Pular para o conteúdo principal

Para algozes de tribunais de bruxas de Salem, cães eram encarnações do diabo

Não foi uma boa época para os cães — eles eram maltratados devido a sua suposta associação com o mal; um poodle, por exemplo, foi considerado ter poderes sobrenaturais


Bridget Marshall
professor de Inglês, UMass Lowell, Estados Unidos

The Conversationl
plataforma de informação produzida por acadêmicos e jornalistas

Eu dou um curso sobre julgamentos de bruxaria na Nova Inglaterra, e os alunos sempre chegam com diferentes graus de conhecimento sobre o que aconteceu em Salem, Massachusetts, em 1692.

Dezenove pessoas acusadas de bruxaria foram executadas por enforcamento, outra foi esmagada até a morte e pelo menos 150 foram presas em condições que causaram a morte de pelo menos mais cinco inocentes.

A cada semestre, alguns alunos me perguntam sobre histórias que ouviram sobre cães.

Na Salem do século XVII, os cães faziam parte da vida cotidiana: as pessoas tinham cães para proteger a si mesmas, suas casas e seus rebanhos, para ajudar na caça e para fazer companhia.

No entanto, uma variedade de tradições folclóricas também associava cães ao diabo — crenças que muito antecederam o que aconteceu em Salem. 

Talvez o exemplo mais famoso de tal crença seja o caso de um poodle chamado Boy que pertencia ao príncipe Rupert, um comandante de cavalaria anglo-alemão do lado realista durante a Guerra Civil Inglesa. 

Entre 1643 e 1644, histórias se espalharam pela Europa de que Boy, o poodle, tinha poderes sobrenaturais, incluindo mudança de forma e profecia, que ele usava para ajudar seu mestre no campo de batalha.

Não há menção nos registros oficiais dos julgamentos de Salem de cães sendo julgados ou mortos por bruxaria. No entanto, cães aparecem várias vezes no testemunho, geralmente porque se acreditava que uma bruxa acusada tinha um cão como um “familiar” que faria o que ela mandasse, ou porque o diabo apareceu na forma de um cão.

Ilustração de um julgamento de bruxas do final do século XVII em Salem, Massachusetts

Depoimentos nos registros
do julgamento de Salem
afirmam que os cães
estavam em conluio
com o diabo, aumentando
a paranoia desta
comunidade que
estava saindo do controle

Associando o diabo ao cão

Em 16 de maio de 1692, um homem de 45 anos de Amesbury, Massachusetts, chamado John Kimball testemunhou contra Susanna Martin, uma viúva de 71 anos, dizendo, entre outras coisas, que ela havia feito um “cachorrinho preto” aparecer diante dele quando ele estava sozinho na floresta.

Kimball testemunhou que estava aterrorizado pelo cachorro, que ele pensou que rasgaria sua garganta. O cachorro desapareceu quando ele começou a rezar.

Este, entre outros testemunhos, contribuiria para a condenação de Martin por bruxaria em junho de 1692; ela foi enforcada em 19 de julho de 1692.

Em vários casos registrados pelos tribunais, bruxas acusadas confessaram que o diabo havia aparecido a elas na forma de um cachorro. Em setembro de 1692, Mercy Wardwell, de 19 anos, testemunhou que ela estava conversando com o diabo, e que ele havia aparecido a ela na forma de um cachorro. Sua confissão fez com que ela fosse presa, embora ela tenha sido solta mais tarde quando a histeria diminuiu.

Durante o mesmo processo em setembro, William Barker Jr., de 14 anos, testemunhou que a “forma de um cachorro preto” apareceu para ele e provocou ansiedade; logo depois disso, o diabo apareceu. É difícil saber se ele estava sugerindo que o cachorro era o próprio diabo ou seu companheiro.

Barker confessou que havia “assinado o livro do diabo”, significando que havia feito um pacto com o diabo e era um bruxo. Barker foi preso, embora mais tarde fosse absolvido.

Tituba, uma mulher de cor escravizada na casa do Rev. Samuel Parris, também testemunhou sobre um cachorro. Quando foi examinada por magistrados em 1º de março de 1692, Tituba relatou como o diabo lhe apareceu pelo menos quatro vezes, “como um grande cachorro” e como “um cachorro preto”. Ela também disse que viu gatos, porcos e pássaros, uma coleção inteira de animais trabalhando para o diabo.

Os testemunhos de Kimball, Wardwell, Barker e Tituba certamente podem ter contribuído para o alarme constante de que os moradores de Salem estavam sendo enganados por um demônio que poderia aparecer para eles na forma de um cachorro.

Evidências incompletas

Alguns relatos populares dos julgamentos também sugerem que pelo menos dois cães foram mortos durante os julgamentos, mas não há evidências que sustentem isso no testemunho legal oficial da época. Certamente há alguma lenda local que sustenta a alegação, e muitos relatos de Salem incluíram essas duas mortes de cães como parte da história.

De acordo com o livro de 2002 da pesquisadora histórica local Marilynne K. Roach, “The Salem Witch Trials: A Day-by-day Chronicle of a Community Under Siege”, algumas das meninas afetadas alegaram que um homem chamado John Bradstreet havia enfeitiçado um cachorro. Embora o cachorro fosse uma vítima, ele foi morto. A história de Roach também observa que outro cachorro foi morto a tiros quando uma menina alegou que o espectro do cachorro a havia afligido.

A crença na bruxaria da época sustentava que as bruxas podiam enviar seus “espectros”, ou espíritos, para fazer o que quisessem.

Embora essas sejam histórias convincentes, nenhum desses eventos pode ser verificado em quaisquer documentos oficiais de julgamento existentes. 

A fonte que Roach cita para o caso Bradstreet é o livro de Robert Calef “More Wonders of the Invisible World,” que foi publicado em 1700. Calef, que era um comerciante de Boston, se opôs à forma como os julgamentos foram conduzidos. No entanto, ele não estava presente nos julgamentos, e não está claro qual era sua fonte para as histórias de cães. Essas histórias — e a recontagem não citada de Calef — não têm a mesma autoridade que os documentos legais do caso.

O primeiro relato de um cão sendo baleado por ser um bruxo aparece em um comentário sobre os julgamentos de Salem, “Casos de Consciência Referentes a Espíritos Malignos”, publicado em 1693, no qual o clérigo Increase Mather afirma que “pessoas confiáveis ​​me disseram” que um cão foi baleado por enfeitiçar uma pessoa.

Mas significativamente, Mather não deu o nome da vítima humana ou da pessoa que lhe contou a história. Surpreendentemente, Mather realmente defendeu o cachorro, dizendo que o fato de eles terem matado o cachorro com sucesso significava que “esse cachorro não era o Diabo”.

Quase todas as histórias de Salem relatam como, quando as filhas de Samuel Parris estavam tendo ataques terríveis que levavam as pessoas a acreditarem que estavam enfeitiçadas, Tituba, a mulher escravizada que morava na casa, assou um “bolo de bruxa” usando a urina das meninas afetadas e deu para o cachorro da família comer.

De alguma forma, isso deveria fazer com que o cão revelasse a identidade da bruxa. De fato, o reverendo Parris condenou o ritual, que em si parecia ser seu próprio tipo de bruxaria.

Medo e desconfiança

Em todos os aspectos, os julgamentos de bruxas de Salem parecem ter sido ruins para os cães. Embora não haja nenhuma evidência legal oficial de que cães foram mortos por serem bruxos, está claro que havia fortes associações entre cães e o diabo, e que os cães às vezes eram maltratados devido à superstição.

Os julgamentos de Salem são um exemplo horripilante do que acontece quando as pessoas usam uma lógica terrível e saltam para conclusões indefensáveis ​​com evidências de má qualidade. Em um ambiente de medo e desconfiança, até mesmo o melhor amigo do homem pode ser suspeito de negociar com o diabo.

Comentários

betoquintas disse…
Lá na Europa visaram os gatos. 😿

Post mais lidos nos últimos 7 dias

90 trechos da Bíblia que são exemplos de ódio e atrocidade

Professor obtém imunidade para criticar criacionismo nas aulas

A Corte de Apelação da Califórnia (EUA) decidiu que um professor de uma escola pública de Mission Viejo tem imunidade para depreciar o criacionismo, não podendo, portanto, ser punido por isso. A cidade fica no Condado de Orange e tem cerca de 94 mil habitantes. Durante uma aula, o professor de história James Corbett, da Capistrano Valley High School, afirmou que o criacionismo não pode ser provado cientificamente porque se trata de uma “bobagem supersticiosa”. Um aluno foi à Justiça alegando que Corbett ofendeu a sua religião, desrespeitando, assim, a liberdade de crença garantida pela Primeira Emenda da Constituição. Ele perdeu a causa em primeira instância e recorreu a um tribunal superior. Por unanimidade, os três juízes da Corte de Apelação sentenciaram que a Primeira Emenda não pode ser utilizada para cercear as atividades de um professor dentro da sala de aula, mesmo quando ele hostiliza crenças religiosas. Além disso, eles também argumentaram que o professor não ...

Caso Roger Abdelmassih

Violência contra a mulher Liminar concede transferência a Abelmassih para hospital penitenciário 23 de novembro de 2021  Justiça determina que o ex-médico Roger Abdelmassih retorne ao presídio 29 de julho de 2021 Justiça concede prisão domiciliar ao ex-médico condenado por 49 estupros   5 de maio de 2021 Lewandowski nega pedido de prisão domiciliar ao ex-médico Abdelmassih 26 de fevereiro de 2021 Corte de Direitos Humanos vai julgar Brasil por omissão no caso de Abdelmassih 6 de janeiro de 2021 Detento ataca ex-médico Roger Abdelmassih em hospital penitenciário 21 de outubro de 2020 Tribunal determina que Abdelmassih volte a cumprir pena em prisão fechada 29 de agosto de 2020 Abdelmassih obtém prisão domicililar por causa do coronavírus 14 de abril de 2020 Vicente Abdelmassih entra na Justiça para penhorar bens de seu pai 20 de dezembro de 2019 Lewandowski nega pedido de prisão domiciliar ao ex-médico estuprador 19 de novembro de 2019 Justiça cancela prisão domi...

Reação de aluno ateu a bullying acaba com pai-nosso na escola

O estudante já vinha sendo intimidado O estudante Ciel Vieira (foto), 17, de Miraí (MG), não se conformava com a atitude da professora de geografia Lila Jane de Paula de iniciar a aula com um pai-nosso. Um dia, ele se manteve em silêncio, o que levou a professora a dizer: “Jovem que não tem Deus no coração nunca vai ser nada na vida”. Era um recado para ele. Na classe, todos sabem que ele é ateu. A escola se chama Santo  Antônio e é do ensino estadual de Minas. Miraí é uma cidade pequena. Tem cerca de 14 mil habitantes e fica a 300 km de Belo Horizonte. Quando houve outra aula, Ciel disse para a professora que ela estava desrespeitando a Constituição que determina a laicidade do Estado. Lila afirmou não existir nenhuma lei que a impeça de rezar, o que ela faz havia 25 anos e que não ia parar, mesmo se ele levasse um juiz à sala de aula. Na aula seguinte, Ciel chegou atrasado, quando a oração estava começando, e percebeu ele tinha sido incluído no pai-nosso. Aparentemen...

Seleção feminina de vôlei não sabe que Brasil é laico desde 1891

Título original: O Brasil é ouro em intolerância Jogadoras  se excederam com oração diante das câmeras por André Barcinski para Folha Já virou hábito: toda vez que um time ou uma seleção do Brasil ganha um título, os atletas interrompem a comemoração para abrir um círculo e rezar. Sempre diante das câmeras, claro. O mesmo aconteceu sábado passado, quando a seleção feminina de vôlei conquistou espetacularmente o bicampeonato olímpico em cima da seleção norte-americana, que era favorita. O Brasil é oficialmente laico desde 1891 e a Constituição prevê a liberdade de religião. Será mesmo? O que aconteceria se alguma jogadora da seleção de vôlei fosse budista? Ou mórmon? Ou umbandista? Ou agnóstica? Ou islâmica? Alguém perguntou a todas as atletas e aos membros da comissão técnica se gostariam de rezar o “Pai Nosso”? Ou será que alguns se sentiram compelidos a participar para não destoar da festa? Será que essas manifestações públicas e encenadas, em vez de prop...

Por que é absurdo considerar os homossexuais como criminosos

Existem distorções na etimologia que vem a antiguidade AURÉLIO DO AMARAL PEIXOTO GAROFA Sou professor de grego de seminários, também lecionei no seminário teológico da igreja evangélica e posso dizer que a homofobia católica e evangélica me surpreende por diferentes e inaceitáveis motivos. A traduções (traições), como o próprio provérbio italiano lembra ( traduttore, tradittore ) foram ao longo dos séculos discricionariamente destinadas a colocar no mesmo crime etimológico, categorias de criminosos sexuais que na Antiguidade distinguiam-se mais (sobretudo na cultura grega) por critérios totalmente opostos aos nossos. O que o pseudoepígrafo que se nomeia Paulo condenava eram os indivíduos de costumes torpes, infames, os quais se infiltravam em comunidades para perverter mocinhas e rapazinhos sob pretexto de "discipulado" e com fins de proveito sexual. Nada diferente de hoje, por isso vemos que a origem da efebofilia e pedofilia católica e evangélica é milenar. O fato...

Secretaria do Amazonas critica intolerância de evangélicos

Melo afirmou que escolas não são locais para mentes intolerantes Edson Melo (foto), diretor de Programa e Políticas Pedagógicas da Secretaria de Educação do Estado do Amazonas, criticou a atitude dos 14 alunos evangélicos que se recusaram a apresentar um trabalho sobre cultura africana para, segundo eles, não ter contato com as religiões dos afrodescendentes. “Não podemos passar uma borracha na história brasileira”, disse Melo. “E a cultura afro-brasileira está inclusa nela.” Além disso, afirmou, as escolas não são locais para “formar mentes intolerantes”. Os evangélicos teriam de apresentar em uma feira cultural da Escola Estadual Senador João Bosco de Ramos Lima, em Manaus, um trabalho dentro do tema "Conhecendo os paradigmas das representações dos negros e índios na literatura brasileira, sensibilizamos para o respeito à diversidade". Eles se negaram porque, entre outros pontos, teriam de estudar candomblé e reagiram montando uma tenda fora da escola para divu...

CRP dá 30 dias para que psicóloga deixe de fazer proselitismo religioso

Cinco deuses filhos de virgens morreram e ressuscitam. E nenhum deles é Jesus

Líder de igreja é acusado de abusar de dezenas de fiéis