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Revolta católica mexicana matou 90.000 pessoas na década de 1920. E a matança caiu no esquecimento

A sangrenta história se estendeu por um século. Foi uma guerra clássica entre reformadores seculares e a classe sacerdotal


James A. Haught
escritor e jornalista

Nos vastos anais de assassinatos baseados na fé, alguns episódios são amplamente conhecidos, enquanto outros banhos de sangue religiosos são estranhamente esquecidos.

O mundo inteiro está ciente do impressionante ataque “mártir” de 11 de setembro de 2001. E a maioria das pessoas se lembra da tragédia de Jonestown e do cerco de Waco — assim como dos horrores históricos: a Inquisição, a caça às bruxas, as Cruzadas, as guerras da Reforma, os pogroms contra os judeus, a era do sacrifício humano, etc.

No entanto, algumas outras tragédias motivadas pela fé praticamente desapareceram da consciência pública. 

Poucos americanos sabem, por exemplo, que um conflito entre católicos e protestantes provocou uma batalha de canhões nas ruas da Filadélfia em 1844. Ou que a Rebelião Taiping — liderada por um místico que se dizia o segundo filho de Deus depois de Jesus, com o mandato divino de “destruir demônios” — matou milhões de chineses na década de 1850. 

A Cristera
 demonstrou
o poder da
religião para
incitar os
fiéis ao
derramamento
de sangue. E
demonstrou
que tentativas
de suprimir a
religião podem
desencadear
muita violência


Aqui está outra guerra santa meio esquecida: o conflito Cristero, que matou 90.000 mexicanos na década de 1920.

Culminou uma longa, intrincada e sangrenta história que se estendeu por um século. Foi um exemplo clássico da luta secular entre os reformadores e a classe sacerdotal, que conquista poder em uma sociedade, se entrincheira com governantes, vive às custas da população e impõe restrições ao povo.

Após a independência do México da Espanha em 1821, os defensores da democracia buscaram afrouxar o controle da Igreja Católica Romana sobre a sociedade mexicana. Algumas leis anticlericais foram aprovadas, mas foram revogadas pelo ditador Santa Anna em 1834.

O liberal Benito Juarez, um indígena zapoteca, chegou ao poder na década de 1850 e promulgou La Reforma, um plano abrangente para a democracia secular. 

Entre várias reformas, ele pôs fim ao papel exclusivo do catolicismo como religião do Estado, restringiu a grande riqueza fundiária da Igreja, extinguiu os tribunais eclesiásticos, aboliu as taxas funerárias da Igreja e revogou o controle sacerdotal sobre a educação, o casamento e outros aspectos da vida cotidiana.

As mudanças foram incorporadas a uma nova constituição — mas a Igreja excomungou todos os funcionários mexicanos que juraram respeitá-la. 

A guerra civil eclodiu e os conservadores religiosos tomaram a Cidade do México, levando o governo liberal a Veracruz. Os Estados Unidos apoiaram Juárez, e seu regime derrotou os rebeldes em 1861.

Conservadores mexicanos exilados apelaram à França católica, à Espanha católica e ao papa, além de outros europeus. 

Forças francesas, espanholas e algumas inglesas invadiram o México, expulsando Juárez para o norte. Um nobre Habsburgo, Maximiliano, foi empossado imperador — mas demorou a revogar as leis anticlericais. 

O clero e o emissário do papa sentiram-se traídos. Os europeus retiraram seu apoio militar. Juárez se reagrupou, derrotou a milícia de Maximiliano e executou o imperador em 1867.

Após a morte de Juárez, seus sucessores aumentaram ainda mais a separação entre Igreja e Estado. Juramentos religiosos foram proibidos nos tribunais. A propriedade de terras pela Igreja foi proibida. Mas o ditador Porfírio Díaz tomou o poder em uma revolta em 1876 e gradualmente restaurou os privilégios católicos durante seu longo reinado.

Após 1900, jovens radicais começaram a clamar pela derrubada de Díaz, além da distribuição de terras aos camponeses e da abolição do poder sacerdotal. Sua agitação finalmente explodiu na Revolução Mexicana, que durou de 1910 a 1916. 

Então, os reformadores vitoriosos redigiram uma constituição em 1917, determinando a democracia — e impondo limites severos ao clero. Ela suspendeu o controle da Igreja sobre as escolas. Proibiu as ordens monásticas. Eliminou procissões religiosas e missas ao ar livre. 

Novamente restringiu a propriedade de propriedades pela Igreja. E proibiu os padres de usar trajes clericais, votar ou comentar sobre assuntos públicos na imprensa.

No início, essa repressão foi aplicada apenas de forma branda, e os protestos da igreja foram contidos. Mas em 1926, o novo presidente Plutarco Calles intensificou a pressão. Ele decretou uma multa altíssima (equivalente a US$ 250 na época) para qualquer padre que usasse colarinho clerical e exigiu cinco anos de prisão para qualquer padre que criticasse o governo.

Em resposta, bispos católicos convocaram um boicote contra o governo. Professores católicos se recusaram a comparecer às escolas seculares.

 Católicos se recusaram a usar o transporte público. Outras manifestações de desobediência civil ocorreram. O papa em Roma aprovou a resistência. O governo reagiu fechando igrejas. A agitação cresceu.

Em 31 de julho de 1926, os bispos suspenderam todos os cultos no México. Hoje, um fervoroso site católico, The Angelus, afirma que a medida foi inédita na história católica e, presumivelmente, tinha a “intenção de incitar os mexicanos à revolta”.

Deu certo. Em 23 de agosto de 1926, cerca de 400 católicos armados se barricaram em uma igreja de Guadalajara e travaram um tiroteio com tropas federais, resultando em 18 mortes. No dia seguinte, soldados invadiram uma igreja em Sahuayo, matando seu padre e vigário.

Rebeliões católicas eclodiram em vários lugares. René Garza, líder da Associação Mexicana da Juventude Católica, convocou uma insurreição geral, declarando que “a hora da vitória pertence a Deus”. Grupos de voluntários atacaram instalações federais e postos do exército, gritando “Viva Cristo Rei! Viva a Virgem de Guadalupe!”. Os rebeldes se autodenominavam Cristeros — combatentes por Cristo.

Os bispos mexicanos se recusaram a se opor à rebelião e a aprovaram discretamente. Dois padres tornaram-se comandantes da guerrilha. Um deles, Aristeo Pedroza, era recatado e moralista. 

O outro, José Vega, era beberrão e mulherengo. Três outros padres tornaram-se pistoleiros. Muitos outros tornaram-se ativistas clandestinos.

O padre Vega liderou um ataque a um trem, e seu irmão foi morto no ataque. Como vingança, o padre mandou encharcar os vagões do trem com gasolina e incendiá-los, matando 51 passageiros civis. 

O massacre azedou o apoio público à revolta. O governo expulsou os bispos católicos do país. Após outro confronto, Vega ordenou que todos os prisioneiros federais fossem esfaqueados até a morte, para economizar munição. O padre foi morto posteriormente em um ataque.

Estima-se que 50.000 homens católicos se tornaram guerrilheiros, e milhares de mulheres católicas se juntaram às brigadas de apoio a “Santa Joana d'Arc”. 

Os rebeldes começaram a derrotar unidades federais e controlaram grandes áreas do México. Alguns oficiais do exército católico se amotinaram em favor dos insurgentes religiosos.

O embaixador dos EUA no México iniciou negociações para pôr fim ao conflito. Seus esforços, no entanto, foram prejudicados porque o presidente Calles deveria ser sucedido pelo presidente eleito moderado Álvaro Obregón — mas um fanático católico assassinou Obregón.

Por fim, as negociações resultaram em um cessar-fogo. A Igreja Católica foi autorizada a manter seus prédios, e os padres foram autorizados a morar neles.

A Guerra Cristero tirou cerca de 90.000 vidas: 56.882 do lado do governo, mais cerca de 30.000 cristeros, além de civis.

Em 21 de maio de 2000, o Vaticano conferiu a santidade a 23 figuras cristeras: 20 padres e três leigos. (Normalmente, cada canonização exige a comprovação de pelo menos dois milagres, mas a Igreja reduz esse padrão para “mártires”, de modo que o número de milagres proclamados na Guerra Cristera pode ser inferior a 46.) 

Em 20 de novembro de 2005, outros treze foram declarados mártires e beatificados, caminhando em direção à santidade.

Do lado do governo, nenhuma glória foi proclamada para aqueles que lutaram e obtiveram pelo menos uma vitória parcial contra a dominação do clero.

Para os livres-pensadores, a mensagem da Guerra Cristera é clara: a religião é perigosa e repleta de potencial para a violência (como evidenciado pelas erupções muçulmanas mortais em 2006, em resposta às charges europeias do Profeta). 

Tentativas governamentais exageradas de subjugá-la podem levar os fiéis a um massacre. Um caminho mais sensato é manter a separação entre Igreja e Estado, esperando pacientemente que os avanços na educação e na ciência corroam o apoio público ao sobrenaturalismo.

> Esse texto foi publicado originalmente por Church and State com o título Uma guerra santa meio esquecida: o conflito Cristero que matou 90.000 mexicanos

James A. Haught (1932-2023) foi colaborador da FFRF (Freedom From Religion Foundation), organização sem fins lucrativos dos Estados Unidos que se dedica à defesa da separação entre o Estado e a Igreja.

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