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‘Ninguém reagiu ao absurdo da perseguição ao vestido rosa’

por Debora Diniz, para o Estado de S.Paulo



O caso não caberia nem em um folhetim vulgar, não fosse o Youtube denunciando a verdade. “A puta da faculdade” é uma história bizarra: uma mulher de 20 anos é vítima de humilhações. A razão foi um vestido rosa e curto que a fazia se sentir bonita. Sem ninguém saber muito como o delírio coletivo teve início, dezenas de pessoas passaram em coro a gritar “puta” e ameaçá-la de estupro. A saída foi esconder-se em uma sala, sob os urros de uma multidão enfurecida pela falta de décor do vestido rosa. Além da escolta policial, um jaleco branco a protegeu da fúria agressiva dos colegas que não suportavam vê-la em traje tão provocante.

Colegas de faculdade, professores e policiais foram ouvidos sobre o caso. O fascínio compartilhado era o vestido rosa. Curto, insinuante, transparente foram alguns dos adjetivos utilizados pelos mais novos censores do vestuário da sociedade brasileira. “A roupa não era adequada para um ambiente escolar”, foi a principal expressão da indignação moral causada pelo vestido rosa. Rapidamente um código de etiqueta sobre roupas e relações sociais dominou a análise sociológica sobre o incidente. Não se descrever a histeria como um ato de violência, mais como uma reação causada pela surpresa do vestido naquele ambiente.

O que torna a história única é o absurdo dos fatos. Um vestido rosa curto desencadeia o delírio coletivo. E o delírio ocorreu nada menos do que em uma faculdade, o templo da razão e da sabedoria. Os delirantes não eram loucas internados em um manicômio à espera da medicação ou marujos recém-atracados em um cais após meses em alto-mar. Era colegas de faculdade inconformados com um corpo insinuante coberto por um vestido rosa. Mas chamá-los de delirantes é encobrir a verdade. Não há loucura nesse caso, mas práticas violentas e intencionais. Esses jovens homens e mulheres são agressores. Eles não agrediram o vestido rosa, mas a mulher que o usava para ir à faculdade.

Não há justificativa moral possível para esse incidente. Ele é um caso de violência contra a mulher. Ao contrário do que os censores do vestuário do possam alegar, não há nada de errado em usar um vestido rosa curto para ir às aulas de uma faculdade noturna. As mulheres são livres para escolher para escolher suas roupas, exibirem sua sensualidade e beleza. A adequação entre roupas e espaços é uma regra subjetiva de julgamento estético que denuncia classes e pertencimentos sociais. Não é um preceito ético sobre comportamento ou práticas. Mas inverter a lógica da violência é a estratégia mais comum aos enredos da violência de gênero.

A multidão enfurecida não se descreve como algoz. Foi a jovem mulher insinuante que teria provocado a reação da multidão. Nesse raciocínio enviesado, a multidão teria sido vítima da impertinência do vestido rosa. As imagens são grotescas: de um lado, uma mulher acuada foge da multidão que a persegue, e de outro, do lado de quem filmam, dezenas de celulares registram a cena com a excitação de quem assiste a um espetáculo. Ninguém reage ao absurdo da perseguição ao vestido rosa. O fascínio pelo espetáculo aliena a todos que se escondem por trás das câmaras. Quem sabe a lente do celular os fez crer que não eram sujeitos ativos da violência, mas meros espectadores.

Pode causar ainda mais espanto o fato de que a multidão não tinha sexo. Homens e mulheres perseguiam o vestido rosa com fúria semelhante. Há mesmo quem conte que a confusão foi provocada por uma estudante. Mas isso não significa que a violência seja moralmente neutra quanto à desigualdade de gênero. É uma lógica machista a que alimenta sentimentos de indignação e ultraje por um vestido curto em uma mulher. A sociologia do vestuário é um recurso retórico para encobrir a real causa da violência – a opressão do corpo feminino. Não é o vestido rosa que incomoda a multidão, mas o vestido rosa em um corpo de mulher que não se submete ao puritanismo.

Não há nada que justifique o uso da violência para disciplinar as mulheres. Nem mesmo a situação hipotética de uma mulher sem roupas justificara o caso. Mas parece que uma mulher em um vestido insinuante provoca mais fúria e indignação que a nudez. O vestido rosa seria sinal de imoralidade feminina, ao passo que a nudez denunciaria a loucura. A verdade é que não nem imoralidade, nem loucura. Há simplesmente uma sociedade desigual e que acredita disciplinar os corpos femininos pela violência. Nem que seja pela humilhação e pela vergonha de um vestido rosa.

Débora Diniz é antropóloga, professora da Unb e pesquisadora da Anis (Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero).

Comentários

Tereza disse…
Paulo,

O que temos de pensar é que os ataques são para as minorias sociais. O que tem nesta Faculdade que configura relações etnocêntricas? Os acontecimentos revelam estudantes alienados em instituições privadas, subalternizados ao sistema acadêmico porque são incapazes de questionar:

-a qualidade do ensino que não é ADEQUADO PARA UMA UNIVERSIDADE;
-os professores despreparados que fazem leitura de transparência e não dão aula baseado em seu repertório intelectual, portanto, não é ADEQUADO PARA UMA UNIVERSIDADE;
-ajustes de carga horária e disciplinas para diminuir custos da instituição, o que não é ADEQUADO PARA UMA UNIVERSIDADE;
-uma vida acadêmica pobre porque não incrementa a pesquisa e os debates científicos importantes para a formação científica dos estudantes.

Talvez, e somente talvez, a mocinha de vestido “curto rosa choque” mostre para eles o que não querem perceber: a luta política para forjar o direito do pobre de ter seu projeto acadêmico concretizado e de fazer valer em espaço sociais alheios as seus modo culturais de situar-se na vida. Ela disse que não vai desistir, vai voltar. ISSO GAROTA
Paulo Lopes disse…
Concordo, Tereza.

Pelo menos dois ou três dos professores da Uniban tiveram a covardia de condenar a Geysi em entrevistas na tv, colocando-se como juízes da moral alheia.

E pensar que o Brasil é o país do Carnaval.

Acho que a moça, em protesto ao fundamentalismo moral, deveria, em seu retorno, vestir uma burca.
Anônimo disse…
Episódios como esse me assustam: qualquer dia desses posso fazer algo que desagrade essa sociedade moralista/moralizadora e ser apedrejada ou queimada em praça pública...

*Paulo Roberto, genial seu texto, a primeira leitura crítica do ocorrido que encontrei...
Anônimo disse…
Isso é loucura, que País é esse????
Que pessoas são essas, que por causa de uma roupa tem uns rompantes desses....
Anônimo disse…
Acontece que vcs não estavam lá pra ver.. o vestido com certeza não estava dessa forma... ela puxou o vestido para cima.. tanto é que até os professores viram a bunda dela... até os professores estão chamando a garota de vagabunda... ela está manipulando os fatos, e se fazendo de coitada... ela estava indecente sim, e quem faz isso é vagabunda! Ela mostrou a bunda sim, pq todo mundo viu!!!
Unknown disse…
Bem feito pra eles xingaram ela e fizeram a fama dela agora ela esá ai linda bela e toda hora na tv fazendo até reality show como a fazenda

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