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Vida de criança prevalece sobre liberdade de culto


por Diaulas Costa Ribeiro
para o caderno Aliás do Estado de S.Paulo

Uma adolescente de 13 anos morreu na míngua de uma transfusão de sangue. A mãe e a menor eram Testemunhas de Jeová e não deram consentimento para o ato médico. O pai teria sido omisso e concorrido para a morte. Um médico da mesma religião teria interferido para que não fosse realizada a transfusão, sendo, assim como os pais, processado. Os três serão julgados pelo Tribunal do Júri por homicídio doloso.

As Testemunhas de Jeová adotaram essa denominação em 1931, inspiradas no Livro de Isaías. Dentre os dogmas que professam, o mais conhecido é a recusa à transfusão de sangue, baseado no Livro dos Atos dos Apóstolos: “Pareceu bem ao Espírito Santo e a nós não vos impor outro jugo além destes, que são indispensáveis: que vos abstenhais das carnes imoladas aos ídolos, do sangue, das carnes sufocadas e das uniões ilegítimas”. A proibição de se alimentar de sangue constitui dogma de outras religiões. Mas a transfusão é proibida apenas entre as Testemunhas de Jeová, o que tem gerado conflitos entre médicos, familiares e pacientes.

As teses debatidas confrontam o direito à vida e a liberdade de culto e, ainda, o direito à autonomia. O maior desafio é a compatibilização do direito à vida com a autonomia. Do mandamento hipocrático “a saúde do doente é a lei suprema” passamos para “a vontade do paciente é a lei suprema”. Um dos documentos sobre essa mudança, o Relatório Belmont, de 1979, consagrou a autonomia como proteção das pessoas. Trata-se de diretriz para obtenção do consentimento informado, exigido em todo e qualquer ato médico.

A dispensa de consentimento para intervenções médicas decorreu do positivismo do século XIX. Augusto Comte teve sua doutrina incorporada à prática médica para afastar a relevância do subjetivismo do paciente para expressar sintomas e avaliar opções de tratamento, consolidando-se o paternalismo médico.

Freud reintroduziu a palavra do paciente na sua relação com o médico, dando voz a uma ciência que havia se tornado muda. Devemos a ele e à Bioética a valorização do diálogo como fonte da autonomia. Não há, porém, fundamento para se acatar o consentimento nem o dissenso pessoal de incapazes, incluindo os menores de idade, que devem ser representados pelos seus pais, curadores ou outras pessoas indicadas legalmente.

No caso referido, ainda que a menor tomasse a decisão de não aceitar o sangue, caberia à mãe e/ou ao pai superar o dissenso e autorizar o procedimento. Jamais poderiam endossar a decisão da filha, cuja opinião não tinha relevância jurídica, não se podendo transferir para sua memória a opção que resultou na tragédia. Também não pode ser atribuída aos médicos assistentes a responsabilidade pela morte. O dilema de um médico ante a recusa dos pais em casos semelhantes tem sido resolvido no Ministério Público e no Poder Judiciário. Quando realizam transfusões contra a vontade de pacientes Testemunhas de Jeová, têm sido processados por danos morais.

As Testemunhas de Jeová têm Comissões de Ligação com Hospitais (COLIH) para intermediar conflitos entre médicos e pacientes. Essas comissões procuram convencer os profissionais a realizar cirurgias sem sangue ou a não realizar transfusões em casos não cirúrgicos. Mas os membros da COLIH têm responsabilidade penal pelas mortes, quando houver nexo causal entre elas e suas intervenções. Por isso, é acertada a promoção de ação penal contra o médico que interferiu no trabalho de seus colegas para defender os valores de sua própria religião.

Não se pode confundir a posição aqui defendida com aquela inscrita no parágrafo único do art. 41 do Novo Código de Ética Médica, que trata da suspensão de esforço terapêutico de paciente em fase terminal de doença incurável: “Nos casos de doença incurável e terminal, deve o médico oferecer todos os cuidados paliativos disponíveis sem empreender ações diagnósticas ou terapêuticas inúteis ou obstinadas, levando sempre em consideração a vontade expressa do paciente ou, na sua impossibilidade, a de seu representante legal”.

No caso de paciente capaz, que se recusa a receber sangue, remanesce o direito à alta. Mas se perder a capacidade e for internado com risco de morte, a transfusão deverá ser empreendida. Tratando-se de menor, se os pais o retirarem de um hospital para inviabilizar o procedimento, caberá até a busca e apreensão e a suspensão do poder parental, realizando-se a transfusão com intervenção judicial.

Portanto, ainda não há espaço de consenso ético nem jurídico para se permitir a morte de incapazes, tratáveis com transfusão de sangue medicamente indicada. Por mais que a liberdade de culto seja garantia constitucional, no confronto entre dogmas religiosos e valores laicos, deverá prevalecer o valor neutro mais amigo do incapaz, neste caso, a vida. 

Somente o STF poderá declarar entendimento diferente. As Testemunhas de Jeová podem pedir uma posição do Supremo. Se for declarada constitucional a renúncia à vida a ser vivida, parte desse debate estará superada. A questão residual se limitará à objeção de consciência de cada médico, a ser regulada pelo Conselho Federal de Medicina.

Até as guerras se humanizam quando Deus é deixado fora do campo de batalha. Esse debate, e também outros sobre temas correlatos, precisam ser humanizados.

Diaulas Costa Ribeiro é promotor de Justiça e professor da Universidade Católica de Brasília.

novembro de 2010

Casos de fanatismo das Testemunhas de Jeová.

Outros casos de fanatismo. 



Comentários

juliano disse…
morreu por motivo banal, estúpido decorrente a lavagem cerebral..infelizmente a religião tem poder de levar pessoas a idade da pedra!!
Unknown disse…
Não entendo porque tanta atenção com as Testemunhas de Jeová neste caso que ocorreu em 1993 e que o deficiente modelo jurídico levou até aqui 17 anos, não para julgar mas ainda levar para juri popular. Falou aqui sobre o direito a vida! Ética médica! Com todo respeito, se assistir os teles jornais, ou melhor, se observar o modelo de atendimento dos hospitais públicos ou privados, chegará a conclusão que essa matéria é uma grande demagogia. Quantas campanhas não são feitas para arrecadar dinhero para uma pessoa operar, senão morre mesmo! Atrasa seu convenio e tenta ser atendido!
Inácio José de Carvalho Neto disse…
Em vista deste caso, afirmo que os únicos culpados são os médicos, pois mesmo contra a vontade deles, são obrigados a aceitarem a opção do paciente ou de seus responsáveis, e Juliano a religião, dependendo dela não leva as pessoas a Idade da Pedra, e neste caso a religião esta a frente da Era Moderna, visto que transfusões de sangue, além de serem inseguras são obsoletas, pois a vários métodos cientificamente comprovados mais seguros que uma transfusão, por exemplo, se você sofrece um corte em seu membro o que você faria: passaria a uzar uma gaze com mertiolate para estancar o sangramento ou colocaria areia suja? Ambos param o sangramento, mas qual é o mais seguro? O mesmo se da com uma transfusão - a transfusão é a areia contaminada e a gaze e mertiolate métodos mais seguros de uso... Meu avô paterno que NÃO é Testemunha de Jeová fez 2 cirurgias do coração SEM O USO DE SANGUE e esta hoje muito bem, ao passo que um pai de um amigo meu que também não era Testemunha de Jeová faz a transfusão em uma cirurgia, após 20 anos, descobriu que estava com HIV e após 7 morreu.
Anônimo disse…
Depois de 20 anos descobriu que tinha HIV? Sei, tempo mais suficiente para contrair uma doença por outro método não?

Em geral, a pessoa pode ficar sem perceber q tem a doença durante meses, até mesmo anos; mas VINTE anos é muito tempo. Bem possível ter adquirido por outro meio.. E outra coisa, a transfusão sanguínea só é perigosa se o sangue usado tiver sido tratado por pessoas incapazes para tais procedimentos. Se forem respeitados, será tão segura quanto útil em salvar uma vida.

Ah, quase que ia me esquecendo, uma cirurgia pode sim ser feita sem o uso do sangue, mas isso só vale quando o fator sangue não é tão importante (casos onde o sangue do paciente já está presente em quantidade suficiente para manter a vida deste), mas quando este é o fato principal ou perto disso, é imprescindível o uso de sangue (como os pacientes com hemofilia que tenham o baço rompido, vítimas de trânsito onde tenha sido amputados membros e o socorro mesmo rápido não impediu a perda de grandes quantidades de sangue etc.).

E religião é inútil, é uma bestialidade! Sempre pensei que a época da mitologia houvesse passado, mas vi que a mitologia para a nossa época é a religião das outras, e não a da nossa própria. Infelizmente!

Obs.: Independente da sua religião (ou falta dela), crendo ou não em deus, saibam de uma coisa: sigam o que acreditam, mas se o que acreditam começar a influir na minha vida e me incomodar, já não terás mais meu apoio e tbm irei impor o que acredito, afinal se tens o direito, tereis os meus tbm...
Anônimo disse…
Engraçado... e o direito inalienável à vida desde à concepção??? Por que geralmente os ateus são favoráveis ao aborto, sendo que se encaixa exatamente neste artigo?

Por uma questão de "fé" dos ateus na não-existência de Deus, e também das pessoas que professam que aborto é um direito da mulher, muitas crianças são cruelmente assassinadas ainda no ventre da mãe.

O próprio título denuncia o artigo.
Seu mongol que está aí em cima, o feto NÃO É UMA CRIANÇA, e até os 3 meses, não sente dor. Ele não é nem capaz de pensar! Matar um animal que sente dor e pensa para comer pode, mas matar um ser que não sente dor nem pensa só por causa de um moralismo idiota é bem legal, né... Só podia ser teísta. Teísmo = burrice

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