João Pereira Coutinho é um jovem e talentoso jornalista português. Baseado em Lisboa, é o único jornalista português do qual tenho notícia de que escreve com regularidade na imprensa brasileira. Não sei se existe uma contrapartida na imprensa portuguesa.
Em artigo na Folha de S. Paulo de hoje, Coutinho aborda a língua portuguesa de raspão, mas se detém em algo que seria comum aos portugueses e aos brasileiros: o gosto pela fatalidade lacrimejante, o navegar por oceano de lágrimas, o emocional a acachapar o racional. O jornalista chama isso de “inveja espiritual”.
Gostaria de discordar de Coutinho, mas creio que ele certo. Ainda que os brasileiros sejam tidos como um povo alegre e os portugueses como um povo melancólico, ambos gostam, sim, de um melodrama, que é, como se sabe, sintoma de sentimentos baratos e vulgares, com reflexos, obviamente, no idioma.
Transcrevo o artigo do Coutinho.
Chora, coração
Por João Pereira Coutinho
O erro dos McCann é não terem sido um bocadinho mais portugueses: fatalistas, lacrimejantes e dramáticos
UM AMIGO paulistano contava-me em tempos que o grande problema do Brasil era a "inveja espiritual". Parei, afinei o ouvido e perguntei de volta: "Inveja espiritual?". Ele explicou: nós podemos ter inveja da casa do vizinho. Do carro. Da carreira. Da mulher.
Mas "inveja espiritual" é coisa mais sofisticada: é ter inveja do próprio vizinho. Da capacidade dele para suportar o infortúnio com a dignidade intocada.
Onde estão as lágrimas? O choro? As ameaças de suicídio e de homicídio (não necessariamente nessa ordem)? Não estão. Como diria Hemingway, ele tem graciosidade sob pressão.
A "inveja espiritual" é a inveja que sentimos quando vemos um adulto comportar-se como adulto.
Fiquei a pensar na história e a história, como a inveja, atacou-me quando regressei a Portugal depois de uma longa vadiagem pelo Brasil. E tudo por causa do caso McCann. Caso tenham estado em Marte nos últimos seis meses, uma criança inglesa de 4 anos, Madeleine McCann, desapareceu de um complexo turístico no Algarve no dia 3 de maio. Foi seqüestro? Homicídio?
Isso não é importante. Importante é a reação da imprensa tablóide portuguesa, que rapidamente começou a amplificar o sentimento dos populares. Desde a primeira hora, os pais são suspeitos. Suspeitos, vírgula, culpados. Não necessariamente pelas provas que a polícia judiciária recolheu e que até podem apontar para uma suspeita legítima (eu, honestamente, não faço a mínima idéia). Falo do povo. Falo da voz do povo. Os pais são culpados porque parecem culpados.
E parecem culpados porque não choram como deveriam. Não gritam como deveriam. Não se comportam histericamente como deveriam. Pelo contrário: com a fleuma britânica que é típica da espécie, dão entrevistas aos jornais. Fazem campanhas na internet. Procuram a filha pelos quatro cantos do mundo. Agem racionalmente, mantendo a graciosidade possível. A pergunta é inevitável: que pais são esses que, perante o desaparecimento da filha, não afundam na depressão e na miséria?
O povo gosta de ver sangue. Mas, melhor que sangue, o povo gosta de ver lágrimas. O principal erro dos pais não foi ter deixado os filhos sozinhos no apartamento -Madeleine e dois gêmeos, ambos com 2 anos -enquanto jantavam com amigos a poucos metros. O erro principal dos McCann é não terem sido um bocadinho mais brasileiros. Ou, então, um bocadinho mais portugueses: fatalistas, lacrimejantes e dramáticos.
O caso é sobretudo válido para a mãe. Em declarações aos jornais britânicos, Kate McCann confessou que lamentava não ser gorda e feia para que os portugueses gostassem mais dela. Um erro, minha senhora. O problema não é ser magra e bonita. O problema é não ter umas lágrimas para oferecer a platéias esfomeadas. Se lágrimas houvesse, até as maiores barbaridades seriam perdoadas. Ela matou a filha/vendeu a filha/fez da filha um sanduíche? Ah, mas chora, coitadinha.
A inveja espiritual não começou no Brasil. Como a língua e a Carmem Miranda, ela é herança de um pai só.
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