Pular para o conteúdo principal

Classe média exalta sua 'dignidade', mas ninguém sobrevive sendo digno

Título original: Flagelo da classe média

por Luiz Felipe Pondé para Folha

Não sou bem resolvido, tenho muitos preconceitos. Um deles é contra a classe média.

Além disso, sou cheio de maus hábitos: charutos, cachimbos, álcool, comida com sangue e não ando de bike. Para mim, o vício e a culpa são o centro da vida moral.

Enfim, não sou uma pessoa muito saudável. Por isso, não sou de confiança. Mas não pense que sofro do fígado; sou apenas um fraco.

Tenho uma amiga, muito inteligente, que costuma me chamar de "flagelo da classe média".

Quando falo "classe média", não olhe para seu saldo bancário, olhe para dentro de si mesmo. Classe média é um estado de espírito, e não apenas uma "alíquota" do imposto de renda ou o tipo de cartão de crédito que você tem.

Uma das marcas da classe média é pensar que, quando se fala de classe média, pensa-se essencialmente em saldo bancário.

Você pode ter muita grana e pensar como classe média, quer ver? Vou dar um exemplo de um surto de classe média em alguém que não era da classe média.

O sociólogo húngaro radicado na Inglaterra Frank Furedi, em seu livro "Therapy Culture", comenta como a Lady Di (morta tragicamente em 1997), a "princesa da classe média inglesa" ou a "princesa do povo", lamentou para a mídia o fato de seu então marido, príncipe Charles (herdeiro do trono da Inglaterra), ter uma amante.

Podemos imaginar uma mulher do East End londrino se sentindo irmã da então princesa porque ambas sofreriam da mesma maldição: a infidelidade em um casamento infeliz. Choravam juntas, uma na frente da TV, outra na frente das câmeras.

Lady Di nunca entendeu o que é ser da aristocracia, confundiu-se com a classe média e seus anseios de que casamento, amor e felicidade sejam uma coisa só.

Mas não há muito o que fazer com relação à realeza hoje em dia, porque vivemos no mundo da opinião pública e "ter opinião sobre tudo" é um fetiche típico do espírito de classe média. Alexis de Tocqueville (1805-1859) já dizia que a democracia é tagarela.

Quando se depende da opinião pública já não há mais saída para escapar das "redes sociais" típicas do mundo contemporâneo, no qual as pessoas têm opinião sobre tudo a partir de seus apartamentos de dois quartos com lavabo.

Basta ver o tanto de bobagens que se fala no Facebook, tipo "fui ao banheiro" ou "vomitei". Além de "revoluções diferenciadas", as redes sociais potencializam a banalidade humana.

Quando a classe média sonha, ela sempre pensa como Cinderela. "Querer ser feliz" é coisa de classe média.

Você pode ser milionário e ter cabeça de classe média, por exemplo, quando faz algo preocupado com o que os outros vão pensar. Nada mais típico do espírito da classe média do que citar um restaurante numa ruazinha em Paris para mostrar que conhece a cidade.

Bom-mocismo social
é o novo puritanismo
hipócrita do século

Por outro lado, você pode ser uma pessoa que "batalha" pela vida e não pensar como Cinderela. Basta não criar de si mesmo uma imagem de "reduto do bem e da honestidade". O bom-mocismo social é o novo puritanismo hipócrita do início deste século.

Uma clara semelhança de espírito entre "aristocracia" e as classes sociais mais pobres (aparente absurdo) é a pouca ilusão com relação à hipocrisia social, substância da moral pública.

A primeira porque está acima da hipocrisia social (não precisa dela porque tem poder), e a segunda porque está abaixo da mesma hipocrisia social (não pode bancar a hipocrisia porque hipocrisia é um pequeno luxo).

O que caracteriza o espírito da classe média é pensar mais de si mesma do que ela é. Já que não tem nada, mas não morre de fome, fabrica de si mesma uma história de grandeza que não existe.

Por exemplo, inventa para si mesma uma "história de dignidade familiar", quando ninguém sobrevive sendo "digno", acha que educa bem seus filhos sempre "brilhantes", calcula cada proteína que come, num movimento de ganância travestido de preocupação com a vida, diz coisas como "não minto", quando, sabemos, a vida se afoga em mentiras necessárias à própria vida.

A classe média adora ter uma família de pobres como "amigos" para exibir por aí. Enfim, a classe média sofre de avareza espiritual.

> A verdade é que todos babamos em silêncio por dinheiro e sucesso.
março de 2011

> Artigos de Luiz Felipe Pondé.

Comentários

Anônimo disse…
Pondé é a reencarnação de Schopenhauer, nota -se perfeitamente a semelhança!
Anônimo disse…
Queria que Pondé fosse o meu orientador de Mestrado!
Anônimo disse…
Eu como cidadão diferenciado que sou, não discuto esses assuntos...
Anônimo disse…
Não tenho opinião formada sobre esse tema. Preciso meditar um pouco mais. Vou ao shopping.
Anônimo disse…
Adoro ler os textos do Pondé. Eu me sinto tão bem quando malho na academia, como verduras que nem o Popeye, me sinto constrangido ao fumar meus cigarros e divulgo videos no Youtube para ajudar na causa pelas crianças em Uganda.

Daí vejo que sou podre. Que mesmo que eu vá de verdade pra Uganda, como tenho planejado, talvez eu seja só um pouco menos Podre. Porque eu me movo pela culpa.

Se Deus existe ele cagou no molde da nossa criação. É muito dificil esse planeta, sabe? Dá muito trabalho ter dignidade num mundo que por si só, não é digno.

Preciso comprar frutas e ir na farmacia!
Anônimo disse…
DIZEMOS AMAR A NÓS MESMOS E AO PRÓXIMO NA MESMA MEDIDA. MENTIRA: NÃO ACEITAMO-NOS COMO SOMOS MUITO MENOS AOS OUTROS.Ao olhar o passado, geralmente nos odiamos e também detestamos aqueles com quem por identificação nos associamos ao que já fomos: frágeis, vulneráveis, enfrentando adversidades, poupando economias, juntando trocadinhos...para conseguir, conquistar, obter, comprar. Os pobres nos assustam. E dizemos que amamos os pobres, mas os odiamos, principalmente quando já fomos pobres no passado. É óbvio que essa classe média que Pondé critica é a ALTA, que impõe seu estilo de vida e sua ideologia à que está logo abaixo e copia-a: a classe média MÉDIA de verdade. A classe média também JÁ FOI EMERGENTE um dia, aproximadamente na época do milagre econômico dos 50-70,e tem essa perspicácia de avaliar economicamente os tipos sociais, e imediatamente, num cálculo infinitesimal de nonosegundos, rejeitá-los, porque são pobres. Eu tenho uma irmã assim e é superengraçado ver como ela assume uma invisibilidade no olhar "pra não ferir a pessoa"; ao mesmo tempo, já julgou-a dos pés à cabeça, da tinta do cabelo ao bico do sapato, é inacreditável. Às vezes ouço também as justificativas dela, em pedir-nos todos ajuda pra um primo pobre, uma "parenta" pobre; dos quais depois se queixa, invariavelmente pelo ressentimento pós-ajuda, sentindo-se "usada", "explorada": pela mesma dependência que incentiva. Nós somos assim, já disse alguém, porque assim nos moldaram. Somos todos hipócritas e gostamos de posar de bonzinhos, de santinhos. Odiamos a pobreza, porque ela representa a dificuldade, o passado de adversidade que muitas vezes se venceu mas não se conseguiu superar. Odiamos os pobres porque eles representam uma ameaça do retorno...será que um dia poderei voltar lá? Seja este retorno a favela, a cidade do interior, a vida ordinária, as relações ordinárias, o emprego medíocre, a falta de autodefesa, o bullying, o assédio moral e o abuso, ou a prostituição sexual; qualquer ameaça à nossa ilusão de fortaleza inexpugnável e triunfo absoluto e assegurado, território definitivamente conquistado. Basta ver como tratamos os territórios do coletivo, os espaços públicos, seja a rua , a Universidade, a praça; pra aparecermos como as feras individualistas negadas e contidas que somos. Queremos chegar primeiro e garantir a não chegada do outro. Espaço público pra nós é território de ninguém. Qual a razão? Porque não amamos o outro coisa nenhuma, a imagem ruim que temos dele é nossa autoconsciência da invisível maldade, a desconfiança própria que nos torna inconfiáveis e leva-nos a desconfiarmos de todos. Pondé não é pessimista como Schoppenhauer, porque o recluso alemão era um misantropo e autodegredado pela inapetência autoconfessada para o amor e as mulheres. Pondé tampouco é um realista, no sentido pessimista que se dá ao conceito. Prefiro pensar que ele é um idealista não-romântico, um diletante da crítica cáustica e verdade ácida, mas sob a verve humorística e provocadora, por isso mesmo prazerosa. Não venham agora os patrulhadores aspartamizarem Pondé, nem adoçá-lo, pelo amor de "quem" vocês acreditam...Deixem-nos o travo amargo da contradição, que como um bom café sertanejo, ou o sumo acre de uma fruta agreste, tem por isso mesmo seu próprio e saboroso paladar.
Ricardo disse…
Quando li esse texto, tive a impressão de já ter lido algo parecido, em algum outro lugar. Depois de muito matutar consegui me lembrar: foi no livro "Breviário de Decomposição" de Emil Cioran, onde há o seguinte trecho:

"Entre os favorecidos da fortuna e os esfarrapados circulam esses esfomeados honoráveis, explorados pelo fausto e pelos andrajos, saqueados por aqueles que, tendo horror ao trabalho, instalam-se, segundo sua sorte ou vocação, no salão ou na rua. E assim avança a humanidade: com alguns ricos, com alguns mendigos – e com todos os seus pobres..."

Não sei se Pondé o tinha em mente quando escreveu sua coluna, mas sei que ele é (ou foi) leitor de Cioran. O que hoje ele chama de classe média eram os "pobres" ou melhor, "esfomeados honoráveis" de Cioran.
Áurea Barbosa disse…
Eu sou tipica e mediocremente classe média: toda vez que essa tal é citada na mídia eu fico fazendo cálculos para ver se me enquadro.E, depois de tanto especular, descobri uma coisa duplamente horrível: além de pobre economicamente eu penso como se fosse classe média.
Nathan disse…
sim!
por isso, é fácil concluir que até o estado-de-espírito virou moeda... na verdade, tornou-se a principal moeda, a principal ENGRENAGEM do Sistema Capitalista. Sistema este que reifica tudo que é humano, para transformar em NÚMERO... Reifica o espiritual, para torná-lo "real", "visível", material...
Por isso, ouso dizer que vivemos a era Hiper-Capitalista. Onde a economia é movida não pelo princípio de necessidade, ou de poupança... mas sim pelo princípio da insatisfação, da impaciência, da inveja, do orgulho, da contenda, da formação de facções (estilos-de-vida, tribos urbanas), do individualismo, da soberba e da satisfação imediata de prazeres libidinais... Estas são as PRINCIPAIS ENGRENAGENS do sistema capitalista, e são elas que vemos diariamente sendo promovidas nas imagens da mídia...

Trata-se do sistema econômico de uma classe social que não aprende a reduzir valores a ZERO... classe burguesia, média e pequena-burguesa que não consegue parar de acumular; que não sabe mais o que fazer com o lixo que acumula; não consegue mais fazer um calculo básico, fundamental, isto é, EQUILIBRAR EQUAÇÕES AO RESTO ZERO... eliminando acúmulos e resíduos.

Classe que não aprendeu a morrer de fato... por isso, apegou-se à ideologia de "preservação da vida a qualquer custo", nem que pra isso seja necessário "viver" de modo ilusório, de modo CIBORGUE...

O indivíduo de classe alta ou média hoje anseia por seu feudo costumizado, seu pequeno reino, inflado, acumulado, cercado pelos quatro lados de sua "propriedade privada"... E como tem o poder de direcionar fluxos e flutuações de mercado, ou de "decretar" o que "vale" e o que "não vale"... resta ao pobre só correr atrás do que lhe convencem de que "vale"...

Que banalidade... o mundo já acabou há muito tempo... morreu e reergueu como simulacro! Vivemos uma REALIDADE AMPLAMENTE VIRTUAL.
Anônimo disse…
Ricardo vc tá certo, ele é fã de Cioran, sempre disse isso, e Nathan, quem diz que o mundo já acabou é a maravilhosa Marcia Tiburi!
Anônimo disse…
"'Querer ser feliz' é coisa de classe média."

Mas esse desejo não é uma inclinação humana e que independe de classe?
Anônimo disse…
Continue postando os artigos do Pondé! Foi uma ótima iniciativa!
Abraços!
Anônimo disse…
Adoro ser classe média...Vcs já foram à festa de pobre????É o maior barato.Muito farta,alegre,descontraida,as pessoas são muito mais espontâneas e vc é tratado como um rei O IMPORTANTE É SER FELIZ!
Anônimo disse…
Você não é classe média, você é pobre. Essa sua reflexão é típica de ex-pobre, ou emergente, COMO É O CASO DE PONDÉ. A classe média odeia pobre, porque é o passado dela, que quer apagar, E RICO , ESSE NEM SE FALA, VOMITA SÓ DE ENCOSTAR...Agora pobre sempre gosta do outro, e você, mesmo travestida de classe média, é pobre. AUNQUE LA MONA SE VISTA DE SEDA, QUEDA SIENPRE LA MONA.
Anônimo disse…
Bem interessante. Sou pobre, mas sou feliz porque aprendi a viver com o essencial e com humildade.

Post mais lidos nos últimos 7 dias

90 trechos da Bíblia que são exemplos de ódio e atrocidade

Veja 14 proibições das Testemunhas de Jeová a seus seguidores

Robinho: de jogador promissor a evangélico fanático e estuprador

Qual é a doença mais difícil de curar? Eis a resposta

Bíblia tem muitas contradições, mas ela pode ser útil, até para ateus

Cannabis leva a drogas pesadas? Causa transtorno mental? Veja o que a ciência diz

Justiça da Noruega mantém cassação do registro das Testemunhas de Jeová

Vicente e Soraya falam do peso que é ter o nome Abdelmassih