”
Se o ateísmo — ou qualquer outra convicção — permite que alguém sinta que terá uma morte digna, isso merece atenção das autoridades.
É o caso de retomar a discussão sobre a eutanásia no Brasil, onde o procedimento ainda é considerado homicídio.
Naturalmente, a cautela deve prevalecer, com a realização de fóruns de médicos brasileiros e estrangeiros, para evitar a banalização da morte assistida.
Cícero precisou ir à Suíça para se consultar em uma clínica especializada, o que exige custos inacessíveis à maioria das pessoas
Agora há, contudo, uma alternativa mais próxima. O Uruguai, país mais progressista da América Latina, aprovou a eutanásia para pacientes em estado terminal e com sofrimentos insuportáveis.
 É desejável que o tema seja debatido no Parlamento e pela sociedade brasileira, embora, no curto prazo, o país siga dificilmente o exemplo uruguaio.
No Brasil, a moralidade religiosa — cada vez mais presente nas políticas públicas — glorifica o sofrimento como caminho para a salvação divina.
No Brasil, a moralidade religiosa — cada vez mais presente nas políticas públicas — glorifica o sofrimento como caminho para a salvação divina.
A boa notícia, para quem viver se tornou insuportável, é que o Uruguai fica bem mais perto que a Suíça. A opção por uma morte digna deixa de ser privilégio de ricos e classe média.
Íntegra da carta de Antonio Cícero a amigo
"Queridos amigos, Encontro-me na Suíça, prestes a praticar eutanásia. O que ocorre é que minha vida se tornou insuportável. Estou sofrendo de Alzheimer. Assim, não me lembro sequer de algumas coisas que ocorreram não apenas no passado remoto, mas mesmo de coisas que ocorreram ontem. Exceto os amigos mais íntimos, como vocês, não mais reconheço muitas pessoas que encontro na rua e com as quais já convivi. Não consigo mais escrever bons poemas nem bons ensaios de filosofia. Não consigo me concentrar nem mesmo para ler, que era a coisa de que eu mais gostava no mundo. Apesar de tudo isso, ainda estou lúcido bastante para reconhecer minha terrível situação. A convivência com vocês, meus amigos, era uma das coisas — senão a coisa — mais importante da minha vida. Hoje, do jeito em que me encontro, fico até com vergonha de reencontrá-los. Pois bem, como sou ateu desde a adolescência, tenho consciência de que quem decide se minha vida vale a pena ou não sou eu mesmo. Espero ter vivido com dignidade e espero morrer com dignidade. Eu os amo muito e lhes envio muitos beijos e abraços!"

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