Pular para o conteúdo principal

Por que tentar criminalizar a 'cristobofia' é uma estupidez

por Carlos Orsini
para Amálgama

Desenho de Millôr
Já na década de 60, carolas
fizeram campanha contra
 'Histórias do Paraíso', de Millôr
 
Então, né, parece que nosso Legislativo anda brincando com a ideia de votar um projeto de lei contra a “cristofobia”, em reação à brilhante – e digo isso sem ironia, com verdadeira admiração – performance da atriz transexual Viviany Beleboni na Parada Gay de São Paulo.

A incapacidade dos santarrões brasileiros de engolir a crítica ou a releitura simbólica de seus mitos, sem partir para alguma forma de bullying, é um traço atávico e histórico, que teve um de seus pontos altos na perseguição promovida por “carolas do interior” à Verdadeira História do Paraíso, de Millôr Fernandes, na década de 60.

O uso do aparato estatal nesse bullying também não é novo. Basta lembrar a intensa pressão católica que resultou, nas últimas décadas, em ações como o veto presidencial ao filme A”, de Jean Luc-Goddard, em 1986; na censura do Banco do Brasil à obra “Desenhando com Terços”, da artista plástica Márcia X, em 1995; e da decisão judicial de 2008 que proibiu a revista Playboy de reutilizar, para todo o sempre, as fotos em que a atriz Carol Castro aparece nua segurando um rosário.

Mais recentemente, uma tentativa (de novo, de inspiração católica) de encarcerar o diretor de teatro José Celso Martinez Corrêa não prosperou, o que pode ser causa de otimismo, mas também pode ser apenas um ponto excepcional, fora da longa curva histórica de subserviência do Estado brasileiro aos ditames do púlpito. Basta lembrar que o Brasil é uma das poucas democracias ditas laicas que mantém uma lei que criminaliza a blasfêmia (artigo 208 do Código Penal, que entre outras coisas prevê punição para o ato de “vilipendiar publicamente ato ou objeto de culto religioso”).

As novidades, no caso da “cristofobia”, são duas: primeiro, o fato de a proposta partir de um deputado, Eduardo Cunha, identificado com a bancada evangélica, o que sugere que essas denominações já se sentem fortes o bastante para tentar manipular os atos e o próprio caráter do Estado brasileiro a partir das entranhas do sistema, prerrogativa que, historicamente, era exclusividade da fé romana.

Nesse aspecto, será curioso ver como uma eventual lei da “cristofobia” tratará o esporte, cada vez mais popular entre evangélicos, de chutar imagens de santos católicos pelas ruas. Será o STF chamado a decidir sobre a heresia iconoclasta e se o culto católico dos santos é legitimamente cristão?

A segunda novidade é a apropriação, pelos autoproclamados representantes de um grupo majoritário e poderoso – os cristãos brasileiros – de um discurso típico de minorias perseguidas e oprimidas, o da “fobia”, o que dá à situação toda um ar profundo de escárnio.

Afinal, desconhecem-se, no Brasil, casos de políticos cristãos constrangidos pela opinião pública a esconder suas opiniões religiosas a fim de não sofrer prejuízos eleitorais, por exemplo. Sugestão de experimento: ponha-se na Avenida Paulista, numa tarde qualquer, um pregador de Bíblia em mãos, zurrando um sermão sobre o fim dos tempos, e um par de homossexuais trocando carícias discretas, e veja-se quem atrairá mais linchadores.

Esse descompasso com a realidade, no entanto, tem precedente na mesma matriz cultural de onde veio o cristianismo evangélico neopentecostal, os Estados Unidos da América. Há anos que cristãos conservadores americanos gemem e rangem os dentes por causa de uma suposta “Guerra ao Natal” – a ideia de que desejar “Boas Festas” em vez de “Feliz Natal” é, de algum modo, preconceituosa e parte de uma articulação ampla contra a civilização ocidental.

Se a filial brasileira vier a seguir a matriz norte-americana de perto, o próximo passo provavelmente será a tentativa de elevar o tema da “cristofobia” ao status de pânico moral.

Um pânico moral, na definição da Rational Wiki, é “um pânico público em torno de uma questão considerada uma ameaça às, ou chocante para as, sensibilidades da sociedade ‘decente’. Isto é frequentemente incitado por reportagens seletivas da mídia e relatos exagerados de ‘empresários morais’, uma categoria que inclui políticos em ascensão e ativistas em busca de uma causa”.

Pânicos morais tendem a focar-se em “diabos populares”, uma imagem estereotipada e caricatural de alguma minoria que se torna o bode expiatório dos males consubstanciados no pânico. O diabo popular não é uma pessoa, é uma espécie de gabarito que se aplica a indivíduos de uma categoria. O demônio da “cristofobia” está ainda em construção, mas é bem provável que venha a ser gay, ateu e uma ameaça para as criancinhas. A ver veremos.

Uma questão incômoda, mas que precisa ser encarada, é a de até que ponto o uso de estratégias de interdição de discurso e de criminalização da ofensa por grupos minoritários não ajudou a pavimentar o caminho para que toda essa chacota da “cristofobia” viesse a ter, se não legitimidade real, viabilidade retórica e tração política.

As pobres almas que tiverem a paciência de ler o que já escrevi sobre liberdade de expressão (exemplos estão aquiaqui) saberão que sou um quase-absolutista: o direito de informar, satirizar, escarnecer, criticar, xingar, opinar e ridicularizar deve ser garantido sem peias. As únicas coisas que moderam meu absolutismo (e daí o “quase”) são as restrições clássicas de Stuart Mill e Oliver Wendell Holmes contra “gritar fogo num teatro lotado”, contra a incitação direta ao crime, contra a calúnia e contra a difamação mentirosa.

Essa posição não é romântica ou dogmática, mas parte do reconhecimento de três simples fatos. O primeiro é o de que o ser humano é um animal profundamente falível. Todo mundo pode estar errado, portanto a pluralidade de pontos de vista é necessária para balizar nossas crenças e moderar nossa arrogância.

O segundo é que a liberdade de expressão é uma liberdade negocial: meu direito de questionar as suas crenças está predicado no seu direito de questionar as minhas. Se eu posso dizer que o deus da Bíblia é um ídolo sanguinário da Era do Bronze, o Edir Macedo deve poder dizer que os orixás são demônios (e que cada um apresente as evidências de seu caso). Ou, como alguém já disse, o preço da arte é a pornografia: a lei não deve arbitrar questões de opinião ou de bom gosto.

Numa troca assim, há sempre o risco de nos tornarmos ofensivos, mas essas coisas deveriam ser vistas como falta de cortesia e de educação, não como crimes. Situações assimétricas – onde um dos lados tem um megafone, e o outro é rouco – devem ser tratadas com base em direito de resposta, não em interdição e censura.

O terceiro deriva do segundo: “ofensivo” é, no limite, um conceito vago, uma espada de fio duplo, e a história mostra que seu uso é um daqueles casos em que o apelo ao argumento, geralmente tido como falacioso, da ladeira escorregadia – se admitirmos “X” hoje, depois de amanhã estaremos em “Z” – se justifica: o índice da ofensa é a subjetividade do ofendido, e no limite tudo é potencialmente ofensivo para alguém. Se um grupo fraco legitima o uso do aparato estatal para coibir ofensas percebidas contra si, é apenas lógico imaginar que os fortes logo darão um jeito de se apropriar desse instrumento. E tome “cristofobia” na cabeça.

Carlos Orsini foi editor de Ciência do site do Estadão e atualmente é repórter do Jornal da Unicamp e colunista da revista Galileu. 





Conar cede a religiosos e veta Jesus de anúncio da Red Bull

Post mais lidos nos últimos 7 dias

90 trechos da Bíblia que são exemplos de ódio e atrocidade

Ateu usa coador de macarrão como chapéu 'religioso' em foto oficial

Fundamentalismo de Feliciano é ‘opinião pessoal’, diz jornalista

Sheherazade não disse quais seriam as 'opiniões não pessoais' do deputado Rachel Sheherazade (foto), apresentadora do telejornal SBT Brasil, destacou na quarta-feira (20) que as afirmações de Marco Feliciano tidas como homofóbicas e racistas são apenas “opiniões pessoais”, o que pareceu ser, da parte da jornalista,  uma tentativa de atenuar o fundamentalismo cristão do pastor e deputado. Ficou subentendido, no comentário, que Feliciano tem também “opiniões não pessoais”, e seriam essas, e não aquelas, que valem quando o deputado preside a Comissão de Direitos Humanos e Minorias, da Câmara. Se assim for, Sheherazade deveria ter citado algumas das opiniões “não pessoais” do pastor-deputado, porque ninguém as conhece e seria interessante saber o que esse “outro” Feliciano pensa, por exemplo, do casamento gay. Em referência às críticas que Feliciano vem recebendo, ela disse que “não se pode confundir o pastor com o parlamentar”. A jornalista deveria mandar esse recado...

PMs de Cristo combatem violência com oração e jejum

Violência se agrava em SP, e os PMs evangélicos oram Houve um recrudescimento da violência na Grande São Paulo. Os homicídios cresceram e em menos de 24 horas, de anteontem para ontem, ocorreram pelo menos 20 assassinatos (incluindo o de policiais), o triplo da média diária de seis mortes por violência. Um grupo de PMs acredita que pode ajudar a combater a violência pedindo a intercessão divina. A Associação dos Policiais Militares Evangélicos do Estado de São Paulo, que é mais conhecida como PMs de Cristo, iniciou no dia 25 de outubro uma campanha de “52 dias de oração e jejum pela polícia e pela paz na cidade”, conforme diz o site da entidade. “Essa é a nossa nobre e divina missão. Vamos avante!” Um representante do comando da corporação participou do lançamento da campanha. Com o objetivo de dar assistência espiritual aos policiais, a associação PMs de Cristo foi fundada em 1992 sob a inspiração de Neemias, o personagem bíblico que teria sido o responsável por uma mobili...

Wyllys vai processar Feliciano por difamação em vídeo

Wyllys afirmou que pastor faz 'campanha nojenta' contra ele O deputado Jean Wyllys (PSOL-RJ), na foto, vai dar entrada na Justiça a uma representação criminal contra o pastor e deputado Marco Feliciano (PSC-SP) por causa de um vídeo com ataques aos defensores dos homossexuais.  O vídeo “Marco Feliciano Renuncia” de oito minutos (ver abaixo) foi postado na segunda-feira (18) por um assessor de Feliciano e rapidamente se espalhou pela rede social por dar a entender que o deputado tinha saído da presidência da Comissão dos Direitos Humanos e Minorias, da Câmara. Mas a “renúncia” do pastor, no caso, diz o vídeo em referência aos protestos contra o deputado, é à “privacidade” e às “noites de paz e sono tranquilo”, para cuidar dos direitos humanos. O vídeo termina com o pastor com cara de choro, colocando-se como vítima. Feliciano admitiu que o responsável pelo vídeo é um assessor seu, mas acrescentou que desconhecia o conteúdo. Wyllys afirmou que o vídeo faz parte de uma...

Embrião tem alma, dizem antiabortistas. Mas existe alma?

por Hélio Schwartsman para Folha  Se a alma existe, ela se instala  logo após a fecundação? Depois do festival de hipocrisia que foi a última campanha presidencial, com os principais candidatos se esforçando para posar de coroinhas, é quase um bálsamo ver uma autoridade pública assumindo claramente posição pró-aborto, como o fez a nova ministra das Mulheres, Eleonora Menicucci. E, como ela própria defende que a questão seja debatida, dou hoje minha modesta contribuição. O argumento central dos antiabortistas é o de que a vida tem início na concepção e deve desde então ser protegida. Para essa posição tornar-se coerente, é necessário introduzir um dogma de fé: o homem é composto de corpo e alma. E a Igreja Católica inclina-se a afirmar que esta é instilada no novo ser no momento da concepção. Sem isso, a vida humana não seria diferente da de um animal e o instante da fusão dos gametas não teria nada de especial. O problema é que ninguém jamais demonstrou que ...

Defensores do Estado laico são ‘intolerantes’, diz apresentadora

Evangélico quebrou centro espírita para desafiar o diabo

"Peguei aquelas imagens e comei a quebrar" O evangélico Afonso Henrique Alves , 25, da Igreja Geração Jesus Cristo, postou vídeo [ver abaixo] no Youtube no qual diz que depredou um centro espírita em junho do ano passado para desafiar o diabo. “Eu peguei todas aquelas imagens e comecei a quebrar...” [foto acima] Na sexta (19), ele foi preso por intolerância religiosa e por apologia do ódio. “Ele é um criminoso que usa a internet para obter discípulos”, disse a delegada Helen Sardenberg, depois de prendê-lo ao término de um culto no Morro do Pinto, na Zona Portuária do Rio. Também foi preso o pastor Tupirani da Hora Lores, 43. Foi a primeira prisão no país por causa de intolerância religiosa, segundo a delegada. Como 'discípulo da verdade', Alves afirma no vídeo coisas como: centro espírito é lugar de invocação do diabo, todo pai de santo é homossexual, a imprensa e a polícia estão a serviço do demônio, na Rede Globo existe um monte de macumbeiros, etc. A...

Físico afirma que cientistas só podem pensar na existência de Deus como hipótese

Apoio de âncora a Feliciano constrange jornalistas do SBT

Opiniões da jornalista são rejeitadas pelos seus colegas O apoio velado que a âncora Rachel Sheherazade (foto) manifestou ao pastor-deputado Marco Feliciano (PSC-SP)  deixou jornalistas e funcionários do "SBT Brasil" constrangidos. O clima na redação do telejornal é de “indignação”, segundo a Folha de S.Paulo. Na semana passada, Sheherazade minimizou a importância das afirmações tidas como homofóbicas e racistas de Feliciano, embora ele seja o presidente da Comissão de Direitos Humanos da Câmara, dizendo tratar-se apenas de “opinião pessoal”. A Folha informou que os funcionários do telejornal estariam elaborando um abaixo assinado intitulado “Rachel não nos representa” para ser encaminhado à direção da emissora. Marcelo Parada, diretor de jornalismo do SBT, afirmou não saber nada sobre o abaixo assinado e acrescentou que os âncoras têm liberdade para manifestar sua opinião. Apesar da rejeição de seus colegas, Sheherazade se sente segura no cargo porque ela cont...