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Bíblia tem muitas contradições, mas ela pode ser útil, até para ateus

'Sou ateia e um dos meus objetivos é libertar a Bíblia das mãos da igreja dominante e dos cristãos conservadores'


Duc Dau

pesquisadora da Bíblia, Universidade da Austrália Ocidental

O filósofo anarquista do século XIX, Michael Bakunin, disse o seguinte sobre o cristianismo em seu livro de 1882, Deus e o Estado:

O cristianismo é precisamente a religião por excelência, porque exibe e manifesta, em toda a sua extensão, a própria natureza e essência de cada sistema religioso, que é o empobrecimento, a escravização e a aniquilação da humanidade em benefício da divindade.

Estou inclinada a concordar com Bakunin.

Muitos de nós que crescemos numa cultura rodeada pelo cristianismo não conseguimos pensar em Deus sem associar a divindade à Bíblia e ao cristianismo.

Assim, é provável que a maioria dos ateus e agnósticos não tenha uma boa opinião sobre um texto que constitui a base do cristianismo — e de uma série de males sociais históricos em que essa religião participou, incluindo a escravatura, o sectarismo e o conservadorismo sexual.

Há muito a criticar sobre um sistema de crenças que censura as práticas sexuais fora do casamento, da monogamia e das relações heterossexuais.


Muitas Bíblias, muitos leitores

A Igreja Católica Romana na qual fui criada tem uma história imperdoável de falha na proteção de um número incontável de crianças contra o abuso físico, emocional e sexual por parte dos seus padres, irmãos e freiras.

Enumerar o número de ofensas do cristianismo contra a humanidade levaria mais do que alguns parágrafos.

E, no entanto, sou uma ateia e estudiosa literária que escreve sobre a Bíblia. Não acredito em Deus, mas escrevo extensivamente sobre um texto considerado por muitos cristãos como sancionado por Deus.

Não é uma contradição para mim porque um dos meus objetivos é libertar a Bíblia das mãos da igreja dominante e dos cristãos conservadores.

Sou um dos vários estudiosos que desejam abrir as possibilidades interpretativas do texto e dos seus leitores. Tal como o teólogo queer Gerard Loughlin em Alien Sex: The Body and Desire in Cinema and Theology (2003), no meu trabalho tento “conectar o aparentemente inconectável”: erotismo e religião, o corpo e a teologia, o ateu e a Bíblia.

A Bíblia não é um livro produzido por revelação divina. Quando a autoridade divina do autor é retirada da Bíblia, ela libera sua capacidade de ser adaptada e interpretada de maneiras múltiplas e surpreendentes na literatura.

Antigamente, as Bíblias eram acorrentadas nas igrejas inglesas, aparentemente para protegê-las de roubo e vandalismo. No entanto, como afirma Hugh S. Pyper em The Unchained Bible: Cultural Appropriations of Biblical Texts:

A interpretação subversiva e equivocada deste acorrentamento como símbolo de um livro cativo da igreja estabelecida é difícil de suprimir.

Uma vez libertada das suas correntes, porém, "a Bíblia revela-se um texto que chega a todo o lado e que sofre metamorfoses surpreendentes e por vezes contraditórias".

Existe mais de um tipo de Bíblia, e é a Bíblia desencadeada que me interessa. Essa é a Bíblia que escapa aos grilhões da igreja dominante e dos cristãos conservadores — bem como ao equívoco dos não crentes que imaginariam que a única Bíblia que existe é a sua contraparte acorrentada.

A personagem Sue Bridehead critica a Bíblia acorrentada no romance Jude the Obscure (1895), de Thomas Hardy. Falando sobre o livro bíblico erótico Cântico dos Cânticos (ou Cântico de Salomão), ela diz:

As pessoas não têm o direito de falsificar a Bíblia! Eu odeio a farsa que tenta encobrir com abstrações eclesiásticas o amor extático, natural e humano que existe naquela grande e apaixonada canção!

O que para ela é um hino ao amor e ao sexo foi distorcido por interpretações “falsas”. Sue acrescenta:

O que insisto é que explique versículos como este: “Para onde foi o teu amado, ó mais bela entre as mulheres?”.

A interpretação "A Igreja professa a sua fé" é extremamente ridícula!

Sue critica o impulso cristão em direção à interpretação tipológica, especialmente considerando que o Cântico dos Cânticos é um dos dois livros da Bíblia que não menciona Deus.

Na ficção contemporânea, Fried Green Tomatoes at the Whistle Stop Cafe (1987), de Fannie Flagg, cita o livro de Ruth para destacar uma terna história de amor entre duas personagens femininas principais.

Ao finalmente decidir deixar seu marido abusivo, Ruth envia a sua amada Idgie a seguinte passagem:

Roga-me que não te deixe, nem volte de te seguir; pois para onde quer que fores, eu irei; e onde estiveres, eu me hospedarei; o teu povo será o meu povo, e o teu Deus, o meu Deus.

Essa é uma das passagens mais notáveis ​​da Bíblia, e a sua utilização aqui é igualmente notável: para validar os diferentes tipos de amor entre mulheres. Diga-me, se Deus existisse, ele desaprovaria?

Comentários

MetalWe disse…
Bíblia = Mein Kumpf

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