Pular para o conteúdo principal

Igreja tem nostalgia do tempo em que mandava no Brasil

Católicos também anseiam por um Estado teocrático

por Carlos Orsi
para revista Amálgama

Deve haver alguma razão pela qual a psicanálise só é levada a sério, hoje em dia, em países de cultura católica, como Brasil e França. Esse negócio de um bando de marmanjos celibatários prostrarem-se, em êxtase, diante de uma mãe virgem morta dá a bobagens como o Complexo de Édipo uma inusitada aura de plausibilidade.

Tal foi o primeiro pensamento que me ocorreu quando soube, via redes sociais, da decisão da Justiça goiana de proibir as obras da artista Ana Paula Dornelas Guimarães de Lima, da Santa Blasfêmia, que funde figuras da cultura pop – do Batman ao Chapolim Colorado – às representações tradicionais das imagens de santos católicos, com ênfase especial nas figuras marianas.

Na melhor tradição dos censores de bom coração que grassam no Judiciário tupiniquim, o juiz, que atendeu a pedido da Arquidiocese de Goiânia, decidiu que o princípio constitucional da liberdade de expressão e de criação artística é valioso – mas não absoluto! – e deve sucumbir diante de princípios mais importantes. Quais? O “direito de imagem” da Igreja Católica.

Curioso: eu sabia que a Disney havia conseguido prorrogar o copyright de Mickey Mouse para quase um século, mas desconhecia garantias milenares de propriedade intelectual. Se Sherlock Holmes, publicado pela primeira vez há menos de 200 anos, está em domínio público, é de se esperar que a mitologia romano-bizantina também esteja.

Erotismo enrustido de
católicos não deveria
envolver o Estado
O erotismo enrustido da histeria católica em torno de seus ícones – estão aí os videoclipes de Madonna, a apropriação gay da figura de São Sebastião e, para quem tem gostos mais literários, O Nome da Rosa, que não me deixam mentir – deveria ser só mais uma questiúncula teológica para os cristãos resolverem lá entre eles, junto com a transubstanciação e o anabatismo. Mas quando a coisa acaba envolvendo o Estado e, por tabela, os direitos fundamentais de não-católicos, até quem não tem paciência para essas bobagens acaba sendo forçado a se manifestar, sob pena de, um dia, acordar numa teocracia. 

As pessoas acham que a ameaça de um “Estado teocrático” hoje reside principalmente nos evangélicos mais vociferantes. A Igreja Católica costuma cultivar um verniz de sofisticada tolerância, mas isso não passa de manobra diversionista: os suspiros de saudade dos tempos em que papas coroavam imperadores e bispos manietavam príncipes estão aí para quem quiser ouvir.

Claro, todo mundo tem direito às próprias aspirações e nostalgias, mas o Estado democrático existe para impedir que os sonhos mais totalitários se tornem realidade. Um autor certa vez escreveu que hereges e bruxas não são mais queimados em praça pública não porque a Santa Madre se convenceu de que isso é errado, mas porque o Estado parou de colaborar. No Brasil, ao que tudo indica, nem tanto.

Reproduzo, aqui, uma humilde lista cronológica de cumplicidades vexatórias entre agentes do Estado brasileiro e figuras da Igreja de Roma, unidos contra direitos legítimos de brasileiros, que é capaz de fazer o Malafaia corar de inveja. Também destaco que a lista não inclui interferências em escala estadual e municipal, como os inúmeros casos de padres e bispos que induzem prefeitos e vereadores a sabotar programas de saúde pública voltados para os direitos reprodutivos da mulher, como a distribuição de pílulas do dia seguinte em postos municipais.

1986: Recém-saído de uma ditadura de duas décadas, o Brasil ressuscita uma das marcas do período autoritário, a censura de artes e espetáculos, para evitar a exibição do filme Ave-Maria, de Jean-Luc Godard, considerado ofensivo aos católicos.

1995: Chute em imagem de gesso de santa católica leva a comoção nacional. Pastor Sérgio von Helde é condenado em público por figuras que vão de Afanásio Jadadzji ao então presidente Fernando Henrique Cardoso. O ato é tratado como um escandaloso caso de “intolerância religiosa”. Von Helde acaba condenado à prisão (o que, curiosamente, não é visto como uma reação intolerante), mas uma série de apelações e a morosidade da justiça brasileira atuam a seu favor.

2005: O então procurador-geral da República, Claudio Fonteles, católico fervoroso, vai ao STF para tentar invalidar a lei que autoriza pesquisas científicas com células-tronco. A Advocacia-Geral da União contesta a tese de Fonteles, denunciando-a como “embasadas na doutrina católica” e, portanto, sem valor jurídico num Estado laico. O STF acaba concordando com a Advocacia-Geral, mas só em 2008. Os prejuízos para a ciência brasileira, nesse meio-tempo, são imensos.

2006: Protestos de católicos levam o Banco do Brasil (empresa estatal de um Estado laico) a censurar as obras “Desenhando com Terços”, da artista plástica Márcia X, de sua mostra sobre arte erótica.

2008: Decisão judicial, em ação impetrada por padre católico, proíbe a Editora Abril de reutilizar as fotos da atriz Carol Castro segurando um terço, publicadas originalmente na revista Playboy, e impede ainda a realização de futuros ensaios fotográficos para a revista masculina envolvendo objetos de culto religioso.

E agora, 2016, a pedido de arquidiocese, juiz proíbe as imagens da Santa Blasfêmia. E, numa notícia (até o momento) menos divulgada, o Conselho Nacional de Justiça mandou o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul recolocar crucifixos em suas salas.

Se a série histórica mostra alguma coisa, é que a interferência tem se acelerado neste século 21. Se a situação política atual dá margem a preocupações legítimas quanto a retrocessos de origem teocrática na questão do aborto, a situação jurídica já me faz temer (sem trocadilho) pela camisinha e pelo divórcio.

Este texto foi publicado originalmente com o título "Só Freud Explica". Orsi é jornalista e escritor. É autor dos romances Guerra justa (2010) e As dez torres de sangue (2012), e de O livro dos milagres: A ciência por trás das curas pela fé, das relíquias sagradas e dos exorcismos (2011).






Comentários

Post mais lidos nos últimos 7 dias

90 trechos da Bíblia que são exemplos de ódio e atrocidade

Vicente e Soraya falam do peso que é ter o nome Abdelmassih

Ateísmo faz parte há milênios de tradições asiáticas

Chico Buarque: 'Sou ateu, faz parte do meu tipo sanguíneo'

Cinco deuses filhos de virgens morreram e ressuscitam. E nenhum deles é Jesus

Santuário Nossa Senhora Aparecida fatura R$ 100 milhões por ano

Basílica atrai 10 milhões de fiéis anualmente O Santuário de Nossa Senhora de Aparecida é uma empresa da Igreja Católica – tem CNPJ (Cadastro Nacional de Pessoa Jurídica) – que fatura R$ 100 milhões por ano. Tudo começou em 1717, quando três pescadores acharam uma imagem de Nossa Senhora no rio Paraíba do Sul, formando-se no local uma vila que se tornou na cidade de Aparecida, a 168 km de São Paulo. Em 1984, a CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil) concedeu à nova basílica de Aparecida o status de santuário, que hoje é uma empresa em franca expansão, beneficiando-se do embalo da economia e do fortalecimento do poder aquisitivo da população dos extratos B e C. O produto dessa empresa é o “acolhimento”, disse o padre Darci José Nicioli, reitor do santuário, ao repórter Carlos Prieto, do jornal Valor Econômico. Para acolher cerca de 10 milhões de fiéis por ano, a empresa está investindo R$ 60 milhões na construção da Cidade do Romeiro, que será constituída por trê...

Físico afirma que cientistas só podem pensar na existência de Deus como hipótese

Escritor ateu relata em livro viagem que fez com o papa Francisco, 'o louco de Deus'

Roger tenta anular 1ª união para se casar com Larissa Sacco

Médico é acusado de ter estuprado pacientes Roger Abdelmassih (foto), 66, médico que está preso sob a acusação de ter estuprado 56 pacientes, solicitou à Justiça autorização  para comparecer ao Tribunal Eclesiástico da Arquidiocese de São Paulo de modo a apresentar pedido de anulação religiosa do seu primeiro casamento. Sônia, a sua segunda mulher, morreu de câncer em agosto de 2008. Antes dessa união de 40 anos, Abdelmassih já tinha sido casado no cartório e no religioso com mulher cujo nome ele nunca menciona. Esse casamento durou pouco. Agora, o médico quer anular o primeiro casamento  para que possa se casar na Igreja Católica com a sua noiva Larissa Maria Sacco (foto abaixo), procuradora afastada do Ministério Público Federal. Médico acusado de estupro vai se casar com procuradora de Justiça 28 de janeiro de 2010 Pelo Tribunal Eclesiástico, é possível anular um casamento, mas a tramitação do processo leva anos. A juíza Kenarik Boujikian Fel...

Padre acusa ateus de defenderem com 'beligerância' a teoria da evolução