Pular para o conteúdo principal

Lembrando Primo Levi, sobrevivente do holocausto: 'Se existe Auschwitz, não existe Deus'

Dos vagões que chegavam dos guetos e dos campos de trânsito, os judeus eram enviados diretamente para as câmaras de gás


Wlodek Goldkorn
jornalista

Repubblica
jornal italiano

Quinze anos atrás, quando perguntado por que Auschwitz é sinônimo do Holocausto, Marek Edelman, o segundo no comando da revolta no gueto de Varsóvia respondeu: “Auschwitz não é sinônimo de nada, é o testemunho da extrema miséria do fascismo”.

Enquanto isso, a história foi em frente e a memória daquele local de extermínio, a meio caminho entre Cracóvia e Katowice, também passou por mais uma evolução.

O número de visitantes do antigo campo de concentração nazista está em constante crescimento; no ano passado, dois milhões e 300 mil pessoas quiseram tocar com as próprias mãos o horror, sentir a emoção que assalta o coração de quem olha para aquela área marcada pelas cinzas de pelo menos um milhão e 100 mil homens e mulheres, mortos nas câmaras de gás e cujos cadáveres, depois da remoção dos dentes de ouro, eram queimados em ritmo industrial em enormes fornos crematórios, construídos especialmente pelas indústrias alemãs.

O museu de Auschwitz-Birkenau é um destino cada vez mais procurado: um sinal de que essa memória é portadora de uma mensagem universal. E, no entanto, a intuição de Edelman continua sendo válida: a memória tem um lado puramente político e, portanto, partidário.

Este ano, depois de 75 anos, espaço de três gerações, desde que as tropas do Exército Vermelho, a caminho de Berlim, abriram os portões do campo de concentração para encontrar poucos milhares de sobreviventes, mais mortos que vivos (dezenas de milhares foram colocados pelos alemães em na marcha da morte em direção de outros campos de concentração), as celebrações consideradas centrais para esse evento são pelo menos duas. E polêmicas.

Restos mortais de Auschwitz

'Onde
 estava
 Deus?'

A primeira, na ordem cronológica, é realizada nesta quinta-feira em Jerusalém, no memorial Yad Vashem. A outra está prevista em Auschwitz, no dia 27. Na primeira estará ausente do presidente polonês Andrzej Duda, ofendido porque Vladimir Putin fala na capital de Israel (além dos representantes das potências vencedoras da Segunda Guerra Mundial, de Israel e da Alemanha), enquanto a ele não foi concedida a mesma honra.

Há uma disputa em andamento entre os dois países sobre a gênese daquele conflito. E o próprio diretor do Museu de Auschwitz, Piotr Cywinski, geralmente uma pessoa de bom senso, quis expressar sua preocupação e espanto com o Times of Israel pela tentativa (em sua opinião) de transferir o centro daquela memória, de Auschwitz precisamente, para outro lugar. Brutalmente, até a codificação da memória está se tornando cada vez mais uma questão de geopolítica e de alianças entre estados em um mundo fragmentado e nas mãos de soberanistas.

Mas, então, resta a questão: o que é Auschwitz? E, novamente, a resposta depende do contexto. O campo de concentração nasceu na primavera de 1940, o primeiro comandante foi Rudolf Höss (ele seria enforcado não muito longe de seu gabinete, em abril de 1947), os primeiros presos foram presos políticos poloneses. 

Depois, com a construção de Auschwitz II em Birkenau, em 1941, o local tornou-se palco do extermínio dos judeus. Segundo os dados do historiador polonês Dariusz Libionka: 439 mil judeus húngaros, 300 mil poloneses, 70 mil franceses e mais de 7.500 italianos. A maioria deles nem foi registrada.

Dos vagões que chegavam dos guetos e dos campos de trânsito, incluindo Fossoli, os judeus eram enviados diretamente para as câmaras de gás: os homens marchavam na esquerda, as mulheres na direita, as crianças ficavam com as mulheres, os bebês eram muitas vezes arrancados dos braços das mães na descida dos comboios e assassinados pelos SS com as próprias mãos.

Quando se fala de Auschwitz como uma “fábrica da morte”, não se deve esquecer o lado puramente sádico da prática do extermínio: os carrascos sentiam prazer com o sofrimento das vítimas. E a morte não era indolor. 

O museu atual foi fundado em 1947. E também a forma que foi dada à memória foi mudando ao longo dos anos. Entre os primeiros a querer relembrar os mortos, obviamente, estavam os judeus. Era um movimento quase espontâneo de artistas, intelectuais, ativistas políticos que haviam permanecido na Polônia. 

Depois tudo foi institucionalizado e prevaleceu uma memória que não tinha o destino dos judeus ao centro, mas seguia a ideia stalinista da “irmandade dos povos vítimas do nazismo” e, aliás, via no discurso sobre o Holocausto uma manifestação de um “nacionalismo do molde sionista”.

O Holocausto como paradigma da memória ocidental e como exemplo de niilismo radical, da epifania do mal, da inversão da Revelação do Sinai com seus dez mandamentos, pelo qual os carrascos estavam convencidos de que matar era um bem, é uma construção cultural relativamente recente e certamente necessária. 

O teólogo judeu André Neher falava do silêncio de Deus. O papa Francisco naquele local, visitado em 2016, quis ficar em silêncio. Só encontrou as palavras mais tarde, para perguntar: “Onde estava Deus”. 

Primo Levi [sobrevivente de Auschwitz] afirmava que “se existe Auschwitz, não existe Deus”. 

Mas talvez o ensinamento mais atual e laico seja ainda aquele de Levi: “Eu sei que os assassinos existiram e que os confundir com suas vítimas é uma doença moral, um precioso serviço prestado (voluntariamente ou não) aos negadores da verdade”.

Wlodek Goldkorn é jornalista polonês radicado na Itália. A tradução do texto é de Luisa Rabolini para IHU Online. O título original do texto é “Onde estava Deus?” Por que Auschwitz é o símbolo do mal".

Comentários

Post mais lidos nos últimos 7 dias

90 trechos da Bíblia que são exemplos de ódio e atrocidade

Ateu usa coador de macarrão como chapéu 'religioso' em foto oficial

Fundamentalismo de Feliciano é ‘opinião pessoal’, diz jornalista

Sheherazade não disse quais seriam as 'opiniões não pessoais' do deputado Rachel Sheherazade (foto), apresentadora do telejornal SBT Brasil, destacou na quarta-feira (20) que as afirmações de Marco Feliciano tidas como homofóbicas e racistas são apenas “opiniões pessoais”, o que pareceu ser, da parte da jornalista,  uma tentativa de atenuar o fundamentalismo cristão do pastor e deputado. Ficou subentendido, no comentário, que Feliciano tem também “opiniões não pessoais”, e seriam essas, e não aquelas, que valem quando o deputado preside a Comissão de Direitos Humanos e Minorias, da Câmara. Se assim for, Sheherazade deveria ter citado algumas das opiniões “não pessoais” do pastor-deputado, porque ninguém as conhece e seria interessante saber o que esse “outro” Feliciano pensa, por exemplo, do casamento gay. Em referência às críticas que Feliciano vem recebendo, ela disse que “não se pode confundir o pastor com o parlamentar”. A jornalista deveria mandar esse recado...

PMs de Cristo combatem violência com oração e jejum

Violência se agrava em SP, e os PMs evangélicos oram Houve um recrudescimento da violência na Grande São Paulo. Os homicídios cresceram e em menos de 24 horas, de anteontem para ontem, ocorreram pelo menos 20 assassinatos (incluindo o de policiais), o triplo da média diária de seis mortes por violência. Um grupo de PMs acredita que pode ajudar a combater a violência pedindo a intercessão divina. A Associação dos Policiais Militares Evangélicos do Estado de São Paulo, que é mais conhecida como PMs de Cristo, iniciou no dia 25 de outubro uma campanha de “52 dias de oração e jejum pela polícia e pela paz na cidade”, conforme diz o site da entidade. “Essa é a nossa nobre e divina missão. Vamos avante!” Um representante do comando da corporação participou do lançamento da campanha. Com o objetivo de dar assistência espiritual aos policiais, a associação PMs de Cristo foi fundada em 1992 sob a inspiração de Neemias, o personagem bíblico que teria sido o responsável por uma mobili...

Wyllys vai processar Feliciano por difamação em vídeo

Wyllys afirmou que pastor faz 'campanha nojenta' contra ele O deputado Jean Wyllys (PSOL-RJ), na foto, vai dar entrada na Justiça a uma representação criminal contra o pastor e deputado Marco Feliciano (PSC-SP) por causa de um vídeo com ataques aos defensores dos homossexuais.  O vídeo “Marco Feliciano Renuncia” de oito minutos (ver abaixo) foi postado na segunda-feira (18) por um assessor de Feliciano e rapidamente se espalhou pela rede social por dar a entender que o deputado tinha saído da presidência da Comissão dos Direitos Humanos e Minorias, da Câmara. Mas a “renúncia” do pastor, no caso, diz o vídeo em referência aos protestos contra o deputado, é à “privacidade” e às “noites de paz e sono tranquilo”, para cuidar dos direitos humanos. O vídeo termina com o pastor com cara de choro, colocando-se como vítima. Feliciano admitiu que o responsável pelo vídeo é um assessor seu, mas acrescentou que desconhecia o conteúdo. Wyllys afirmou que o vídeo faz parte de uma...

Embrião tem alma, dizem antiabortistas. Mas existe alma?

por Hélio Schwartsman para Folha  Se a alma existe, ela se instala  logo após a fecundação? Depois do festival de hipocrisia que foi a última campanha presidencial, com os principais candidatos se esforçando para posar de coroinhas, é quase um bálsamo ver uma autoridade pública assumindo claramente posição pró-aborto, como o fez a nova ministra das Mulheres, Eleonora Menicucci. E, como ela própria defende que a questão seja debatida, dou hoje minha modesta contribuição. O argumento central dos antiabortistas é o de que a vida tem início na concepção e deve desde então ser protegida. Para essa posição tornar-se coerente, é necessário introduzir um dogma de fé: o homem é composto de corpo e alma. E a Igreja Católica inclina-se a afirmar que esta é instilada no novo ser no momento da concepção. Sem isso, a vida humana não seria diferente da de um animal e o instante da fusão dos gametas não teria nada de especial. O problema é que ninguém jamais demonstrou que ...

Defensores do Estado laico são ‘intolerantes’, diz apresentadora

Evangélico quebrou centro espírita para desafiar o diabo

"Peguei aquelas imagens e comei a quebrar" O evangélico Afonso Henrique Alves , 25, da Igreja Geração Jesus Cristo, postou vídeo [ver abaixo] no Youtube no qual diz que depredou um centro espírita em junho do ano passado para desafiar o diabo. “Eu peguei todas aquelas imagens e comecei a quebrar...” [foto acima] Na sexta (19), ele foi preso por intolerância religiosa e por apologia do ódio. “Ele é um criminoso que usa a internet para obter discípulos”, disse a delegada Helen Sardenberg, depois de prendê-lo ao término de um culto no Morro do Pinto, na Zona Portuária do Rio. Também foi preso o pastor Tupirani da Hora Lores, 43. Foi a primeira prisão no país por causa de intolerância religiosa, segundo a delegada. Como 'discípulo da verdade', Alves afirma no vídeo coisas como: centro espírito é lugar de invocação do diabo, todo pai de santo é homossexual, a imprensa e a polícia estão a serviço do demônio, na Rede Globo existe um monte de macumbeiros, etc. A...

Físico afirma que cientistas só podem pensar na existência de Deus como hipótese

Presas ameaçam matar empresária acusada de torturar menina

As presas da Casa de Prisão Provisória, em Aparecida de Goiânia, estão ameaçando de morte “o tempo todo” a empresária Sílvia Calabresi Lima (foto), acusada de torturar a menina L.R.S., de 12 anos. “As presas não toleram esse crime”, disse o advogado dela, Darlan Alves Ferreira. As ameaças incluem envenenamento da água e comida de Sílvia. Apesar disso, até anteontem a empresária queria sair do isolamento e ser transferida para ala onde há cerca de 120 mulheres. A reação dos internautas também de sido de fúria. Nos blogs, sites de notícias e Youtube, há quem peça pena de morte para a empresária. Muitos dizem que, se pudessem, torturariam a Sílvia da mesma forma que ela o fez com a menina. Também circulam na internet o endereço do casal, os números de telefone e o e-mail do filho mais velho, o Thiago, que é uma das seis pessoas que a polícia vai indiciar - no caso dele, por omissão de socorro. Embora a polícia tenha se procedido de maneira exemplar nesse caso, tem muita gente querendo fa...