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Evangélicos quebram hegemonia dos católicos nas decisões do Estado

por Roberto Romano
para o Estado de S.Paulo

As incertezas da vida brasileira, no instante em que assume um governo incerto no plano religioso, exigem cautela. Com Bolsonaro quebra-se o elo entre ordem eclesial e sociedade civil. Desde 1500 o catolicismo teve hegemonia nos assuntos do Estado. Ainda agora majoritário, ele foi decisivo no controle ético e político do Brasil. A partir do século 20 sua importância diminui e hoje ele enfrenta movimentos evangélicos que aplicam, para se expandir, estratégias do moderno marketing. Mas o modelo de tal proselitismo foi a Propaganda Fidei (1622, obra jesuítica).

Nossa terra não gerou a República sonhada pelos que, desde a colônia, lutam por um país livre e laico. Sai o mando teológico-político católico, igual pretensão protestante bate às portas. Inglaterra, França, Estados Unidos, parte dos países civilizados definiram as balizas da liberdade ao separar Igreja e Estado. Aqui a fachada sobrenatural integra governos à esquerda ou direita.

Para garantir semelhante dinâmica o catolicismo foi essencial. Desde o Renascimento a Igreja se coloca contra os regimes de liberdade e democracia. Ao reagir à Reforma ela definiu uma pauta contra o âmbito secular. Trento marcou a plataforma reativa diante do mundo moderno, algo que permaneceu até o Concílio Vaticano II. Uma idiossincrasia da forma romana foi o veto à modernidade e ao liberalismo. 

1.500 anos depois da primeira missa,
 católicos ainda são maioria, mas
passam a dividir com os evangélicos
a influência nas decisões de Estado

Até o século 20 cátedras universitárias católicas exigiam dos professores o juramento contra as ideias laicas. Dizia Pio X no Motu Proprio Praestantia: “Os modernistas são os piores inimigos da Igreja, o modernismo é reunião de todas as heresias” (1907). Desde o Syllabus (1864) a guerra contra os “erros” do Estado e da sociedade civil é movida pela Santa Sé, que exige adesão incondicional do clero e dos leigos. O juramento contra as doutrinas liberais modernas encontra-se no Motu Proprio Sacrorum Antistitum (1910), do mesmo Pio X.

Já na era das Luzes, Clemente XIII escreveu um rascunho de encíclica (Quantopere Dominus Jesus), onde reafirmava que o desejo de verdade é natural no homem. Mas tal anelo “o Espírito Santo quer refrear, como prova o Eclesiastes”.

 O pontífice ordena que os fiéis se abstenham de pesquisas sobre o saber científico. Tal mote atravessa o ensino da Igreja do Index Librorum Prohibitorum (1559, só abolido em 1966) aos acordos com Mussolini e Hitler. O alvo maior foi atenuar a prática política autônoma dos católicos. A Concordata com o governo hitlerista impediu a ação política das forças religiosas. Mesmo os conservadores do Zentrum tiveram diminuída, pelo Vaticano, sua ojeriza ao totalitarismo.

Os liberais católicos da Alemanha e do mundo, desde o século 19, são derrotados pelo setor ultramontano. Este reforça o mando absoluto do papa e gera o dogma da infalibilidade, o que impede todo diálogo ou ação conjunta de católicos e liberais. No Brasil, Rui Barbosa luta em prol do Estado laico, escreve um prefácio (mais longo do que o livro original) ao volume de Johann Joseph Ignaz Dollinger, O Papa e o Concílio, 1877.

O civilista desenvolve as bases jurídicas que separam os campos religioso e político. Ele antecipa a Constituição de 1891, que ordena: “Todos os indivíduos e confissões religiosas podem exercer publica e livremente o seu culto, associando-se para esse fim e adquirindo bens, observadas as disposições do direito comum (...). A República só reconhece o casamento civil, cuja celebração será gratuita (...). Os cemitérios terão caráter secular e serão administrados pela autoridade municipal, ficando livre a todos os cultos religiosos a prática dos respectivos ritos em relação aos seus crentes, desde que não ofendam a moral pública e as leis. (...). Será leigo o ensino ministrado nos estabelecimentos públicos. (...) Nenhum culto ou igreja gozará de subvenção oficial, nem terá relações de dependência ou aliança com o Governo da União, ou o dos Estados”.

Para notar a diferença entre o afastado na Carta e as formas institucionais anteriores, tomemos a Constituição de 1824: “A religião católica apostólica romana continuará a ser a religião do Império. Todas as outras religiões serão permitidas com seu culto doméstico ou particular, em casas para isso destinadas, sem forma alguma exterior de templo” (citado por F. S. L. Azevedo Ferreira: A liberdade religiosa nas Constituições brasileiras e o desenvolvimento da Igreja Protestante). Cemitérios abertos a todos (só aos católicos eram eles reservados), educação laica (a religião omitida dos bancos escolares).

 A Igreja, antes base do poder, é reduzida à forma privada. As pressões católicas para retomar o status anterior à Carta de 1891 levaram-na a apoiar a ditadura Vargas, na qual obteve vitórias. A presença católica na educação foi estratégica.

E segue sob Getúlio a luta contra o modernismo, o liberalismo, o protestantismo e outros ismos odiosos à hierarquia. E logo as cruzadas: da boa imprensa, do bom cinema, da LEC, a Liga Eleitoral Católica, a reunião de “autoridades civis, militares, eclesiásticas”.

 Em congressos eucarísticos a Igreja exige privilégios (Romualdo Dias, Imagens de Ordem, a doutrina católica sobre autoridade no Brasil, 1922-1933). Como a França, o Brasil é consagrado à soberania espiritual com o Cristo Redentor. Com Vargas brotam as censuras, os processos torcionários, os exílios (os administradores do jornal O Estado de S. Paulo passam por eles), os atentados aos direitos humanos (Sobral Pinto evoca a lei de proteção dos animais em defesa de Prestes). Tais vilipêndios escapam à atenção católica. Importa vencer a modernidade, o liberalismo, o socialismo.

Hoje o país está perto de nova aliança entre sacerdotes e políticos. O presidente eleito proclama não sermos um Estado laico, mas cristão. Importa recordar que as sementes teológico-políticas foram disseminadas pela Igreja Católica. Os evangélicos aproveitam o solo adubado, em séculos, pelos integristas, que sorvem o próprio remédio aplicado por eles à vida nacional.

Roberto Romano é professor da Unicamp.




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