Pular para o conteúdo principal

'Terapias' de conversão sexual promovem a homofobia. Em nome de Jesus

Relatório do projeto Global Contra o Ódio e o Extremismo mostra que o fundamentalismo religioso é a base dessa prática proibida pelo Conselho Federal de Psicologia


Mariama Correia
jornalista

Agência Pública
jornalismo investigativo sem fins lucrativos

Filho e neto de pastores, Betuel, 23 anos, foi coagido a participar de cultos de libertação da Igreja Quadrangular quando contou aos pais que era gay, aos 12 anos. 

“Tentavam expulsar demônios de mim. Eu era coagido a ir aos cultos todos os dias e participar de encontros com Deus, onde você precisava ficar três dias em silêncio. Tudo para tentar mudar minha orientação sexual. O que mais dói é a homofobia da própria família”, contou.

Betuel foi expulso de casa aos 20 anos. Pouco tempo depois, fundou o movimento Desvyados, que luta contra a LGBTFobia e o fundamentalismo religioso. Na página do Instagram, com mais de 40 mil seguidores, ele fala dos abusos praticados nas igrejas e nas chamadas terapias de “conversão” sexual. 

“Somos procurados por pessoas LGBTs que passaram por essas terapias. Muitas estão tão machucadas que nem se sentem confortáveis para falar com um psicólogo. Por se identificarem com a minha história, terminam compartilhando depoimentos”, relata.

O fundamentalismo religioso, que atravessou a história de Betuel, é o principal combustível dos grupos e organizações que promovem as chamadas “terapias” de conversão sexual no Brasil.

Um relatório do projeto Global Contra o Ódio e o Extremismo (GPAHE, no inglês), ao qual a Agência Pública teve acesso com exclusividade, mostra que essas organizações estão ativas e se articulam em uma grande rede que distribui seus conteúdos na internet, quase sem interferência das plataformas. 

As práticas de conversão sexual não têm respaldo científico e são proibidas no Brasil por resoluções do Conselho Federal de Psicologia.

“O Brasil tem uma rede grande e muito ativa de terapia de conversão em mídias sociais que, segundo nossa estimativa, quase não recebe moderação. Esperamos poder trabalhar com as empresas de redes sociais para remediar parte desta situação, uma vez que o conteúdo é obviamente violador”, diz a cofundadora da GPAHE, Wendy Via, que liderou o estudo. 

Ela observa que, ao longo da pesquisa, notou uma falta significativa de recursos voltados para apoiar quem procurava ajuda. “Por exemplo, ao pesquisar os vários termos relacionados à terapia de conversão, não apareceram resultados confiáveis ​​para recursos para prevenção de suicídio, falta de moradia, aconselhamento”, diz.

A Pública questionou o Google, a Meta e o Youtube, que estão entre as plataformas citadas, sobre a moderação desses conteúdos. 

A Meta informou por nota que “não permite discurso de ódio em suas plataformas e os Padrões da Comunidade proíbem qualquer conteúdo que ataque pessoas com base em suas características”. 

Disse ainda que revisa “conteúdo por meio da combinação de tecnologia de Inteligência Artificial e equipes humanas” e incentiva “as pessoas a denunciarem conteúdos e contas que acreditem violar nossas políticas através das ferramentas disponíveis nos próprios aplicativos”. 

Google e do YouTube  não deram retorno até a publicação desta reportagem.

O estudo da GPAHE mostra que as organizações que promovem “terapias” de conversão sexual no Brasil estão geralmente ligadas a uma igreja e se conectam para promover eventos e conteúdos. 

Elas produzem cursos, aulas e aconselhamentos — alguns deles pagos — que abordam a homossexualidade como um pecado que precisa ser “curado”, e reprimem identidades de gênero, a exemplo do seminário online da entidade evangélica missionária internacional Jocum (Jovens Com Uma Missão) chamado “SOS Sexualidade. As aulas custam R$ 1,2 mil e, entre outros conteúdos, abordam identidades trans e travestis como uma disfunção sexual.

Algumas organizações, como o Ministério Libertos por Deus, de São Paulo, do pastor Flávio Amaral e da missionária Andreia Castro, disseminam discurso transfóbico nas redes sociais. Amaral, que se apresenta como ex-travesti “liberto da homossexualidade”, faz campanhas de arrecadação para custear tratamentos e cirurgias de “destransição”, de pessoas trans que teriam se arrependido.

Amaral, que se apresenta
como 'ex-travesti', pede
dinheiro na rede social

Em março de 2023, o pastor Flávio esteve no Congresso Nacional, com um grupo de pessoas que teriam se arrependido da transição de gênero. Ele foi recebido pelo deputado federal Nikolas Ferreira (PL-MG), que já foi condenado por falas transfóbicas. Na ocasião, o parlamentar pediu apoio para uma vaquinha que iria ajudar o grupo “a voltar ao sexo original e ter seu corpo conforme eles nasceram”.

A reportagem procurou o pastor, que não respondeu até a publicação.

As lideranças da cura gay 

O Ministério Luz na Noite, vinculado à Igreja Presbiteriana do Jardim Camburi, em Vitória (ES), apresenta-se como uma “missão de apoio aos que desejam abandonar voluntariamente a prática da homossexualidade”. 

O site oferece cursos online e gratuitos sobre sexualidade, com vídeos no YouTube. Um dos módulos aborda “ideologia de gênero”, uma narrativa que se tornou comum entre grupos ultraconservadores no Brasil, contra o avanço de direitos LGBTQIA+. Em outro módulo chamado Teologia para a Sexualidade, a ementa salienta os “gêneros como ideia de Deus e não um acidente da evolução”.

O Luz da Noite foi fundado em 2001 pela advogada cristã Débora Fonseca e Cunha, Húdson de Lima Pereira, Chrystine Pereira Viana e Lenildo Viana com foco na evangelização de travestis, prostitutas e garotos de programa.

No mesmo ano do lançamento, o Luz da Noite organizou um grande seminário sobre homossexualidade, reunindo algumas das principais lideranças da “cura gay” no Brasil. O evento foi realizado com a Exodus Brasil, vinculada à organização internacional evangélica Exodus Global Alliance.

A Exodus atuava como uma grande mobilizadora de igrejas, missionários, políticos e psicólogos para promover “terapias” de conversão sexual no Brasil, como mostrou uma série de reportagens da Pública. Embora a organização internacional tenha comunicado seu fechamento em 2013, depois de uma série de denúncias de abusos, ela continuou atuando em outros países, tendo grande foco nas operações da América Latina.

Uma das fundadoras brasileiras da Exodus, a psicóloga Rozângela Justino, que também foi coordenadora do Ministério Luz na Noite, teve seu registro cassado em 2022, por defender práticas de “cura gay”. Em 2019, ela chegou a participar de um encontro com a senadora Damares Alves (Republicanos-DF), enquanto a parlamentar ainda era ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos do governo Bolsonaro. Rozângela foi recebida como titular de um movimento de ex-gays que disputava a presidência do Conselho Federal de Psicologia.

A Exodus Brasil anunciou o encerramento de suas atividades em fevereiro de 2023, mas seus ex-diretores continuaram atuantes. Andréa Vargas, que representava a organização no Brasil, por exemplo, continua oferecendo cursos sobre sexualidade na internet. Ela defende que a pessoas homossexuais devem reprimir seus desejos para viver uma vida casta ou um relacionamento heterossexual, um discurso muito comum entre as organizações que atuam com esse tipo de prática.

A reportagem procurou Andréa, que não respondeu até a publicação.

Redes fortalecem grupos de “conversão”

As organizações que promovem com as “terapias” de conversão sexual no Brasil se conectam por serem lideradas pelas mesmas pessoas e também pela formação de parcerias, que ajudam a promover os conteúdos umas das outras. 

O ministério Luz Na Noite, por exemplo, tem parcerias com outros grupos que promovem “cura gay” e discursos transfóbicos no Brasil, como o Missões Avalanche, liderada por Andréa Vargas, a Jocum e a Primeira Igreja Batista de Jardim Camburi.

A Primeira Igreja Batista é responsável pelo programa Bússola de Sexualidade, do palestrante evangélico Saulo Navarro e tem a psicóloga Deuza Maria Avellar entre seus membros. Deuza é uma forte ativista do Movimento Ex-Gays do Brasil. Ela foi vice-líder na chapa que disputou a presidência do Conselho Federal de Psicologia, com Rozângela Justino, sendo recebida pela ex-ministra Damares Alves.

Outros grupos como o Movimento SER, liderado por David Riker, a Paz com Deus, de Willy Torresin, e o Ministério Calvário Sexualidade, de Juliana Ferron, são citados no relatório do projeto Global Contra o Ódio e o Extremismo, como ativas promotoras de “terapias” de conversão sexual na internet brasileira que estão em atividade, promovendo eventos, cursos e conteúdos on-line sobre o tema.

Muitas dessas organizações estão ligadas a grupos internacionais com atuação no Brasil, como a própria Exodus, a Joel 2:25 International, a Courage/Encourage International, a Brothers Road, e a NARTH (Association for Research and Therapy of Homosexuality, em português Associação para pesquisa e Terapia da Homosssexualidade).

Comentários

CBTF disse…
Essa prática também aumenta os suicídios. Recentemente teve uma famosa bolsonarista que postou nas redes sociais dizendo que a terapia não deu certo e logo depois se suicidou.

Post mais lidos nos últimos 7 dias

90 trechos da Bíblia que são exemplos de ódio e atrocidade

Prefeito de São Paulo veta a lei que criou o Dia do Orgulho Heterossexual

Kassab inicialmente disse que lei não era homofóbica

Canadenses vão à Justiça para que escola distribua livros ateus

Bento 16 associa união homossexual ao ateísmo

Papa passou a falar em "antropologia de fundo ateu" O papa Bento 16 (na caricatura) voltou, neste sábado (19), a criticar a união entre pessoas do mesmo sexo, e, desta vez, associou-a ao ateísmo. Ele disse que a teoria do gênero é “uma antropologia de fundo ateu”. Por essa teoria, a identidade sexual é uma construção da educação e meio ambiente, não sendo, portanto, determinada por diferenças genéticas. A referência do papa ao ateísmo soa forçada, porque muitos descrentes costumam afirmar que eles apenas não acreditam em divindades, não se podendo a priori se inferir nada mais deles além disso. Durante um encontro com católicos de diversos países, Bento 16 disse que os “cristãos devem dizer ‘não’ à teoria do gênero, e ‘sim’ à aliança entre homens e mulheres no casamento”. Afirmou que a Igreja defende a “dignidade e beleza do casamento” e não aceita “certas filosofias, como a do gênero, uma vez que a reciprocidade entre homens e mulheres é uma expressão da bel...

TJ impede que cidade gaste dinheiro com Marcha para Jesus

O TJ (Tribunal de Justiça) do Estado de São Paulo impediu pela segunda vez que a prefeitura de Santa Bárbara d’Oeste libera verba ou funcionários para a realização da Marcha para Jesus. Os organizadores desse evento da Igreja Renascer estavam pleiteando R$ 25 mil, além do apoio logístico da prefeitura. A cidade tem 180 mil habitantes e fica a 138 km de São Paulo. O prefeito é Mário Celso Heins (PDT). Nenhuma instância de governo pode ter gasto ou se envolver com atividades religiosas porque a Constituição determina que o Estado brasileiro é laico. Além disso, para o TJ, Marcha para Jesus não tem nenhuma ligação “com tradições históricas, culturas ou turísticas da cidade”, porque se trata de um evento “exclusivamente religioso”. Tweet Com informação do Liberal .  Justiça manda tirar Marcha para Jesus do calendário de Brasília. julho de 2011 Marcha para Jesus.      Religião no Estado laico.

Papa afirma que casamento gay ameaça o futuro da humanidade

Bento 16 disse que as crianças precisam de "ambiente adequado" O papa Bento 16 (na caricatura) disse que o casamento homossexual ameaça “o futuro da humanidade” porque as crianças precisam viver em "ambientes" adequados”, que são a “família baseada no casamento de um homem com uma mulher". Trata-se da manifestação mais contundente de Bento 16 contra a união homossexual. Ela foi feita ontem (9) durante um pronunciamento de ano novo a diplomatas no Vaticano. "Essa não é uma simples convenção social", disse o papa. "[Porque] as políticas que afetam a família ameaçam a dignidade humana.” O deputado Jean Wyllys (PSOL-RJ) ficou indignado com a declaração de Bento 16, que é, segundo ele, suspeito de ser simpático ao nazismo. "Ameaça ao futuro da humanidade são o fascismo, as guerras religiosas, a pedofilia e o abusos sexuais praticados por membros da Igreja e acobertados por ele mesmo", disse. Tweet Com informação...

Médico acusado de abuso passa seu primeiro aniversário na prisão

Roger Abdelmassih (reprodução acima), médico acusado de violentar pelo menos 56 pacientes, completou hoje (3) 66 anos de idade na cela 101 do pavilhão 2 da Penitenciária de Tremembé (SP). Foi o seu primeiro aniversário no cárcere. Filho de libaneses, ele nasceu em 1943 em São João da Boa Vista, cidade paulista hoje com 84 mil habitantes que fica a 223 km da capital. Até ser preso preventivamente no dia 17 de agosto, o especialista em reprodução humana assistida tinha prestígio entre os ricos e famosos, como Roberto Carlos, Hebe Camargo, Pelé e Gugu, que compareciam a eventos promovidos por ele. Neste sábado, a companhia de Abdelmassih não é tão rica nem famosa e, agora como o próprio médico, não passaria em um teste de popularidade. Ele convive em sua cela com um acusado de tráfico de drogas, um ex-delegado, um ex-agente da Polícia Federal e um ex-investigador da Polícia Civil. Em 15 metros quadrados, os quatros dispõem de três beliches, um vaso sanitário, uma pia, um ch...

Mara Maravilha diz que quem não paga dízimo rouba de Deus

Mara não quer  saber  o que o   pastor  faz com o dinheiro Eliamary Silva da Silveira (foto), 42, a apresentadora Mara Maravilha de programas infantis dos anos 80, disse que entrega à Igreja Universal todo o mês 10% do que ganha porque “quem não paga o dízimo rouba de Deus”. “Se o pastor vai fazer o certo ou o errado [com o dinheiro], isso não mais cabe a mim”, disse. Mara atualmente é cantora gospel e tem uma loja de produtos evangélicos. No auge de sua carreira, posou para a Playboy. Tornou-se evangélica aos 26 anos, após se livrar das drogas. O seu marido é também evangélico. A omissão de Mara sobre o que é feito com o dízimo é comum entre evangélicos das várias denominações. É como se os pastores pudessem se enriquecer com o dinheiro dos fiéis sem ter de prestar contas à lei dos homens e à de Deus. Carol Celico, 23, mulher do jogador Kaká, conseguiu superar essa alienação. Ela e o marido deixaram a Igreja Renascer em 2010 porque, entre out...

Polícia recebe denúncia anônima sobre paradeiro de Abdelmassih

O ex-médico fugitivo afirma ser inocente A Polícia Civil de São Paulo recebeu uma denúncia anônima sobre o paradeiro do ex-médico Roger Abdelmassih (foto), 68, especialista em fertilização in vitro condenado em 2010 em primeira instância a 278 anos de prisão por ter estuprado pacientes. O delegado Waldomiro Milanesi, da Divisão de Capturas, disse que a denúncia foi a primeira em quase 11 meses de  sumiço do médico. Ele afirmou à Folha de S.Paulo que as poucas pistas existentes até agora foram obtidas por seus policiais. O Ministério Público Estadual, que também investiga o desaparecimento de Abdelmassih, não recebeu uma única denúncia. Milanesi afirmou que a falta de denúncias demonstra que a “elite” da sociedade da qual Abdelmassih faz parte não está disposta a colaborar. "Quem eram as pessoas próximas e tinham contato com o Roger? Era uma elite muito mais longe da própria sociedade", disse. O delegado não forneceu detalhe da denúncia para não atrapalhar as ...