Pular para o conteúdo principal

Experiência constitucional brasileira respalda a laicidade de Estado

Já no governo provisório do Marechal Deodoro, de 1889 a 1891, o Decreto 119-A, de Ruy Barbosa, instituiu a separação entre Igreja e Estado


Celso Lafer
professor emérito da Faculdade de Direito da USP

A República em nosso país data de 1889. Assinalou-se por representar uma contraposição às instituições do Brasil império. Neste ano [2019], que marca os 120 anos da existência e vigência das instituições republicanas, retomo, para destacar, uma mudança de maior significado e duradoura importância para o país. 

Refiro-me à implantação da laicidade do Estado, que tem como uma de suas características essenciais a separação da Igreja e do Estado, vale dizer, uma nítida distinção entre, de um lado, instituições, motivações e autoridades religiosas e, de outro, instituições estatais e autoridades políticas, de tal forma que não haja predomínio da religião sobre a política.

Um Estado laico diferencia-se de um Estado teocrático, no âmbito do qual o poder religioso e o político se fundem. É o caso da Arábia Saudita e do Irã. Diferencia-se igualmente de um Estado confessional, no âmbito do qual existem vínculos entre o poder político e uma religião. Foi o caso do Brasil império, que afirmou o catolicismo como a religião oficial, mas assegurou a liberdade de opinião e de culto de outras religiões.


A laicidade não se circunscreve ao reconhecimento da liberdade de consciência, religião e culto, que confere à livre e autônoma consciência do indivíduo a adesão, ou não, a uma religião. Significa que o Estado se dessolidariza e se afasta de toda e qualquer religião, em função de um muro de separação entre Estado e Igreja, como institucionalmente consubstanciado pela Primeira Emenda da Constituição norte-americana, na leitura de Thomas Jefferson.

Ruy Barbosa assimilou a visão norte-americana. Nessa linha é de sua autoria, ainda na vigência do governo provisório de Deodoro, o Decreto n.º 119-A, que implantou a separação da Igreja e do Estado em nosso país. Essa separação adquiriu sua institucionalidade própria no artigo 72 da Constituição de 1891, a primeira Constituição republicana do Brasil. Nos termos do artigo 72, passaram a integrar a moldura da laicidade no Brasil: 1) a secularização do registro civil, do casamento, da administração dos cemitérios, desvinculando do âmbito da Igreja o reconhecimento jurídico dos momentos de vida do cidadão – do seu nascimento à sua morte; 2) a obrigação de ser leigo o ensino ministrado nos estabelecimentos públicos; e 3) a determinação de que “nenhum culto ou igreja gozará de subvenção oficial, nem terá relações de dependência ou aliança com o governo da União ou dos Estados”.

O artigo 72 integra a Declaração de Direitos da Constituição de 1891. Daí o vínculo entre laicidade e direitos humanos. Estes tutelam, sem interferência estatal, a plenitude da liberdade individual de crenças, opiniões e religiões, no âmbito de uma sociedade concebida como pluralista.

Na experiência constitucional brasileira, que retoma a linha inaugurada pela Constituição de 1891, a laicidade diz respeito ao Estado, que é neutro em matéria de religião e não exerce atividades religiosas. Esse é o significado da inserção do artigo 19, que dispõe sobre a laicidade na Constituição de 1988, no âmbito do seu Título III, que trata da organização do Estado.

Um Estado laico não implica a laicidade da sociedade civil. Esta se caracteriza como uma esfera autônoma e própria para o exercício, sem interferência do Estado, da liberdade religiosa e de consciência, tutelada pelas garantias individuais dos direitos humanos. Trata-se de expressão da sabedoria liberal da arte da separação de esferas, que encontra uma primeira formulação na lição evangélica “a César o que é de César, a Deus o que é de Deus”.

A laicidade vincula-se à desconcentração do poder ideológico num mundo mais secularizado. Politicamente é uma forma de responder aos ímpetos intransitivos da intolerância, criando no espaço público uma linguagem compartilhável. É nesse contexto que Rawls sugere subtrair da agenda pública as verdades da religião.

A laicidade contribui para conter a intolerância ao propiciar a convivência democrática de verdades contrapostas, religiosas e políticas. Enseja a aceitação do “diferente”, diluindo os preconceitos que gera. Favorece a dimensão ética do respeito pela dignidade do Outro. Esclarece a dimensão epistemológica de que a verdade não é, ontologicamente, una, mas múltipla, e tem várias faces.

Destaco esses aspectos para observar que na vida da sociedade brasileira existem muitas matérias em que tanto o Estado quanto as religiões têm normas e princípios próprios. São exemplos dessas res mixtae as políticas de vida, o divórcio, o aborto, a natureza e o papel do ensino, o controle da natalidade, o significado da família, a abrangência do escopo da pesquisa científica.

Num Estado laico não cabe, por obra de dependência ou aliança com qualquer religião, impor e sancionar juridicamente normas ético-religiosas próprias à fé de uma confissão. Com efeito, num Estado laico, as normas religiosas das diversas confissões são conselhos e orientações dirigidos aos fiéis, e não comandos para toda a sociedade.

A lição de laicidade positivada em nosso país pela República tem como finalidade garantir ao cidadão, como indivíduo, no âmbito da sociedade civil, a liberdade de religião e de pensamento, possibilitando a diferenciação em matéria de ideologias religiosas e culturais. Trata-se do campo das liberdades individuais a serem tuteladas, sem arbítrios e discriminações, de acordo com as disposições do ordenamento jurídico. A finalidade pública da laicidade é criar para todos os cidadãos, não obstante sua diversidade e os conflitos político-ideológicos, uma plataforma comum na qual possam encontrar-se enquanto integrantes de uma comunidade política democrática. É essa finalidade que cabe resguardar em nosso país para conter o indevido risco de transbordamento da religião para o espaço público.

Esse artigo foi publicado originalmente pelo "O Estado de S.Paulo" em 20 de janeiro de 2019.

• Estado laico brasileiro foi criado em 1890, mas ainda é frágil

• Em Estado laico ninguém pode impor sua religião à sociedade

• Políticos adotam pregação de pastores

Comentários

Post mais lidos nos últimos 7 dias

90 trechos da Bíblia que são exemplos de ódio e atrocidade

Fundamentalismo de Feliciano é ‘opinião pessoal’, diz jornalista

Sheherazade não disse quais seriam as 'opiniões não pessoais' do deputado Rachel Sheherazade (foto), apresentadora do telejornal SBT Brasil, destacou na quarta-feira (20) que as afirmações de Marco Feliciano tidas como homofóbicas e racistas são apenas “opiniões pessoais”, o que pareceu ser, da parte da jornalista,  uma tentativa de atenuar o fundamentalismo cristão do pastor e deputado. Ficou subentendido, no comentário, que Feliciano tem também “opiniões não pessoais”, e seriam essas, e não aquelas, que valem quando o deputado preside a Comissão de Direitos Humanos e Minorias, da Câmara. Se assim for, Sheherazade deveria ter citado algumas das opiniões “não pessoais” do pastor-deputado, porque ninguém as conhece e seria interessante saber o que esse “outro” Feliciano pensa, por exemplo, do casamento gay. Em referência às críticas que Feliciano vem recebendo, ela disse que “não se pode confundir o pastor com o parlamentar”. A jornalista deveria mandar esse recado...

Ateu usa coador de macarrão como chapéu 'religioso' em foto oficial

PMs de Cristo combatem violência com oração e jejum

Violência se agrava em SP, e os PMs evangélicos oram Houve um recrudescimento da violência na Grande São Paulo. Os homicídios cresceram e em menos de 24 horas, de anteontem para ontem, ocorreram pelo menos 20 assassinatos (incluindo o de policiais), o triplo da média diária de seis mortes por violência. Um grupo de PMs acredita que pode ajudar a combater a violência pedindo a intercessão divina. A Associação dos Policiais Militares Evangélicos do Estado de São Paulo, que é mais conhecida como PMs de Cristo, iniciou no dia 25 de outubro uma campanha de “52 dias de oração e jejum pela polícia e pela paz na cidade”, conforme diz o site da entidade. “Essa é a nossa nobre e divina missão. Vamos avante!” Um representante do comando da corporação participou do lançamento da campanha. Com o objetivo de dar assistência espiritual aos policiais, a associação PMs de Cristo foi fundada em 1992 sob a inspiração de Neemias, o personagem bíblico que teria sido o responsável por uma mobili...

Wyllys vai processar Feliciano por difamação em vídeo

Wyllys afirmou que pastor faz 'campanha nojenta' contra ele O deputado Jean Wyllys (PSOL-RJ), na foto, vai dar entrada na Justiça a uma representação criminal contra o pastor e deputado Marco Feliciano (PSC-SP) por causa de um vídeo com ataques aos defensores dos homossexuais.  O vídeo “Marco Feliciano Renuncia” de oito minutos (ver abaixo) foi postado na segunda-feira (18) por um assessor de Feliciano e rapidamente se espalhou pela rede social por dar a entender que o deputado tinha saído da presidência da Comissão dos Direitos Humanos e Minorias, da Câmara. Mas a “renúncia” do pastor, no caso, diz o vídeo em referência aos protestos contra o deputado, é à “privacidade” e às “noites de paz e sono tranquilo”, para cuidar dos direitos humanos. O vídeo termina com o pastor com cara de choro, colocando-se como vítima. Feliciano admitiu que o responsável pelo vídeo é um assessor seu, mas acrescentou que desconhecia o conteúdo. Wyllys afirmou que o vídeo faz parte de uma...

Embrião tem alma, dizem antiabortistas. Mas existe alma?

por Hélio Schwartsman para Folha  Se a alma existe, ela se instala  logo após a fecundação? Depois do festival de hipocrisia que foi a última campanha presidencial, com os principais candidatos se esforçando para posar de coroinhas, é quase um bálsamo ver uma autoridade pública assumindo claramente posição pró-aborto, como o fez a nova ministra das Mulheres, Eleonora Menicucci. E, como ela própria defende que a questão seja debatida, dou hoje minha modesta contribuição. O argumento central dos antiabortistas é o de que a vida tem início na concepção e deve desde então ser protegida. Para essa posição tornar-se coerente, é necessário introduzir um dogma de fé: o homem é composto de corpo e alma. E a Igreja Católica inclina-se a afirmar que esta é instilada no novo ser no momento da concepção. Sem isso, a vida humana não seria diferente da de um animal e o instante da fusão dos gametas não teria nada de especial. O problema é que ninguém jamais demonstrou que ...

Presas ameaçam matar empresária acusada de torturar menina

As presas da Casa de Prisão Provisória, em Aparecida de Goiânia, estão ameaçando de morte “o tempo todo” a empresária Sílvia Calabresi Lima (foto), acusada de torturar a menina L.R.S., de 12 anos. “As presas não toleram esse crime”, disse o advogado dela, Darlan Alves Ferreira. As ameaças incluem envenenamento da água e comida de Sílvia. Apesar disso, até anteontem a empresária queria sair do isolamento e ser transferida para ala onde há cerca de 120 mulheres. A reação dos internautas também de sido de fúria. Nos blogs, sites de notícias e Youtube, há quem peça pena de morte para a empresária. Muitos dizem que, se pudessem, torturariam a Sílvia da mesma forma que ela o fez com a menina. Também circulam na internet o endereço do casal, os números de telefone e o e-mail do filho mais velho, o Thiago, que é uma das seis pessoas que a polícia vai indiciar - no caso dele, por omissão de socorro. Embora a polícia tenha se procedido de maneira exemplar nesse caso, tem muita gente querendo fa...

Defensores do Estado laico são ‘intolerantes’, diz apresentadora

Evangélico quebrou centro espírita para desafiar o diabo

"Peguei aquelas imagens e comei a quebrar" O evangélico Afonso Henrique Alves , 25, da Igreja Geração Jesus Cristo, postou vídeo [ver abaixo] no Youtube no qual diz que depredou um centro espírita em junho do ano passado para desafiar o diabo. “Eu peguei todas aquelas imagens e comecei a quebrar...” [foto acima] Na sexta (19), ele foi preso por intolerância religiosa e por apologia do ódio. “Ele é um criminoso que usa a internet para obter discípulos”, disse a delegada Helen Sardenberg, depois de prendê-lo ao término de um culto no Morro do Pinto, na Zona Portuária do Rio. Também foi preso o pastor Tupirani da Hora Lores, 43. Foi a primeira prisão no país por causa de intolerância religiosa, segundo a delegada. Como 'discípulo da verdade', Alves afirma no vídeo coisas como: centro espírito é lugar de invocação do diabo, todo pai de santo é homossexual, a imprensa e a polícia estão a serviço do demônio, na Rede Globo existe um monte de macumbeiros, etc. A...

Físico afirma que cientistas só podem pensar na existência de Deus como hipótese