Pular para o conteúdo principal

Estudo traz nova hipótese sobre a ocupação do litoral sul brasileiro há 2 mil anos

Novas análises refutam a teoria de que ancestrais dos povos Jê do Sul tenham tomado lugar das populações que construíram sambaquis por mais de 5 mil anos na costa catarinense


André Julião
jornalista

Agência FAPESP

Um importante capítulo da história da ocupação do litoral brasileiro está sendo reescrito por pesquisadores do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo (MAE-USP) apoiados pela FAPESP.

Em estudo publicado na revista PLOS ONE, o grupo, que inclui autores de Santa Catarina, Estados Unidos, Bélgica e França, mostra que os povos construtores de sambaquis do sítio Galheta IV, na cidade catarinense de Laguna, não foram substituídos por ancestrais dos povos Jê do Sul, como se aventou no passado.

[Os grupos Jê Meridionais são os antepassados de alguns povos indígenas presentes hoje no sul do Brasil, portadores das línguas Jê, como os Kaingang e os Laklãnõ-Xokleng de Santa Catarina.]

“A interação dos sambaquieiros com os povos proto-Jê, como chamamos, foi muito menor do que se imaginava. As práticas funerárias e a cerâmica eram diferentes. Além disso, os sambaquieiros viveram ali desde a infância e eram descendentes de outros que viveram naquele mesmo lugar”, resume André Strauss, professor do MAE-USP e coordenador do estudo.

A hipótese da substituição de um povo pelo outro se deu, em parte, porque sítios como Galheta IV marcam o fim da prática de construção de sambaquis. Monumentos mais emblemáticos da arqueologia da costa sul-americana, os sambaquis são grandes montes de conchas e ossos de peixes erguidos intencionalmente. Foram usados tanto como habitação quanto como cemitérios e para demarcar território.


Exemplo de Sambaqui do litoral
de Santa Catarina: montes
formados por conchas, areia
e restos de fogueira onde
pessoas eram sepultadas

FOTO: JÉSSICA M. CARDOSO

Nas camadas mais recentes desses montes, são encontrados restos de cerâmica semelhante à dos ancestrais dos povos indígenas Jê do Sul (Kaingang e Laklãnõ-Xokleng). Esse foi outro motivo pelo qual se aventou, por muito tempo, que as populações do planalto catarinense tenham substituído os construtores de sambaquis, o que foi refutado agora.

“Não se sabe por que os sambaquis pararam de ser construídos. Algumas hipóteses vão do contato com outras culturas até mudanças ambientais, como a alteração da salinidade e do nível do mar, que pode ter diminuído a disponibilidade de moluscos que eram matéria-prima para a construção desses sítios”, explica Jéssica Mendes Cardoso, primeira autora do estudo, realizado durante seu doutorado no MAE-USP e na Universidade de Toulouse, na França.

Cardoso reanalisou o material coletado entre 2005 e 2007 por outra equipe do MAE-USP e do Grupo de Pesquisa em Educação Patrimonial e Arqueologia da Universidade do Sul de Santa Catarina (Grupep/Unisul), quando os esqueletos de oito indivíduos foram exumados. Dessa vez, foram utilizados métodos como análise de isótopos de estrôncio, carbono e nitrogênio.

As técnicas foram determinantes para definir a dieta daquele povo, que era 60% composta de recursos marinhos, como peixes. A análise dos ossos mostra ainda que os indivíduos não foram cremados, como faziam os proto-Jê do sul do país com seus mortos.

Outras análises incluíram os restos de fauna, principalmente peixes, comuns em sambaquis. Diferente de outros, esse sítio contava ainda com ossos de aves marinhas, como albatrozes e pinguins, e mesmo mamíferos, como um lobo-marinho.

“Estes animais não eram parte da dieta cotidiana, mas consumidos sazonalmente, nos períodos em que estavam migrando e podiam ser capturados naquele local. Provavelmente, seu consumo era parte de rituais funerários, uma vez que as pessoas não moravam nesse sítio, apenas enterravam seus mortos”, conta Cardoso. Em um dos sepultamentos, por exemplo, havia 12 albatrozes.


Sepultamento encontrado
em 2005; material foi
reanalisado com novas técnicas

FOTO: PAULO DEBLASIS

Uma nova datação determinou ainda que o sítio é mais antigo do que se calculava, tendo sido construído e frequentado entre 1.300 e 500 anos atrás. A estimativa anterior dava conta de 1.170 a 900 anos atrás.

Pedra de roseta

A análise da cerâmica encontrada no sítio arqueológico também aponta que os proto-Jê podem ter sido apenas uma influência cultural adotada pelos sambaquieiros. Dos 190 fragmentos presentes no sítio, 131 com tamanho suficiente para a análise foram examinados.

“A cerâmica tem características de forma e decoração muito distintas das encontradas no planalto de Santa Catarina. As semelhanças se dão com as do litoral, tanto ao norte quanto ao sul do Estado, o que mostra um trânsito desses objetos pela costa. Inclusive, essa é a cerâmica mais antiga já encontrada no Estado, com 1.300 anos, enquanto a do planalto tem cerca de mil anos”, afirma Fabiana Merencio, coautora do trabalho, realizado durante doutorado no MAE-USP com bolsa da FAPESP e atualmente pós-doutoranda na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).

“Estamos mostrando o aparecimento de uma nova expressão da materialidade humana na costa, por volta de mil anos atrás, que é a substituição dos sambaquis por sítios sem conchas de moluscos e presença de cerâmica. Este sítio é uma pedra de roseta para entender essas conexões”, encerra Strauss.

Um novo grupo de pesquisa agora vai retornar à região e se debruçar sobre outro sítio (Jabuticabeira II) em um novo projeto apoiado pela FAPESP, sob a coordenação da professora do MAE-USP Ximena Villagran.

> O artigo Late shellmound occupation in southern Brazil: A multi-proxy study of the Galheta IV archaeological site pode ser lido em: https://journals.plos.org/plosone/article?id=10.1371/journal.pone.0300684.

Comentários

Post mais lidos nos últimos 7 dias

90 trechos da Bíblia que são exemplos de ódio e atrocidade

Caso Roger Abdelmassih

Violência contra a mulher Liminar concede transferência a Abelmassih para hospital penitenciário 23 de novembro de 2021  Justiça determina que o ex-médico Roger Abdelmassih retorne ao presídio 29 de julho de 2021 Justiça concede prisão domiciliar ao ex-médico condenado por 49 estupros   5 de maio de 2021 Lewandowski nega pedido de prisão domiciliar ao ex-médico Abdelmassih 26 de fevereiro de 2021 Corte de Direitos Humanos vai julgar Brasil por omissão no caso de Abdelmassih 6 de janeiro de 2021 Detento ataca ex-médico Roger Abdelmassih em hospital penitenciário 21 de outubro de 2020 Tribunal determina que Abdelmassih volte a cumprir pena em prisão fechada 29 de agosto de 2020 Abdelmassih obtém prisão domicililar por causa do coronavírus 14 de abril de 2020 Vicente Abdelmassih entra na Justiça para penhorar bens de seu pai 20 de dezembro de 2019 Lewandowski nega pedido de prisão domiciliar ao ex-médico estuprador 19 de novembro de 2019 Justiça cancela prisão domi...

Professor obtém imunidade para criticar criacionismo nas aulas

A Corte de Apelação da Califórnia (EUA) decidiu que um professor de uma escola pública de Mission Viejo tem imunidade para depreciar o criacionismo, não podendo, portanto, ser punido por isso. A cidade fica no Condado de Orange e tem cerca de 94 mil habitantes. Durante uma aula, o professor de história James Corbett, da Capistrano Valley High School, afirmou que o criacionismo não pode ser provado cientificamente porque se trata de uma “bobagem supersticiosa”. Um aluno foi à Justiça alegando que Corbett ofendeu a sua religião, desrespeitando, assim, a liberdade de crença garantida pela Primeira Emenda da Constituição. Ele perdeu a causa em primeira instância e recorreu a um tribunal superior. Por unanimidade, os três juízes da Corte de Apelação sentenciaram que a Primeira Emenda não pode ser utilizada para cercear as atividades de um professor dentro da sala de aula, mesmo quando ele hostiliza crenças religiosas. Além disso, eles também argumentaram que o professor não ...

Reação de aluno ateu a bullying acaba com pai-nosso na escola

O estudante já vinha sendo intimidado O estudante Ciel Vieira (foto), 17, de Miraí (MG), não se conformava com a atitude da professora de geografia Lila Jane de Paula de iniciar a aula com um pai-nosso. Um dia, ele se manteve em silêncio, o que levou a professora a dizer: “Jovem que não tem Deus no coração nunca vai ser nada na vida”. Era um recado para ele. Na classe, todos sabem que ele é ateu. A escola se chama Santo  Antônio e é do ensino estadual de Minas. Miraí é uma cidade pequena. Tem cerca de 14 mil habitantes e fica a 300 km de Belo Horizonte. Quando houve outra aula, Ciel disse para a professora que ela estava desrespeitando a Constituição que determina a laicidade do Estado. Lila afirmou não existir nenhuma lei que a impeça de rezar, o que ela faz havia 25 anos e que não ia parar, mesmo se ele levasse um juiz à sala de aula. Na aula seguinte, Ciel chegou atrasado, quando a oração estava começando, e percebeu ele tinha sido incluído no pai-nosso. Aparentemen...

Aluno com guarda-chuva se joga de prédio e vira piada na UERJ

"O campus é depressivo, sombrio, cinza, pesado" Por volta das 10h de ontem (31 de março de 2001), um jovem pulou do 11º andar do prédio de Letra da UERJ (Universidade do Estado do Rio de Janeiro) e virou motivo de piadinhas de estudantes, no campus Maracanã e na internet, por ter cometido o suicídio com um guarda-chuva. Do Orkut, um exemplo: "Eu vi o presunto, e o mais engraçado é que ele está segurando um guarda-chuva! O que esse imbecil tentou fazer? Usar o guarda-chuva de paraquedas?" Uma estudante de primeiro ano na universidade relatou em seu blog que um colega lhe dissera na sala de aula ter ouvido o som do impacto da queda de alguma coisa. Contou que depois, de uma janela do 3º andar, viu o corpo. E escreveu o que ouviu de um estudante veterano: “Parabéns, você acaba de ver o seu primeiro suicídio na UERJ.” De fato, a morte do jovem é mais uma que ocorre naquele campus. Em um site que deu a notícia do suicido, uma estudante escreveu: “O campus é depressivo, s...

Seleção feminina de vôlei não sabe que Brasil é laico desde 1891

Título original: O Brasil é ouro em intolerância Jogadoras  se excederam com oração diante das câmeras por André Barcinski para Folha Já virou hábito: toda vez que um time ou uma seleção do Brasil ganha um título, os atletas interrompem a comemoração para abrir um círculo e rezar. Sempre diante das câmeras, claro. O mesmo aconteceu sábado passado, quando a seleção feminina de vôlei conquistou espetacularmente o bicampeonato olímpico em cima da seleção norte-americana, que era favorita. O Brasil é oficialmente laico desde 1891 e a Constituição prevê a liberdade de religião. Será mesmo? O que aconteceria se alguma jogadora da seleção de vôlei fosse budista? Ou mórmon? Ou umbandista? Ou agnóstica? Ou islâmica? Alguém perguntou a todas as atletas e aos membros da comissão técnica se gostariam de rezar o “Pai Nosso”? Ou será que alguns se sentiram compelidos a participar para não destoar da festa? Será que essas manifestações públicas e encenadas, em vez de prop...

Ateus são o grupo que menos apoia a pena de morte, apura Datafolha

No noticiário, casos de pastores pedófilos superam os de padres

Cinco deuses filhos de virgens morreram e ressuscitam. E nenhum deles é Jesus