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Papa Francisco defende o Estado laico, só que não

por Carlos Lungarzo

caricatura do papa Francisco
Para o papa, laicidade significa a
contribuição das grandes igrejas
Se vogliamo che tutto rimanga com’è, bisogna che tutto cambi” (“Se quisermos que tudo fique como está, é preciso que tudo mude”).

Frase famosa atribuída ao príncipe siciliano Tancredi Falconieri, explicando a seu tio, o príncipe dom Fabrizio Corbera, a necessidade de simular algumas mudanças sociais para adequar-se aos novos tempos e manter o poder. Esta anedota está relatada no romance de Giuseppe Tommasi de Lampedusa, Il Gattopardo (Feltrinelli, Milano, 1958).

No discurso de despedida da Jornada Mundial da Juventude 2013 no Rio, o papa Francisco fez uma defesa do Estado laico.

“Será fundamental a contribuição das grandes tradições religiosas, que desempenham um papel fecundo de fermento da vida social e de animação da democracia” [...]

“Favorável à pacífica convivência entre religiões diversas é a laicidade do Estado que, sem assumir como própria qualquer posição confessional, respeita e valoriza a presença do fator religioso na sociedade, favorecendo as suas expressões concretas”.

É a primeira vez que um religioso conhecido, de qualquer hierarquia, se refere ao Estado laico sem ódio, o que sugere que a Igreja está em sua fase mais profunda de sedução populista, cujos precedentes foram Leão XIII em 1892 e João XXIII em 1961.

A principal diferença é que a inteligência e o carisma do atual papa são muito superiores aos de qualquer outro.

Todavia, a ideia de Estado laico do chefe do Vaticano deixa dúvidas.

Ele acha “fundamental a contribuição das grandes tradições religiosas” [grifo meu], o que não inclui as religiões oprimidas, como as indígenas e as africanas. Essas religiões (mesmo tendo o caráter especulativo de toda crença sobrenatural) ajudaram índios e negros a defenderem-se do extermínio abençoado pela religião cristã e a islâmica.

As ditas “grandes tradições” são os credos monoteístas, cujo poder se exerce através de economia e da política. No entanto, judeus e islâmicos são minoria ínfima no Brasil, sendo que o “profundo fermento” fica apenas com católicos e evangélicos, os primeiros em queda dramática e os segundos em meteórico crescimento.

Vale lembrar que Bergoglio, que ocupou as maiores hierarquias na Igreja argentina durante décadas, nunca defendeu em seu país essa democracia religiosa que agora propõe aos brasileiros. Podemos conjeturar a causa do “esquecimento”:

Na Argentina, os católicos são mais de 75%, e os evangélicos apenas 10%, sem indícios de que a estabilidade possa variar. Os católicos argentinos possuem enorme poder político e financeiro e influência militar, e, para eles, a democracia que o papa recomenda no Brasil significaria compartilhar um quase monopólio.

A Constituição de 1853, que considerava a católica a única fé legítima, teve um reforço numa “lei” da ditadura de 1978, em que se negava pessoa jurídica a qualquer outra comunidade religiosa. Isso foi anulado pela emenda de 1994, mas, mesmo assim, ainda hoje a Argentina é considerada um dos dois países não laicos da Américas (o outro é a Costa Rica). O país mantém uma concordata com a igreja, similar à de Latrão (1929), que regula o salário que o Estado paga aos religiosos, e permite a intromissão dos bispos na vida cidadã.

Também chama a atenção a definição dada por Francisco ao “Estado laico”: seria aquele que não assume como própria nenhuma religião, mas “respeita e valoriza o fator religioso”.

A definição técnica de Estado laico é bem diferente.

Laico é o Estado que respeita tanto a liberdade de crença como a rejeição de crença individual de todos os cidadãos, mas não “valoriza” nem a fé nem sua falta, mantendo-se neutro com respeito a elas. Permite a associação religiosa e a realização de cultos que não prejudiquem a vida social nem a natureza, mas não pauta suas decisões por nenhuma sugestão teológica.

Ao considerar a religião uma parceira da democracia, o papa estimula esta dúvida: é a religião que deve adequar-se a democracia ou a democracia à religião? As religiões não negociam o que elas apresentam a seus fiéis como princípios eternos. Então, a única possibilidade da democracia é recuar em qualquer decisão que seja objetada pelo consenso religioso. Isso acontece com o aborto, a homoafetividade, o ensino científico, a verdade histórica, e muitas outras rubricas, onde a canga religiosa tem cobrado, ao longo de séculos, milhões de vidas. Especialmente tétrica é a negativa de vários países (entre eles os Estados Unidos) ao assinar o Tratado Internacional de Proteção às Crianças (UNCRC, 20/11/1989), por oposição de católicos e evangélicos.

É verdade que, como eminente conhecedor do estilo latino-americano, o papa deixa no ar uma “crítica” ao capitalismo predatório e ao desprezo contra a juventude, o que entraria em conflito, se fosse sincero, com os devoradores de dízimos, que, além disso, aprovam a bárbara e sanguinária proposta de reduzir a maioridade penal.

Entretanto, é temerário pretender traçar comparações entre diversas seitas, pois nunca é fácil determinar qual das estratégias formuladas para ganhar poder sobre a sociedade é realmente a menos desumana. Por enquanto, creio que, apesar de sua antiguidade, ainda está em vigor o velho adágio de Karl Marx.





Esse texto foi publicado originalmente no Congresso em Foco. Autor de 11 livros, Carlos Lungarzo e doutor em ciências exatas e em ciências humanas.


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