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Ciência e religião são incompatíveis e estão em confronto. Saiba por quê

Existem conflitos de metodologia e resultado. Então, como os fiéis conciliam ciência e religião?


Jerry Coyne
professor emérito de ecologia e evolução, Universidade de Chicago, Estados Unidos

The Conversation
plataforma de informação produzida por acadêmicos e jornalistas

À medida que o Ocidente se torna cada vez mais secular e as descobertas da biologia evolutiva e da cosmologia reduzem os limites da fé, as alegações de que ciência e religião são compatíveis se tornam mais fortes. Se você é um crente que não quer parecer anticientífico, o que pode fazer? Você deve argumentar que sua fé — ou qualquer fé — é perfeitamente compatível com a ciência.

E assim vemos alegações sucessivas de crentes, cientistas religiosos, organizações científicas de prestígio e até mesmo ateus afirmando não apenas que ciência e religião são compatíveis, mas também que podem, de fato, ajudar uma à outra. Essa alegação é chamada de “acomodação”.

Mas argumento que isso é equivocado: que ciência e religião não estão apenas em conflito — até mesmo em “guerra” — mas também representam maneiras incompatíveis de ver o mundo.


A “guerra” entre
ciência e religião,
então, é um
conflito sobre
se você tem
boas razões
para acreditar
no que acredita:
se você vê
a fé como
um vício
ou uma virtude.

Métodos opostos para discernir a verdade

Meu argumento é o seguinte. Interpretarei “ciência” como o conjunto de ferramentas que usamos para encontrar a verdade sobre o universo, com o entendimento de que essas verdades são provisórias e não absolutas. 

Essas ferramentas incluem observar a natureza, formular e testar hipóteses, esforçar-se ao máximo para provar que sua hipótese está errada para testar sua confiança de que ela está certa, fazer experimentos e, acima de tudo, replicar seus resultados e os de outros para aumentar a confiança em sua inferência.

E definirei religião como o filósofo Daniel Dennett: “Sistemas sociais cujos participantes declaram crença em um agente ou agentes sobrenaturais cuja aprovação deve ser buscada.” 

É claro que muitas religiões não se encaixam nessa definição, mas aquelas cuja compatibilidade com a ciência é mais frequentemente alardeada — as religiões abraâmicas do judaísmo, cristianismo e islamismo — preenchem o requisito.

Em seguida, perceba que tanto a religião quanto a ciência se baseiam em “declarações de verdade” sobre o universo — afirmações sobre a realidade. O edifício da religião difere da ciência por lidar adicionalmente com moralidade, propósito e significado, mas mesmo essas áreas se baseiam em afirmações empíricas. 

Você dificilmente pode se considerar cristão se não acredita na ressurreição de Cristo, muçulmano se não acredita que o anjo Gabriel ditou o Alcorão a Maomé, ou mórmon se não acredita que o anjo Morôni mostrou a Joseph Smith as placas de ouro que se tornaram o Livro de Mórmon. 

Afinal, por que aceitar os ensinamentos autoritativos de uma fé se você rejeita suas afirmações de verdade?

De fato, até mesmo a Bíblia observa isso: “Mas, se não há ressurreição dos mortos, então Cristo não ressuscitou. E, se Cristo não ressuscitou, então é vã a nossa pregação, e também é vã a vossa fé.”

Muitos teólogos enfatizam os fundamentos empíricos da religião, concordando com o físico e padre anglicano John Polkinghorne:

A questão da verdade é tão central para a [religião] quanto para a ciência. A crença religiosa pode guiar alguém na vida ou fortalecê-lo diante da aproximação da morte, mas, a menos que seja realmente verdadeira, não pode fazer nenhuma dessas coisas e, portanto, não passaria de um exercício ilusório de fantasia reconfortante.

O conflito entre ciência e fé, então, reside nos métodos que elas usam para decidir o que é verdadeiro e quais verdades resultam: esses são conflitos de metodologia e resultado.

Em contraste com os métodos da ciência, a religião julga a verdade não empiricamente, mas por meio de dogmas, escrituras e autoridade — em outras palavras, por meio da fé, definida em Hebreus 11 como “a substância das coisas que se esperam, a prova das coisas que se não veem”. 

Na ciência, a fé sem provas é um vício, enquanto na religião é uma virtude. Lembre-se do que Jesus disse ao “incrédulo Tomé”, que insistiu em cutucar as feridas do Salvador ressuscitado com os dedos: “Tomé, porque me viste, creste? Bem-aventurados os que não viram e creram”. 

Apesar disso, sem evidências que o sustentem, os americanos acreditam em uma série de afirmações religiosas: 74% de nós acreditam em Deus, 68% na divindade de Jesus, 68% no Céu, 57% no nascimento virginal e 58% no Diabo e no Inferno. Por que eles acham que essas afirmações são verdadeiras? Fé.

Mas religiões diferentes fazem afirmações diferentes — e muitas vezes conflitantes —, e não há como julgar quais delas estão corretas. Existem mais de 4.000 religiões, e suas “verdades” são bem diferentes. (muçulmanos e judeus, por exemplo, rejeitam terminantemente a crença cristã de que Jesus era o filho de Deus.) 

De fato, novas seitas frequentemente surgem quando alguns crentes rejeitam o que outros veem como verdade. Os luteranos se dividiram quanto à verdade da evolução, enquanto os unitaristas rejeitaram a crença de outros protestantes de que Jesus era parte de Deus.

E embora a ciência tenha obtido sucesso após sucesso na compreensão do universo, o “método” de usar a fé não levou a nenhuma prova do divino. Quantos deuses existem? Quais são suas naturezas e credos morais? Existe vida após a morte? Por que existe o mal moral e físico? 

Não há uma resposta única para nenhuma dessas perguntas. Tudo é mistério, pois tudo se baseia na fé.

Compartimentar reinos é irracional

Então, como os fiéis conciliam ciência e religião? Frequentemente, eles apontam para a existência de cientistas religiosos, como o diretor do NIH, Francis Collins, ou para as muitas pessoas religiosas que aceitam a ciência. Mas eu diria que isso é compartimentalização, não compatibilidade, pois como você pode rejeitar o divino em seu laboratório, mas aceitar que o vinho que você bebe no domingo é o sangue de Jesus?

Outros argumentam que, no passado, a religião promovia a ciência e inspirava questionamentos sobre o universo. Mas, no passado, todo ocidental era religioso, e é discutível se, a longo prazo, o progresso da ciência foi promovido pela religião. Certamente, a biologia evolutiva, minha área de estudo, foi fortemente prejudicada pelo criacionismo, que surge unicamente da religião.

O que é indiscutível é que hoje a ciência é praticada como uma disciplina ateísta — e em grande parte por ateus. 

uma enorme disparidade na religiosidade entre os cientistas americanos e os americanos como um todo: 64% da nossa elite científica é ateísta ou agnóstica, em comparação com apenas 6% da população em geral — uma diferença mais de dez vezes maior. Seja isso reflexo da atração diferencial de não crentes pela ciência ou da erosão da crença pela ciência — suspeito que ambos os fatores atuem –, os números são evidências prima facie de um conflito entre ciência e religião.

O argumento acomodacionista mais comum é a tese de Stephen Jay Gould sobre “magistérios não sobrepostos”. Religião e ciência, argumentou ele, não entram em conflito porque: “A ciência tenta documentar o caráter factual do mundo natural e desenvolver teorias que coordenem e expliquem esses fatos. A religião, por outro lado, opera no domínio igualmente importante, mas completamente diferente, dos propósitos, significados e valores humanos — assuntos que o domínio factual da ciência pode iluminar, mas nunca resolver.”

Isso falha em ambos os sentidos. Primeiro, a religião certamente faz afirmações sobre “o caráter factual do universo”. De fato, os maiores oponentes de magistérios não sobrepostos são crentes e teólogos, muitos dos quais rejeitam a ideia de que as religiões abraâmicas são "vazias de quaisquer alegações de fatos históricos ou científicos“.

A religião também não é o único domínio de “propósitos, significados e valores”, que, obviamente, diferem entre as religiões. 

Há uma longa e distinta história da filosofia e da ética — que se estende de Platão, Hume e Kant até Peter Singer, Derek Parfit e John Rawls em nossos dias — que se baseia na razão, e não na fé, como fonte de moralidade. Toda filosofia ética séria é filosofia ética secular.

No fim das contas, é irracional decidir o que é verdade na sua vida cotidiana com base em evidências empíricas e, em seguida, basear-se em ilusões e superstições antigas para julgar as “verdades” que sustentam sua fé. 

Isso leva a mente (por mais cientificamente reconhecida) em guerra consigo mesma, produzindo a dissonância cognitiva que leva ao acomodacionismo. Se você decidir ter boas razões para sustentar qualquer crença, deverá escolher entre fé e razão. E, à medida que os fatos se tornam cada vez mais importantes para o bem-estar da nossa espécie e do nosso planeta, as pessoas devem enxergar a fé como ela é: não uma virtude, mas um defeito.

Comentários

AspenBH disse…
Enquanto a ciência ampara suas crenças em EVIDÊNCIAS, a religião ampara as suas em autoridade, revelação e tradição - se uma pessoa poderosa teve um palpite/epifania e impôs isso aos fiéis por um longo tempo, para o rebanho esse delírio passa a ser uma verdade incontestável.

O saber científico é robusto como só a verdade pode ser: se você queimar todos os livros de ciência e proibir seu estudo, mais dia menos dia alguém vai voltar a se perguntar de onde vem a chuva e vai descobrir tudo novamente. Já o folclore religioso, uma vez destruído, estará perdido para sempre pois é composto meramente por tradições culturais aleatórias que persistem por pura repetição e teimosia.
betoquintas disse…
E vamos esquecer ou ignorar os inúmeros cientistas que eram e são religiosos. Vamos esquecer que toda nossa cultura veio dos povos antigos, todos religiosos - pagãos.

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