Pular para o conteúdo principal

O que conta é a virtude de cada um como ação num mundo sem honra

Título original: A ganância da honra

Cena do filme Glória Feita de Sangue

por Luiz Felipe Pondé para Folha

Que Deus me proteja de cair na tentação da ganância da honra. Aristóteles já dizia que a honra é uma virtude pública sedutora, mas impossível para quem a busca por si mesmo.

Sobre isso, revi o grande filme de Stanley Kubrick "Glória Feita de Sangue" (1957). Outro filme que recomendo é "A Cruz de Ferro" (1977), de Sam Peckinpah.

Ambos tratam da relação entre elite (oficiais) e plebe (soldado) -Kubrick na Primeira Guerra Mundial, Exército francês nas trincheiras, Peckinpah na Segunda Guerra, força armada alemã na frente russa.

No primeiro filme, o herói, o coronel Dax (Kirk Douglas), membro da elite francesa, se vê diante de uma trama na qual três de seus soldados são condenados injustamente à corte marcial e ao fuzilamento.

São acusados de covardia quando a missão para a qual tinham sido mandados era impossível. Não foram covardes, ficaram detidos pelas condições insuperáveis da batalha.

Mas a hierarquia queria mesmo era o sangue "do gado" para animar a moral das tropas, mostrando o valor da disciplina. O desprezo do coronel Dax pela elite do Exército é evidente, apesar de ser parte dela. O general em comando apenas queria uma promoção.

Segundo o general, o "povo francês" clamava pela sua dignidade, que deveria ser honrada com o sangue dos "covardes". "Povo francês" aqui nada mais é do que a retórica da opinião pública como instrumento de pressão. Confiar no "povo francês", como em sua elite, soará ridículo neste cenário.

No segundo filme, o herói, cabo Steiner (James Coburn), vindo da plebe, ganha várias cruzes de ferro por coragem sem dar valor a nenhuma delas ("só um pedaço de metal"), enquanto um capitão de família nobre prussiana, Stransky (Maximilian Schell), um covarde oportunista, cria situações para ganhar a cruz de ferro sem correr riscos.

O desprezo do cabo Steiner pela elite é também evidente, mas não é membro dela.

Em ambos os filmes, lembramos da tese do escritor russo Tolstói (em "Guerra e Paz") sobre guerras e batalhas (que fala da vida como um todo): um caos sem ordem, sem sentido, violência gratuita, a partir do qual, após a batalha, "reconstruímos o sentido" a fim de satisfazer qualquer ponto de vista, e, assim, contarmos "a" história.

Nutro profunda simpatia por esta teoria da história de Tolstói.

Os filmes seguem cursos diferentes. De certa forma, o filme de Kubrick vai mais longe do que o de Peckinpah na crítica ao modo como o mundo se organiza (sendo a guerra e o Exército em ambos apenas o cenário ideal para demonstrar suas teses).

Enquanto em "Cruz de Ferro" a coragem tem seu lugar (a medalha, apesar de o corajoso não dar valor a ela), em "Glória Feita de Sangue" a coragem é "invisível" para a hierarquia, que trata o herói Dax como um bobo idealista.

Onde está a coragem neste caso? Está na recusa do herói Dax da promoção que receberia como forma de acomodação ao status quo.

No filme de Peckinpah, ao final, Steiner arrasta o oportunista Stransky para o campo de batalha (já arrasado pelos russos), dizendo: "Vou mostrar a você onde crescem as cruzes de ferro" (isto é, diante do inimigo).

Já no filme de Kubrick não há espaço para essa ode última à coragem nas guerras, mas sim algo mais sutil: Dax, observando seus soldados à distância, quando urram num bar diante de uma "cantora" alemã (prisioneira de guerra), percebe como, de uma horda de bárbaros, eles passam à condição de homens tocados pela fragilidade da moça e pela beleza da música que ela canta, em meio às suas lágrimas de medo. Um dos maiores momentos do cinema.

Em ambos, vemos a ruína da ordem do mundo e seus mecanismos de produção da honra (representados pela hierarquia do Exército e seus sistemas oficiais de reconhecimento da coragem e da covardia).

Neste campo devastado, sobra a coragem de um homem solitário (Steiner) e a capacidade de um idealista aristocrático (Dax) de perceber um instante efêmero no qual feras se tornam homens. Ambos impermeáveis à ganância das honras.

Pouco importa a classe social -o que conta, ao final, é a virtude de cada um como modo de ação num mundo sem honra.

Só a rara beleza da coragem e da generosidade ilumina nossa escuridão.
janeiro de 2011

Artigos de Luiz Felipe Pondé.   > Posts deste mês.

Comentários

Anônimo disse…
Pondé é a reencarnação de Schopenhauer, nota -se perfeitamente a semelhança!
Anônimo disse…
Que artigo chato. 90% é sinopse de filme.
Anônimo disse…
Kkkkkkk querer ganhar uma cruz de ferro sem correr riscos!! Kkk que covardao! Kkk
esse cara precisa aprender onde crescem as cruzes de ferro mesmo! Kkk
Anônimo disse…
O que o mundo honra hoje? Status social, condição financeira favorável? títulos? Quem dera pudesse o mundo valorizar mais como se fez pra se conseguir essas coisas do que o que se tem ou o que se é. Como foi dito conseguir a cruz sem correr risco é o que todos querem (ou pelo menos a maioria). Excelente artigo!!!

Post mais lidos nos últimos 7 dias

90 trechos da Bíblia que são exemplos de ódio e atrocidade

Santuário Nossa Senhora Aparecida fatura R$ 100 milhões por ano

Origem da religião: ensinamentos dos nossos ancestrais monstruosos

Título original: Origem da religião na pré-história  por Luiz Felipe Pondé para Folha Muitos leitores me perguntaram o que aquela peça kafkiana cujo título era "Páscoa" queria dizer na coluna do dia 2/4/2012. O texto era simplesmente isto: a descrição de um ritual religioso muito próximo dos centenas de milhares que devem ter acontecido em nossa Pré-História. Horror puro, mas é assim que deve ter começado toda a gama de comportamentos que hoje assumimos como cheios de significados espirituais. Entender a origem de algo "darwinianamente", nada tem a ver com a "cara" que esse algo possui hoje. Vejamos o que nos diz um especialista. O evolucionista Stephen Jay Gould (1941-2002), num artigo de 1989 cujo título é The Creation Myths of Cooperstown , compara a origem mítica do beisebol (supostamente nascido em território americano e já "pronto") com a explicação evolucionaria do beisebol. Gould está fazendo no texto uma metáfora do...

Vicente e Soraya falam do peso que é ter o nome Abdelmassih

Neymar paga por mês R$ 40 mil de dízimo à Igreja Batista

É impossível livrar poder público da eligião, afirma jornalista

Título original: O nome de Deus por Hélio Schwartsman para Folha "'Deus seja louvado' no real não causa aborrecimento grave" Num ponto eu e a CNBB estamos de acordo: há coisas mais essenciais com as quais se preocupar do que o dito "Deus seja louvado" nas cédulas de real. Ainda assim, vejo com simpatia o pedido do Ministério Público para que a expressão seja retirada das notas. Sou ateu, mas convivo bem com diferenças. Se a religião torna um sujeito feliz, minha recomendação para ele é que se entregue de corpo e alma. O mesmo vale para quem curte esportes, meditação e literatura. Cada qual deve procurar aquilo que o satisfaz, seja no plano físico ou espiritual. Desde que a busca não cause mal a terceiros, tudo é permitido. Isso dito, esclareço que não acompanho inteiramente a tese do procurador Jefferson Aparecido Dias de que o "Deus seja louvado" constrange os que cultuam outras divindades ou não creem. Em teoria, isso pode ocorrer...

Limpem a boca para falar do Drauzio Varella, cristãos hipócritas!

Varella presta serviço que nenhum médico cristão quer fazer LUÍS CARLOS BALREIRA / opinião Eu meto o pau na Rede Globo desde o começo da década de 1990, quando tinha uma página dominical inteira no "Diário do Amazonas", em Manaus/AM. Sempre me declarei radicalmente a favor da pena de morte para estupradores, assassinos, pedófilos, etc. A maioria dos formadores de opinião covardes da grande mídia não toca na pena de morte, não discutem, nada. Os entrevistados de Sikera Júnior e Augusto Nunes, o povo cristão da rua, também não perdoam o transexual que Drauzio, um ateu, abraçou . Então que tipo de país de maioria cristã, tão propalada por Bolsonaro, é este. Bolsonaro é paradoxal porque fala que Jesus perdoa qualquer crime, base haver arrependimento Drauzio Varella é um médico e é ateu e parece ser muito mais cristão do que aqueles dois hipócritas.  Drauzio passou a vida toda cuidando de monstros. Eu jamais faria isso, porque sou ateu e a favor da pena de mor...

O incrível padre Meslier. Ateu enrustido, escreveu contundentes críticas ao cristianismo e a Jesus

Universal usa queda de prédios para amedrontar ex-fiéis

Escombros dos prédios onde morreram 17 pessoas Incorporado em uma mulher, o diabo compareceu em um culto da Universal para dizer ter sido ele que derrubou os três prédios do centro do Rio porque lá havia ex-obreiros e um ex-pastor da igreja. Ele afirmou que os ex-fiéis estão agora no inferno, “chorando sangue”. Trata-se de uma encenação da Universal para amedrontar os fiéis que saíram da denominação rumo à Igreja Mundial, na expectativa de que eles voltem para não ter de pagar a sua traição com uma maldição. A mensagem subliminar que a igreja passa é essa. Esse terrorismo serve também para inibir novas defecções – inclusive de pastores -- em favor da igreja de Valdemiro Santiago, cuja colheita de dízimo deve estar aumentando na proporção em que a da Universal cai. Cultos e programas da TV Iurd, na internet, têm apresentado outros casos de fiéis que foram penalizados porque deixaram a Universal, na mistificação construída pelos pastores, incluindo Edir Macedo, o chefe...

Dispara no Brasil a busca pela palavra 'ateu', revela Google

Em abril de 2012, o Google Brasil registrou o maior volume de busca pela palavra “ateu”. O maior índice de interesse é representado por 100, o que significa que, desde 2004, quando a pesquisa começou a ser tabulada, houve um aumento de 85%. Naquele ano, o volume de busca pela palavra foi 54. Aumentou no Brasil interesse pelo ateísmo O gráfico gerado pela página Trends do Google (ver acima) mostra uma curva em ascensão, com um salto a partir de novembro de 2011, quando o volume de busca de 65 foi para 91 em dezembro do mesmo ano. De acordo com a projeção do Google, o volume de busca de dezembro de 2013 registrará novo recorde. O buscador não fornece o número absoluto das buscas, em milhares ou milhões. Na lista de termos relacionados, “o ateu” apareceu com o maior volume de interesse, vindo em seguida “deus ateu”, “ser ateu” e "ateus" (ver abaixo os dez termos mais solicitados). Na opção “título das notícias”, o Google informa, por exemplo, que em dezembro de 2...