Pular para o conteúdo principal

Zumbi é metáfora para o século 21: catástrofe ambiental, migração, lavagem cerebral...

Sucesso na cultura pop, o morto-vivo é a representação das vulnerabilidades das pessoas nos atuais tempos


CÉLIA MAUGNIER
doutora em literatura comparada
Université de Lorraine, França


The Conversation
plataforma de informação
e análise produzida por 
acadêmicos e jornalistas

Poderia o zumbi ser o monstro emblemático do século 21? Alguns pesquisadores notaram um aumento no número de ficções apocalípticas apresentando esses seres feitos de carne podre desde a década de 2000.

Há muito confinado à paraliteratura, o zumbi agora tem um novo público; mais respeitável do que antes, foi escolhido pela BBC que o transformou em série (In the Flesh, 2013), ou por um autor americano coroado com vários prêmios literários, Colson Whitehead (Zone One, 2011).

Os mortos-vivos estão zumbificando a cultura canônica?

É o que sugere o título da obra de Seth Grahame-Smith, Orgulho e Preconceito e Zumbis, uma reescrita paródica do famoso romance de Jane Austen, levada às telas em 2016.

Por fim, o blockbuster Guerra Mundial Z (2013), adaptado do filme best-seller de Max Brooks, com Brad Pitt como herói triunfante, estabeleceu o contágio da cultura popular pelo flagelo zumbi, o que se confirma mais recentemente com a série The Walking Dead, inspirada nos quadrinhos de mesmo nome - já com 11 temporadas de transmissão.

Somos nós

Como explicar tamanho sucesso? Nestes tempos de pandemia, o zumbi lembra-nos o quão vulneráveis ​​somos a um contágio global, que se espalha como um incêndio, provocando reações de pânico e estratégias de sobrevivência mais ou menos eficazes.

O aquecimento global também está a reavivar os receios de um “vírus zumbi” libertado pelo permafrost siberiano, uma ameaça mantida intacta durante milênios, subitamente trazida à luz pelo derretimento do gelo. O zumbi é uma metáfora versátil, que incorpora diversas ansiedades de sua época.

Zumbis, diferenças étnicas e transgressão de fronteiras

Desde suas origens haitianas até hoje, o zumbi mudou de rosto muitas vezes. Originalmente designava as vítimas de feitiços de vodu, que poderiam tanto reviver os mortos quanto destruir a consciência de um ser vivo para torná-lo uma coisa maleável. Como tal, o zumbi é também uma figura de lavagem cerebral, de um homem esvaziado de sua substância espiritual.

No contexto da escravidão norte-americana, tornou-se uma metáfora para o escravo que voltou dos mortos, ou morto entre os vivos, transformado em coisa pelo trabalho exaustivo e desumano nas plantações de algodão. 

Depois, durante a Grande Depressão do final do século XIX (1873-1896), seguida alguns anos depois pela crise de 1929, o zumbi mudou de cor, passando do preto para o branco, para se tornar um símbolo dos trabalhadores brancos precários e empobrecido pela desaceleração da máquina capitalista. Ainda hoje, os zumbis estão ligados à exclusão social e às diferenças étnicas.

A herança étnica do zumbi é encontrada na representação da crise migratória dos países pobres do Sul para os países do Norte. Como tal, as histórias de zombies são uma metáfora ambivalente: serão favoráveis ​​aos migrantes, representados pelos não infectados que fogem do flagelo, com quem os leitores e espectadores encontram empatia? Ou será que, pelo contrário, demonizam a figura do migrante zumbi

Tal como o migrante, o zombi é um “outro” percebido como um perigo, um ser que ameaça invadir-nos e transformar-nos nele mesmo, alterando a nossa identidade (a série britânica In The Flesh mostra bem como os mortos-vivos encarnam medos xenófobos).

O zumbi surge como ondas migratórias, sem que pareça possível interromper seu curso com a ajuda de qualquer muro, mais cedo ou mais tarde atravessado pelos condenados. 

Um dos cartazes espetaculares do blockbuster Guerra Mundial Z mostra uma incrível pilha de ghouls, equilibrados por um milagre da gravidade, tentando alcançar o helicóptero que inclui homens ainda vivos.


A imagem do muro que cede diante da onda de zumbis é atual nas representações do gênero, e só pode evocar outros muros e fronteiras destinadas, em todo o muro, a repelir os indesejáveis. Deste ponto de vista, os mortos-vivos são obviamente políticos, e os investigadores dos estudos culturais anglo-americanos tendem a decifrar o zombie como um objeto cultural revelador de tendências progressistas ou conservadoras.

Zumbis e crise ecológica

Se o zombie reconhece o fracasso das fronteiras em conter os migrantes, também se refere ao fracasso dos seres humanos em conter a crise climática. No livro Guerra Mundial Z, de Max Brooks, os refugiados se deslocam do Sul para o Norte, porque os zumbis estão congelando no extremo Norte; É difícil não pensar nos movimentos migratórios provocados pelo aquecimento global.

Imagem da sexta extinção em massa, a guerra dos zumbis metaforiza nossas preocupações ambientais. Da mesma forma, as cinzas que cobrem a superfície da Terra, visíveis do espaço, devem-se aos corpos de zumbis que são queimados em todo o mundo; mas essa fumaça só pode sugerir poluição. 

Na Zona Um, as cinzas dos zumbis caem sobre os corpos dos heróis como resíduos de um derramamento de óleo (Whitehead, 90). Por último, o zombie como corpo carnívoro também se refere ao nosso consumo de carne, muitas vezes apontado por razões de exploração animal, bem como pelas emissões de CO₂ que isso implica.

Zumbis, exploração e sociedade de consumo

Devorando corpos, os mortos-vivos também são consumidores frenéticos, imagens de nós mesmos diante do último iPhone. 

O zumbi come tudo o que encontra, sem consciência nem discernimento: como tal, pode simbolizar a relação com o mundo induzida pelo capitalismo desenfreado, que nos leva a consumir cada vez mais

Nos filmes de zumbis, desde o clássico de George Romero, A Noite dos Mortos-Vivos (1968), não é raro ver os heróis correndo para as lojas de departamentos para roubar os mantimentos, acompanhados de carrinhos de compras cheios de medo de perder. 

Da mesma forma, os heróis às vezes se refugiam em grandes centros comerciais, pensando que escaparão da ameaça mantendo um estado de sítio. Mas não é trancando-se num supermercado gigantesco que os heróis conseguem escapar, e a sociedade de consumo oferece apenas um refúgio temporário.

O zumbi, vivo e morto, também se refere ao sistema financeiro neoliberal, que, ao mesmo tempo que revela cada vez mais os seus limites, continua a impor as suas regras. A ideia de que estaríamos sujeitos à lei de um sistema moribundo inspirou, sem dúvida, os manifestantes disfarçados de mortos-vivos durante o movimento “Occupy Wall Street”.

Amy Bride mostra como, durante a crise de 2008, um banco insolvente, mas apoiado pelo governo, como o Goldman Sachs durante a crise do subprime, foi referido nos meios de comunicação como um “banco zombie”, pronto para infectar os mercados financeiros (Bride, 2019). 

A crise financeira levou assim a uma clara inflação de termos formados a partir da palavra “zumbi” para designar os erros do neoliberalismo.

Corpo e dentes, os mortos-vivos são metáforas polissêmicas, que remetem aos fluxos migratórios, ao aquecimento global, à especulação financeira ou mesmo à lavagem cerebral. 

Cada vez mais, os zombies estão a tornar-se parte do vocabulário atual no mundo anglo-americano: os nossos homólogos falam de “floresta zombie”, “energia zombie”, ou mesmo “empresas zombie”. "Sem dúvida, a língua francesa deverá ser rapidamente infectada por carniceiros".

Comentários

Post mais lidos nos últimos 7 dias

Canadenses vão à Justiça para que escola distribua livros ateus

René (foto) e Anne Chouinard recorreram ao Tribunal de Direitos Humanos do Estado de Ontário, no Canadá, para que a escola de seus três filhos permita a distribuição aos alunos de livros sobre o ateísmo, não só, portanto, a Bíblia. Eles sugeriram os livros “Livre Pensamento para Crianças” e “Perdendo a Fé na Fé: De Pregador a Ateu” (em livre tradução para o português), ambos de Dan Barker. Chouinard sugeriu dois livros à escola, que não aceitou Os pais recorreram à Justiça porque a escola consentiu que a entidade cristã Gideões Internacionais distribuísse exemplares da Bíblia aos estudantes. No mês passado, houve a primeira audiência. O Tribunal não tem prazo para anunciar a sua decisão, mas o recurso da família Chouinard desencadeou no Canadá uma discussão sobre a presença da religião nas escolas. O Canadá tem cerca de 34 milhões de habitantes. Do total da população, 77,1% são cristãos e 16,5% não têm religião. René e Anne são de Niágara, cidade perto da fronteira com...

90 trechos da Bíblia que são exemplos de ódio e atrocidade

Bento 16 associa união homossexual ao ateísmo

Papa passou a falar em "antropologia de fundo ateu" O papa Bento 16 (na caricatura) voltou, neste sábado (19), a criticar a união entre pessoas do mesmo sexo, e, desta vez, associou-a ao ateísmo. Ele disse que a teoria do gênero é “uma antropologia de fundo ateu”. Por essa teoria, a identidade sexual é uma construção da educação e meio ambiente, não sendo, portanto, determinada por diferenças genéticas. A referência do papa ao ateísmo soa forçada, porque muitos descrentes costumam afirmar que eles apenas não acreditam em divindades, não se podendo a priori se inferir nada mais deles além disso. Durante um encontro com católicos de diversos países, Bento 16 disse que os “cristãos devem dizer ‘não’ à teoria do gênero, e ‘sim’ à aliança entre homens e mulheres no casamento”. Afirmou que a Igreja defende a “dignidade e beleza do casamento” e não aceita “certas filosofias, como a do gênero, uma vez que a reciprocidade entre homens e mulheres é uma expressão da bel...

Eleição de Haddad significará vitória contra religião, diz Chaui

Marilena Chaui criticou o apoio de Malafaia a Serra A seis dias das eleições do segundo turno, a filósofa e professora Marilena Chaui (foto), da USP, disse ontem (23) que a eleição em São Paulo do petista Fernando Haddad representará a vitória da “política contra a religião”. Na pesquisa mais recente do Datafolha sobre intenção de votos, divulgada no dia 19, Haddad estava com 49% contra 32% do tucano José Serra. Ao participar de um encontro de professores pró-Haddad, Chaui afirmou que o poder vem da política, e não da “escolha divina” de governantes. Ela criticou o apoio do pastor Silas Malafaia, da Assembleia de Deus do Rio, a Serra. Malafaia tem feito campanha para o tucano pelo fato de o Haddad, quando esteve no Ministério da Educação, foi o mentor do frustrado programa escolar de combate à homofobia, o chamado kit gay. Na campanha do primeiro turno, Haddad criticou a intromissão de pastores na política-partidária, mas agora ele tem procurado obter o apoio dos religi...

Existe uma relação óbvia entre ateísmo e instrução

de Rodrigo César Dias   (foto)   a propósito de Arcebispo afirma que ateísmo é fenômeno que ameaça a fé cristã Rodrigo César Dias Acho que a explicação para a decadência da fé é relativamente simples: os dois pilares da religião até hoje, a ignorância e a proteção do Estado, estão sendo paulatinamente solapados. Sem querer dizer que todos os religiosos são estúpidos, o que não é o caso, é possível afirmar que existe uma relação óbvia entre instrução e ateísmo. A quantidade de ateus dentro de uma universidade, especialmente naqueles departamentos que lidam mais de perto com a questão da existência de Deus, como física, biologia, filosofia etc., é muito maior do que entre a população em geral. Talvez não existam mais do que 5% de ateus na população total de um país, mas no departamento daqueles cursos você encontrará uma porcentagem muito maior do que isso. E, como esse mundo de hoje é caracterizado pelo acesso à informação, como há cada vez mais gente escolarizada e dipl...

Quem matou Lennon foi a Santa Trindade, afirma Feliciano

Deus castigou o Beatle por falar ser mais famoso que Jesus, diz o pastor Os internautas descobriram mais um vídeo [ver abaixo] com afirmações polêmicas do pastor-deputado Marco Feliciano (PSC-SP), na foto. Durante um culto em data não identificada, ele disse que os três tiros que mataram John Lennon em 1980 foram dados um pelo Pai, outro pelo Filho e o terceiro pelo Espírito Santo. Feliciano afirmou que esse foi o castigo divino pelo fato de o Lennon ter afirmado que os Beatles eram mais famosos que Jesus Cristo. “Ninguém afronta Deus e sobrevive para debochar”, disse. Em 1966, a declaração de Lennon causou revolta dos cristãos, o que levou o Beatle a pedir desculpas. Feliciano omitiu isso. Em outro vídeo, o pastor disse que a morte dos integrantes da banda Mamonas Assassinas em acidente aéreo foi por vontade divina por causa das letras chulas de suas músicas. "Ao invés de virar pra um lado, o manche tocou pra outro. Um anjo pôs o dedo no manche e Deus fulminou aque...

Papa afirma que casamento gay ameaça o futuro da humanidade

Bento 16 disse que as crianças precisam de "ambiente adequado" O papa Bento 16 (na caricatura) disse que o casamento homossexual ameaça “o futuro da humanidade” porque as crianças precisam viver em "ambientes" adequados”, que são a “família baseada no casamento de um homem com uma mulher". Trata-se da manifestação mais contundente de Bento 16 contra a união homossexual. Ela foi feita ontem (9) durante um pronunciamento de ano novo a diplomatas no Vaticano. "Essa não é uma simples convenção social", disse o papa. "[Porque] as políticas que afetam a família ameaçam a dignidade humana.” O deputado Jean Wyllys (PSOL-RJ) ficou indignado com a declaração de Bento 16, que é, segundo ele, suspeito de ser simpático ao nazismo. "Ameaça ao futuro da humanidade são o fascismo, as guerras religiosas, a pedofilia e o abusos sexuais praticados por membros da Igreja e acobertados por ele mesmo", disse. Tweet Com informação...

Pastor Caio diz que Edir Macedo tem 'tarugo do diabo no rabo'

Caio diz que Macedo usa o paganismo Edir Macedo está com medo de morrer porque sabe que terá de prestar contas de suas mentiras a Deus, disse o pastor Caio Fábio D'Araújo (foto), 56, da denominação Caminho da Graça. “Você [Edir] está com o tarugo do diabo no rabo”, afirmou, após acusar o fundador da Igreja Universal de ter se "ajoelhado" diante dos “príncipes deste mundo para receber esses poderes recordianos” (alusão à Rede Record). Em um vídeo de 4 minutos [segue abaixo uma parte]  de seu canal no Youtube, Caio Fábio, ao responder um e-mail de um fiel, disse que conhece muito bem o bispo Edir Macedo porque já foi pastor da Igreja Universal. Falou que hoje Macedo está cheio de dinheiro e que se comporta como um “Nerinho de Satanás” caminhando para morte e “enganando milhares de pessoas”. O pastor disse que, para Macedo, o brasileiro é pagão, motivo pelo qual o fundador da Igreja Universal “usa o paganismo” como recurso de doutrinação. “Só que Jesu...

Roger Abdelmassih agora é também acusado de erro médico

Mais uma ex-paciente do especialista em fertilização in vitro Roger Abdelmassih (foto), 65, acusa-o de abuso sexual. Desta vez, o MP (Ministério Público) do Estado de São Paulo abriu nova investigação porque a denúncia inclui um suposto erro médico. A estilista e escritora Vanúzia Leite Lopes disse à CBN que em 20 de agosto de 1993 teve de ser internada às pressas no hospital Albert Einstein, em São Paulo, com infecção no sistema reprodutivo. Uma semana antes Vanúzia tinha sido submetida a uma implantação de embrião na clínica de Abdelmassih, embora o médico tenha constatado na ocasião que ela estava com cisto ovariano com indício de infecção. Esse teria sido o erro dele. O implante não poderia ocorrer naquelas circunstâncias. A infecção agravou-se após o implante porque o médico teria abusado sexualmente em várias posições de Vanúzia, que estava com o organismo debilitado. Ela disse que percebeu o abuso ao acordar da sedação. Um dos advogados do médico nega ter havido violê...