Pular para o conteúdo principal

Religiosos se opõem levar restos mortais de humanos para a Lua porque ela é 'sagrada'

Com problema no propulsor, um módulo lunar comercial não conseguiu deixar na Lua cinzas de humanos, mas levantou uma polêmica. Para o presidente da Nação Navajo, a Lua é 'sagrada' e, por isso, não pode ser contaminada  


Joanne M. Pierce
professora Emérita de Estudos Religiosos, Colégio da Santa Cruz

Matheus Schmalz
professor de Estudos Religiosos, Colégio da Santa Cruz

The Conversation
plataforma de informação e análise produzida por acadêmicos e jornalistas

O envio de restos mortais humanos à Lua no primeiro módulo lunar comercial, Peregrine 1, em 8 de janeiro de 2024, com instrumentos científicos, causou polêmica.

Buu Nygren, presidente da Nação Navajo, objetou, dizendo que “a lua ocupa um lugar sagrado” nos Navajo e em outras tradições tribais e não deveria ser contaminada desta forma.

O interior da sonda seria uma espécie de “sepultamento espacial” para os restos mortais de cerca de 70 pessoas. Cada uma das famílias pagou mais de US$ 12 mil por um memorial permanente na Lua.

Como professores de estudos religiosos que ministraram cursos sobre ritos de morte, sabemos que os rituais de morte nas religiões foram moldados por milênios de tradição e prática. 

Embora as cinzas não tenham chegado à Lua devido a um vazamento de propulsor, sua presença na sonda levantou algumas questões religiosas importantes: as crenças sobre a natureza poluente do cadáver, a aceitabilidade da cremação e a sacralidade da Lua variam entre as tradições.

Rituais de morte judaica e purificação

No antigo judaísmo, acreditava-se que certas atividades eram poluentes, tornando a pessoa inadequada para participar de orações e sacrifícios de animais oferecidos exclusivamente no Templo de Jerusalém. 

Havia muitas maneiras pelas quais alguém poderia tornar-se ritualmente impuro, e cada nível de poluição era limpo por um rito de purificação apropriado. 

Acreditava-se que o contato direto com um cadáver humano causava a forma mais intensa de poluição; até mesmo tocar uma pessoa ou objeto que esteve em contato com um cadáver causaria um nível menor de contaminação.

Cinzas de humanos na
Lua é um sacrilégio ou
uma celebração à
conquista do espaço
?

Depois que os romanos destruíram o Templo em 70 d.C., a prática religiosa judaica mudou drasticamente, incluindo as regras sobre purificação. Hoje em dia, após um enterro ou visita a um cemitério, muitos judeus lavam as mãos para afastar espíritos ou energias negativas.

No Judaísmo, os corpos dos mortos devem ser enterrados ou sepultados na terra. A cremação de corpos humanos, rejeitada durante séculos, tornou-se mais popular, mas continua a ser uma opção controversa devido à tradição mais antiga de respeito pelo corpo como uma criação de Deus — ser enterrado intacto e sem mutilação.

Rituais de morte cristãos ao longo dos séculos

Antes de o cristianismo se desenvolver no primeiro século EC, a religião civil romana enfatizava a necessidade de separar os vivos dos mortos. Cadáveres ou restos cremados eram enterrados em cemitérios fora das cidades e vilas — na necrópole, literalmente uma cidade dos mortos. Como no Judaísmo, qualquer visitante precisava de purificação posteriormente.

Como monoteístas, os cristãos rejeitaram a crença nos deuses e deusas gregos e romanos, incluindo a deusa da Lua chamada Selene ou Luna. Eles também se recusaram a participar de rituais religiosos do Estado romano ou de atividades baseadas no politeísmo pagão. 

Décadas mais tarde, depois que o cristianismo se tornou a religião imperial oficial, os cristãos transferiram os restos mortais de pessoas que consideravam sagradas para vilas e cidades para serem sepultados novamente para facilitar a veneração dentro das igrejas.

Durante o período medieval, os cristãos comuns desejavam ser enterrados perto destes santos, em antecipação à ressurreição do corpo na segunda vinda de Cristo. Os cemitérios ao redor da igreja foram consagrados como “terra sagrada”. 

Desta forma, os cristãos acreditavam que os falecidos poderiam continuar a beneficiar da santidade dos santos. Seus corpos eram considerados fontes de bênção espiritual e não causas de poluição espiritual.

Cada vez mais hoje, a cremação é considerada aceitável, embora a Igreja Católica exija que os restos mortais cremados não sejam espalhados ou divididos, mas enterrados ou colocados em outro lugar nos cemitérios.

Nasa confirma descoberta de água na face iluminada da Lua

Ao contrário de algumas outras religiões, nem o Judaísmo nem o Cristianismo consideram a Lua divina ou sagrada. Como parte da criação de Deus, desempenha um papel na definição dos calendários religiosos. Tanto nos escritos espirituais judaicos quanto nos cristãos, a Lua é usada como uma analogia espiritual: no judaísmo, da majestade de Deus, e no cristianismo, de Cristo e da igreja.

Crenças islâmicas sobre enterro

A cremação é estritamente proibida no Islã. Após a morte, o falecido é ritualmente lavado, envolto em mortalhas e levado para sepultamento no cemitério o mais rápido possível.

Após uma oração fúnebre, liderada por um imã ou membro sênior da comunidade, o falecido é enterrado — geralmente sem caixão — com a cabeça voltada para a cidade sagrada de Meca. Diz-se que a alma do falecido visita seus entes queridos no sétimo e no 40º dia após a morte.

O Alcorão alerta contra a adoração da Lua , como era feito na cultura pré-islâmica, porque a adoração é devida somente a Deus.

Em setembro de 2007, quando o primeiro astronauta muçulmano da Malásia se preparava para ir para o espaço, a Agência Espacial Nacional da Malásia publicou instruções religiosas sobre rituais funerários para muçulmanos no espaço. 

Essas instruções diziam que se não fosse possível trazer o corpo de volta, então ele seria “enterrado” no espaço após uma breve cerimônia. E se não houvesse água disponível no espaço para os rituais cerimoniais, então o “pó sagrado” deveria ser varrido no rosto e nas mãos “mesmo que não haja poeira” na estação espacial.

Práticas funerárias hindus e budistas

O hinduísmo é uma religião diversificada e, portanto, as práticas funerárias variam frequentemente conforme a cultura e o contexto. Mais comumente, a morte e o período após a morte de uma pessoa estão associados à poluição ritual. Por isso, o falecido deve ser cremado dentro de 24 horas após a morte.

A cremação do cadáver corta os laços da alma, ou do atman, com o corpo, permitindo-lhe passar para o próximo nível de existência e eventualmente reencarnar. As cinzas são coletadas e colocadas em uma urna no terceiro dia após a cremação e imersas em um corpo d'água, de preferência um rio sagrado como o Ganges.

No Hinduísmo, a Lua desempenhou um papel importante na conceituação do que acontece com os mortos. Por exemplo, os antigos textos hindus descrevem os espíritos dos mortos virtuosos como entrando em Chandraloka, ou o reino da Lua, onde experimentam felicidade por um tempo antes de reencarnarem.

Nas muitas formas de budismo, a morte oferece uma oportunidade para os enlutados refletirem sobre a impermanência de todas as coisas. Enquanto no budismo tibetano existe a tradição do “enterro no céu”, em que o falecido é desmembrado e deixado aos elementos, na maioria das formas de budismo os mortos são geralmente cremados e, como no hinduísmo, o cadáver é considerado poluente de antemão.

Nas formas mais antigas de budismo no Nepal e no Tibete, entendia-se que a Lua era identificada com o deus Chandra, que anda numa carruagem. A Lua é também uma das nove divindades astrológicas cujo movimento fornece informações para avaliar o futuro individual e coletivo.

Perguntas difíceis

Em resposta à objeção dos Navajo de que o lançamento de cinzas na Lua era uma contaminação, o CEO da Celestis, a empresa que pagou pelas cápsulas contendo as cinzas, emitiu um comunicado sublinhando que o lançamento de contentores de cinzas humanas para a Lua é “a antítese da profanação”. … é uma celebração.”

No final, a questão era discutível. O Peregrine 1 nunca fez seu pouso suave na Lua devido a um mau funcionamento do motor, e sua carga foi destruída após entrar na atmosfera.

À medida que mais pessoas decidem enviar as suas cinzas para o espaço, porém, é inevitável surgirem conflitos religiosos. A principal preocupação, e não apenas para a Nação Navajo, será como respeitar todas as tradições religiosas à medida que os humanos exploram e comercializam a Lua. Ainda hoje continua sendo um problema aqui na Terra.

Comentários

Post mais lidos nos últimos 7 dias

Canadenses vão à Justiça para que escola distribua livros ateus

René (foto) e Anne Chouinard recorreram ao Tribunal de Direitos Humanos do Estado de Ontário, no Canadá, para que a escola de seus três filhos permita a distribuição aos alunos de livros sobre o ateísmo, não só, portanto, a Bíblia. Eles sugeriram os livros “Livre Pensamento para Crianças” e “Perdendo a Fé na Fé: De Pregador a Ateu” (em livre tradução para o português), ambos de Dan Barker. Chouinard sugeriu dois livros à escola, que não aceitou Os pais recorreram à Justiça porque a escola consentiu que a entidade cristã Gideões Internacionais distribuísse exemplares da Bíblia aos estudantes. No mês passado, houve a primeira audiência. O Tribunal não tem prazo para anunciar a sua decisão, mas o recurso da família Chouinard desencadeou no Canadá uma discussão sobre a presença da religião nas escolas. O Canadá tem cerca de 34 milhões de habitantes. Do total da população, 77,1% são cristãos e 16,5% não têm religião. René e Anne são de Niágara, cidade perto da fronteira com...

90 trechos da Bíblia que são exemplos de ódio e atrocidade

Bento 16 associa união homossexual ao ateísmo

Papa passou a falar em "antropologia de fundo ateu" O papa Bento 16 (na caricatura) voltou, neste sábado (19), a criticar a união entre pessoas do mesmo sexo, e, desta vez, associou-a ao ateísmo. Ele disse que a teoria do gênero é “uma antropologia de fundo ateu”. Por essa teoria, a identidade sexual é uma construção da educação e meio ambiente, não sendo, portanto, determinada por diferenças genéticas. A referência do papa ao ateísmo soa forçada, porque muitos descrentes costumam afirmar que eles apenas não acreditam em divindades, não se podendo a priori se inferir nada mais deles além disso. Durante um encontro com católicos de diversos países, Bento 16 disse que os “cristãos devem dizer ‘não’ à teoria do gênero, e ‘sim’ à aliança entre homens e mulheres no casamento”. Afirmou que a Igreja defende a “dignidade e beleza do casamento” e não aceita “certas filosofias, como a do gênero, uma vez que a reciprocidade entre homens e mulheres é uma expressão da bel...

Eleição de Haddad significará vitória contra religião, diz Chaui

Marilena Chaui criticou o apoio de Malafaia a Serra A seis dias das eleições do segundo turno, a filósofa e professora Marilena Chaui (foto), da USP, disse ontem (23) que a eleição em São Paulo do petista Fernando Haddad representará a vitória da “política contra a religião”. Na pesquisa mais recente do Datafolha sobre intenção de votos, divulgada no dia 19, Haddad estava com 49% contra 32% do tucano José Serra. Ao participar de um encontro de professores pró-Haddad, Chaui afirmou que o poder vem da política, e não da “escolha divina” de governantes. Ela criticou o apoio do pastor Silas Malafaia, da Assembleia de Deus do Rio, a Serra. Malafaia tem feito campanha para o tucano pelo fato de o Haddad, quando esteve no Ministério da Educação, foi o mentor do frustrado programa escolar de combate à homofobia, o chamado kit gay. Na campanha do primeiro turno, Haddad criticou a intromissão de pastores na política-partidária, mas agora ele tem procurado obter o apoio dos religi...

Existe uma relação óbvia entre ateísmo e instrução

de Rodrigo César Dias   (foto)   a propósito de Arcebispo afirma que ateísmo é fenômeno que ameaça a fé cristã Rodrigo César Dias Acho que a explicação para a decadência da fé é relativamente simples: os dois pilares da religião até hoje, a ignorância e a proteção do Estado, estão sendo paulatinamente solapados. Sem querer dizer que todos os religiosos são estúpidos, o que não é o caso, é possível afirmar que existe uma relação óbvia entre instrução e ateísmo. A quantidade de ateus dentro de uma universidade, especialmente naqueles departamentos que lidam mais de perto com a questão da existência de Deus, como física, biologia, filosofia etc., é muito maior do que entre a população em geral. Talvez não existam mais do que 5% de ateus na população total de um país, mas no departamento daqueles cursos você encontrará uma porcentagem muito maior do que isso. E, como esse mundo de hoje é caracterizado pelo acesso à informação, como há cada vez mais gente escolarizada e dipl...

Quem matou Lennon foi a Santa Trindade, afirma Feliciano

Deus castigou o Beatle por falar ser mais famoso que Jesus, diz o pastor Os internautas descobriram mais um vídeo [ver abaixo] com afirmações polêmicas do pastor-deputado Marco Feliciano (PSC-SP), na foto. Durante um culto em data não identificada, ele disse que os três tiros que mataram John Lennon em 1980 foram dados um pelo Pai, outro pelo Filho e o terceiro pelo Espírito Santo. Feliciano afirmou que esse foi o castigo divino pelo fato de o Lennon ter afirmado que os Beatles eram mais famosos que Jesus Cristo. “Ninguém afronta Deus e sobrevive para debochar”, disse. Em 1966, a declaração de Lennon causou revolta dos cristãos, o que levou o Beatle a pedir desculpas. Feliciano omitiu isso. Em outro vídeo, o pastor disse que a morte dos integrantes da banda Mamonas Assassinas em acidente aéreo foi por vontade divina por causa das letras chulas de suas músicas. "Ao invés de virar pra um lado, o manche tocou pra outro. Um anjo pôs o dedo no manche e Deus fulminou aque...

Papa afirma que casamento gay ameaça o futuro da humanidade

Bento 16 disse que as crianças precisam de "ambiente adequado" O papa Bento 16 (na caricatura) disse que o casamento homossexual ameaça “o futuro da humanidade” porque as crianças precisam viver em "ambientes" adequados”, que são a “família baseada no casamento de um homem com uma mulher". Trata-se da manifestação mais contundente de Bento 16 contra a união homossexual. Ela foi feita ontem (9) durante um pronunciamento de ano novo a diplomatas no Vaticano. "Essa não é uma simples convenção social", disse o papa. "[Porque] as políticas que afetam a família ameaçam a dignidade humana.” O deputado Jean Wyllys (PSOL-RJ) ficou indignado com a declaração de Bento 16, que é, segundo ele, suspeito de ser simpático ao nazismo. "Ameaça ao futuro da humanidade são o fascismo, as guerras religiosas, a pedofilia e o abusos sexuais praticados por membros da Igreja e acobertados por ele mesmo", disse. Tweet Com informação...

Pastor Caio diz que Edir Macedo tem 'tarugo do diabo no rabo'

Caio diz que Macedo usa o paganismo Edir Macedo está com medo de morrer porque sabe que terá de prestar contas de suas mentiras a Deus, disse o pastor Caio Fábio D'Araújo (foto), 56, da denominação Caminho da Graça. “Você [Edir] está com o tarugo do diabo no rabo”, afirmou, após acusar o fundador da Igreja Universal de ter se "ajoelhado" diante dos “príncipes deste mundo para receber esses poderes recordianos” (alusão à Rede Record). Em um vídeo de 4 minutos [segue abaixo uma parte]  de seu canal no Youtube, Caio Fábio, ao responder um e-mail de um fiel, disse que conhece muito bem o bispo Edir Macedo porque já foi pastor da Igreja Universal. Falou que hoje Macedo está cheio de dinheiro e que se comporta como um “Nerinho de Satanás” caminhando para morte e “enganando milhares de pessoas”. O pastor disse que, para Macedo, o brasileiro é pagão, motivo pelo qual o fundador da Igreja Universal “usa o paganismo” como recurso de doutrinação. “Só que Jesu...

Roger Abdelmassih agora é também acusado de erro médico

Mais uma ex-paciente do especialista em fertilização in vitro Roger Abdelmassih (foto), 65, acusa-o de abuso sexual. Desta vez, o MP (Ministério Público) do Estado de São Paulo abriu nova investigação porque a denúncia inclui um suposto erro médico. A estilista e escritora Vanúzia Leite Lopes disse à CBN que em 20 de agosto de 1993 teve de ser internada às pressas no hospital Albert Einstein, em São Paulo, com infecção no sistema reprodutivo. Uma semana antes Vanúzia tinha sido submetida a uma implantação de embrião na clínica de Abdelmassih, embora o médico tenha constatado na ocasião que ela estava com cisto ovariano com indício de infecção. Esse teria sido o erro dele. O implante não poderia ocorrer naquelas circunstâncias. A infecção agravou-se após o implante porque o médico teria abusado sexualmente em várias posições de Vanúzia, que estava com o organismo debilitado. Ela disse que percebeu o abuso ao acordar da sedação. Um dos advogados do médico nega ter havido violê...