O texto abaixo é uma contestação a quem acredita que o 'amor cristão' é dignificante
Eduardo Banks
militante do Estado laico e ateísmo
Venho acompanhando no Jornal da Nova os artigos do prof. dr. Ricardo Oliveira da Silva, da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (UFMS), e do sr. Vítor Hugo de Souza Carneiro (não encontrei informações sobre eventuais graus acadêmicos, posto que nem sequer Currículo Lattes ele possui, mas isso não o demerita por si) a respeito da possibilidade de amar o próximo sem ter crença em Deus, pelo primeiro, e de que o “amor cristão” ultrapassaria o “amor natural” que o ser humano possui, independentemente do cristianismo.
Como observador das questões religiosas, sinto que devo apresentar algumas considerações ao debate.
A posição do prof. dr. Ricardo Oliveira da Silva, como ateu, é a de quem analisa o problema “de fora”, posto que o ateísmo não é uma confissão religiosa antagônica das demais.
Quanto ao sr. Carneiro, ele responde “de dentro” da cosmovisão religiosa (pentecostal) com que se comprometeu. Assim, ele produz um discurso suspeito ao invocar a teologia revelada (citações do “Levítico”, da “Primeira Epístola de S. João” e do “Evangelho Segundo S. Matheus”) e textos exegéticos de teólogos cristãos (Tertuliano, Luthero e Calvino).
Sr. Carneiro incorre em uma petição de princípio, pois tenta provar a excelência do “amor cristão” recorrendo ao próprio cristianismo. Ou seja, ele não considera as críticas contundentes dos acadêmicos às demonstrações mais candentes desse “amor” pelos homens.
Assim, entre outras coisas, ele enfia debaixo do tapete as Cruzadas, a Inquisição, a Caça às Bruxas, as guerras religiosas que opuseram católicos e protestantes em carnificinas de séculos, como a Guerra dos Trinta Anos, o julgamento das “Bruxas de Salém”, as estórias de possessões demoníacas de freiras em conventos franceses do Século XVII (ver “A Feiticeira”, de Jules Michelet, de 1862, e o filme “Häxan”, de Benjamin Christensen, de 1922).
O articulista Carneiro deixa de lado conflitos entre maçons e liberais de um lado, e católicos “ultramontanos”, do outro, que culminaram na Lei de 9 de dezembro de 1905, e, mais recentemente entre nós, os casos de intolerância religiosa contra seguidores de religiões de matriz africana no Brasil, impulsionados pela pregação agressiva de pentecostais, para que se veja que espécie de “amor” estamos falando.
Conforme diagnosticou Nietzsche, filósofo ateu do Século XIX, “[n]ão o seu amor ao próximo, mas a impotência do seu amor ao próximo é que impede os cristãos de hoje de nos — queimar” (“Além do Bem e do Mal”, § 104).
Ou seja, o “amor-ágape” vai ao ponto de considerar melhor roubar, matar e destruir os não-cristãos, desde que isso os impeça de “pecar” e assim, alcançarem a “salvação” (todo condenado à fogueira recebia a oportunidade, já no auto-de-fé, de receber in extremis os últimos sacramentos e ter a sua “alma” salva, embora perdendo o corpo), e que esses atos atrozes de intolerância e violência somente não se repetem em nossos dias, porque o secularismo retirou das igrejas o poder político direto que tinham no passado para controlar a vida das Nações.
Então, temos que entender a real diferença entre o “amor natural”, a que os gregos diferençavam pelas categorias de eros e philia, e o “amor cristão”, que se pretende chamar de “ágape”.
O prof. dr. Ricardo Oliveira da Silva termina seu artigo “Amar o próximo sem precisar acreditar em Deus”, de 12 de setembro de 2025, com a afirmação de que “[e]stabelecer certos princípios como basilares para a vida individual e coletiva, como não roubar, não matar, não torturar, não explorar o próximo, não ser desonesto e não maltratar os animais, por exemplo, é algo que as pessoas podem concordar como adequados sem a necessidade automática de acreditar em Deus.
Uma moral secular é possível”, ao passo que o sr. Vítor Hugo de Souza Carneiro o contradita, dizendo que “atos de amor ao próximo também podem ser encontrados fora do círculo cristão.
A teologia reformada explica esse fenômeno pela doutrina da graça comum: o favor de Deus que restringe o mal e permite que mesmo aqueles que não professam fé em Cristo pratiquem gestos de bondade, justiça e solidariedade.
Como afirma João Calvino, a graça comum é “um dom de Deus para toda humanidade, pelo qual Ele preserva a ordem e concede virtudes mesmo aos ímpios” (Institutas, II.3.3).
Assim, quando observamos não cristãos dedicando-se à tais obras, não estamos diante de uma autonomia humana capaz de criar o amor em si, mas da ação de Deus sustentando a criação e refletindo, ainda que de modo imperfeito, a imagem divina impressa em todo ser humano”.
Aí temos uma grande dificuldade; a moral secular e o amor que vem da empatia são demonstrados empiricamente, ao passo que a “doutrina da graça comum” suplica que primeiro se acredite em Deus, para então fazer do “amor natural” um dom concedido pelo mesmo Deus, o que termina por ser um apelo à ignorância como o “Deus das lacunas”, além de incorrer em um círculo vicioso: faz de Deus o autor do amor-ágape nos cristãos, mas também do amor-philia e do amor-eros, para aqueles que não têm o “ágape” dos cristãos, enquanto nega a estes, a possibilidade de “criarem” o amor que é, todavia, observado em suas ações.
É como se um menino de escola discutisse com o outro que obteve uma nota melhor por seu trabalho, que na realidade, o pai do coleguinha é que teria feito o seu trabalho, e que nenhum estudante conseguiria concluir um trabalho por si mesmo.
Há tempos que venho denunciando que o mal da doutrina católica (extensivo aos protestantes) in politicis é que ela se pretende fundamentar nas ciências sociais, porém a “antropologia” cristã é uma pseudo-antropologia, que não tem o próprio Homem como o seu centro, mas sim, um obscuro “Deus” que se teria feito homem e em tudo humano “exceto pelo pecado”; assim, a ciência social da Igreja Católica é, na realidade, um segmento da teologia, onde todos os fenômenos políticos, antropológicos e sociológicos são, fundamentalmente, cristológicos e mariológicos.
É o que basta para que os ateus rejeitemos a concepção cristã, mesmo quando concorda em suas premissas com a ciência, porém dela se divorcia em suas conclusões, notadamente a de que (Catecismo da Igreja Católica, §§ 386 e 387) “o pecado está presente na história do homem” e que a “realidade do pecado” estaria na origem do que explicamos unicamente como “falta de maturidade, fraqueza psicológica, erro, consequência necessária duma estrutura social inadequada”.
Tais causas podem não ser “únicas”, já que não podemos ter a presunção de que tudo já tenha sido descoberto, porém, o “pecado” somente seria uma “explicação” para quem tivesse antes, e em primeiro lugar, a “fé” de que existimos em um Universo não apenas “criado” ou “planejado”, mas totalmente ordenado por Deus e para Deus.
O mesmo se pode dizer do amor: o depravado em ser cristão está no Primeiro Mandamento da “Lei” deles, o de “amar a Deus sobre todas as coisas”.
Quem obedece isso à risca, torna-se incapaz de amar tanto ao próximo, quanto a si mesmo, porque as outras pessoas já não são amadas pelo que elas são, em si mesmas e nelas mesmas, mas apenas na medida em que reflitam, para o cristão, a “imago Dei”, ou seja, o cristão ama, na realidade, apenas e tão-somente a Deus, e todo o resto, inclusive a sua família, os outros cristãos, as pessoas não cristãs, a Pátria, são amados na medida em que imitem, mais ou menos, o próprio Deus.
Em meu entendimento, isso é uma forma doentia e exclusivista de viver a própria vida psíquica, com repercussões deletérias nas relações interpessoais.
Relacionamentos sólidos se dissolvem, quando um membro do casal se converte, e o outro não (existe o “privilégio paulino”, em I Cor 7:12-15, que autoriza o divórcio quando um membro do casal se torna cristão, e o “privilégio petrino”, previsto nos cânones 1148 e 1149 do Codex Iuris Canonici, que autoriza a pessoa casada antes da conversão a contrair novo casamento, com alguém cristão, se o seu cônjuge se recusa a converter), filhos são separados de seus pais, como foi usado na estratégia de São Jose de Anchieta, de converter os curumins e depois dizer aos seus pais que não poderiam mais ter os filhos consigo, se não se convertessem também; no Século XIX, o Beato Papa Pio IX retirou do judeu Salomão Mortara a guarda de seu filho menor Edgard, porque uma criada do próprio Salomão batizou a criança, sendo o “caso Mortara” o estopim da dissolução do “Estado Pontifício”.
Diante disto, fica a minha reflexão: será possível chamar de “AMOR” ao que os cristãos sentem, uns pelos outros, e pelo restante da Humanidade? Ou, ao contrário, os cristãos não seriam, a bem da verdade, totalmente incapacitados de construir um relacionamento sadio, e amar às outras pessoas pelo que elas são, e não porque se pareceriam com Deus?
O “amor-ágape” mais parece uma forma de dominação narcisística, e, mesmo quando o cristão se sacrifica pelo próximo, não é porque ame o próximo, mas porque ama a Deus, a quem enxerga no próximo. Imagine-se alguém a cuidar de seu pai idoso, apenas porque espera receber dele uma herança ao final, para ver que espécie de “amor” eu estou falando, quando discorro sobre o “amor cristão”.
> Esse artigo foi publicado originalmente no Jornal da Nova com o título Amor natural versus amor Cristão. Uma polêmica.
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