Fazer o bem significa fazer aquilo que Deus ordena? Será mesmo?
Ricardo Oliveira
Ricardo Oliveira
professor do curso de história da UFMS/CPNA
O princípio de “amar o próximo” possui referências bíblicas. No evangelho de Mateus, 22:39, consta que Jesus Cristo declarou “amarás o teu próximo como a ti mesmo”.
No evangelho de João, 15:12, Jesus Cristo compartilhou o mandamento: “amai-vos uns aos outros, como eu vos amei”.
Uma reflexão que se pode fazer a partir desse princípio se refere às formas de convivência e relações humanas na condição de uma prática moral cotidiana: amar o próximo, cuidar dos seus semelhantes, fazer o bem as pessoas.
Como a ideia de “amar o próximo” possui referências na figura de Jesus Cristo, o qual teria compartilhado isso com seus seguidores, de acordo com aquilo que aparece nos evangelhos, uma inferência feita em sociedades cristãs é que “amar o próximo” está atrelado a crença de Jesus Cristo não apenas como um líder religioso, mas como o próprio filho de Deus enviado ao mundo para salvar a humanidade.
Como resultado, acreditar em Deus está incluído no pacote que define como devem ser as ações morais e a reflexão ética. Fazer o bem significa fazer aquilo que Deus ordena. Será mesmo?
Nas palavras do filósofo Julian Baggini, no livro Ateísmo: uma breve introdução, para muitos religiosos Deus é necessário para existir moralidade.
Uma das formas de defender essa ideia é afirmar que todo código moral precisa de um legislador e, em última análise, um juiz.
O problema desse raciocínio é que se confunde lei e moralidade. A lei realmente precisa de um poder legislador, mas isso não garante que as leis sejam boas e justas.
Esse pensamento já foi exposto alguns séculos antes do cristianismo ter sido criado. É o chamado “dilema de Eutífron”, presente em uma obra do filósofo Platão, onde o protagonista, Sócrates, pergunta se os deuses escolhem o bem porque ele é bom ou se o bem é bom porque os deuses o escolhem.
Se a segunda alternativa for a correta, a ideia de bem passa a ser arbitrária. Contudo, se a primeira alternativa estiver correta, “isso significa que as propriedades do bem podem ser definidas independente de Deus, e nesse caso a ideia do bem não depende de maneira alguma da existência de Deus” (Baggini, 2016, p. 52).
A crença de que moral e Deus são indissociáveis também bebe na fonte da noção de que “sem Deus tudo é permitido”, uma leitura influenciada pela obra do escritor russo do século XIX Fiódor Dostoiévski.
No bojo desse raciocínio habita o entendimento de que se não vivermos de forma moral seremos castigados por um Deus onisciente e onipresente. Nesse caso, uma pessoa que não rouba apenas pelo medo de ser flagrado não é moral, apenas prudente.
“Uma pessoa verdadeiramente moral é aquela que tem a oportunidade de roubar sem ser flagrada e mesmo assim não rouba” (Baggini, 2016, p. 54).
Nesse ponto, uma pergunta que pode ser feita é: se Deus não é necessário para se ter um comportamento moral, qual é a fonte para se agir de forma benigna?
Para Julian Baggini (2016, p. 59), “a raiz da moralidade é uma espécie de empatia ou preocupação com o bem-estar dos outros, um reconhecimento de que esse bem-estar também conta”. A partir disso se obtém um ponto de partida para todos os raciocínios sobre ética que podem nos ajudar a tomar decisões melhores e nos tornar pessoas melhores.
Estabelecer certos princípios como basilares para a vida individual e coletiva, como não roubar, não matar, não torturar, não explorar o próximo, não ser desonesto e não maltratar os animais, por exemplo, é algo que as pessoas podem concordar como adequados sem a necessidade automática de acreditar em Deus. Uma moral secular é possível.
> Esse texto foi publicado originalmente por Jornal da Nova.
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